A repercussão da decisão do Superior
Tribunal Federal (STF) por um novo julgamento de alguns envolvidos na
Ação Penal 470, apelidada pela mídia de “mensalão”, mostra o afloramento
de contradições profundas no Brasil. E elas se manifestam, nas
condições atuais do país, principalmente na disputa eleitoral, que tende
a ter desdobramentos cada vez mais dramáticos. Esse cenário vem sendo
revelado nitidamente pelo comportamento histriônico da mídia.
O famoso orador Marco Túlio Cícero dizia que Roma era um assunto sobre o
qual não se devia pedir nem receber informações, a fim de evitar
aborrecimentos. Recordo a citação para dizer que a mídia no Brasil se
comporta como Roma ao ignorar a sabedoria humana e conferir a si própria
o título e as credenciais de senhora do bem e do mal, do que convém ou
não ao país. Os adjetivos peremptórios — quadrilha, crimes, corruptos e
outros do gênero — usados como indisfarçável despeito pela decisão do
Superior Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento da farsa do
“mensalão” são provas mais do que suficientes de que os senhores dos
latifúndios midiáticos não se ajustam às medidas do Estado de Direito.
Ao se comportar assim, a mídia age como uma espécie de Ku-Kux-Klan da
falsa moralidade. Às vezes fazem isso até em nome das religiões, que do
alto dos seus milênios de existência não lhes deram procuração para
tanto. Peguemos o exemplo do elogio do jornal Folha de S. Paulo a
uma afirmação do ministro Gilmar Mendes. “Eu sempre digo o seguinte: a
gente tem que rezar para não perder o senso de Justiça. Mas se Deus não
nos ajuda, pelo menos que rezemos para que não percamos o senso do
ridículo", disse Mendes.
Fator humano
A marca da mídia à brasileira é exatamente a ojeriza ao pensamento
avançado, humanista. A cada dia ela nos apresenta exemplos dos mais
edificantes. E sempre há uma teoria. Mas são teorias do que
seria-se-fosse, baseadas em características e fenômenos de um país que
eles imaginam, muito diverso do país real. Equacionar, operar, extirpar e
outros vocábulos os embalam em seus cálculos frios.
Os números aparecem em esquemas e equações que não partem de
realidades. São fantasias e fantasmagorias que não se destinam a
descobrir, orientar, provar, mas... Se destinam a que precisamente? A
sofismar, a mistificar e mitificar, a ludibriar. Qualquer que seja o
problema, por mais complexo e multiforme, não lhes faltam engenho e arte
para transformá-lo em gráficos e diagramas para dar-lhe denominação
própria e original. Mas não lhe dão especificidade, ou não querem
lembrar que informar e analisar requer arte e ciência, essencialmente
ligadas ao homem. Nenhum resultado se pode esperar de informações e
análises que eliminam o fator humano.
Delírio teorizante
Nessa pregação pela moralidade, o delírio teorizante atinge o auge.
Como a presunção é o traço mais evidente dos responsáveis por essas
informações e análises, eles insistem no diagramar, no cronogramar, no
organogramar, no topogramar para ver se com o inusitado da linguagem
obtêm crédito. Pensam que podem vencer pelo choque, pelo cansaço do
prolixo. Pode-se dizer que é uma mídia nominalista. Se a realidade —
onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde às
análises, muda-se o nome das coisas e fenômenos.
Pois saibam os que não sabiam que esse gosto pelo nome dos que se
presumem detentores da verdade chega até à limitação da liberdade de
opinião. São eles que mandam e acabou a história. De propósito, esses
senhores de sua semântica esvaziam o conteúdo das informações para pôr
no lugar frases retorcidas. E como eles inventam nomes com facilidade,
suas explicações se encaixam naquele tipo de resposta que se dá às
crianças de certa idade que não perguntam para saber, mas pelo
perguntar.
Mal de nascença
Essa dissemântica é velha, mal de nascença. Entre seus princípios está a
pregação contra a corrupção. Hoje, sabe-se muito bem, a corrupção tem
um limite semântico — o tal “mensalão” — só compreendido por aqueles
que o inventaram. Mas para a propaganda contra o governo e a esquerda o
nome não poderia ser melhor. É só isso. Porque se fosse mesmo
corrupção nas dimensões anunciadas, no conceito da língua portuguesa,
já teríamos tido exposições monumentais em praça pública de ladrões
cercados de cartazes especificando os crimes de cada um.
O que há em tudo isso é o estardalhaço natural de quem falsifica os
fatos — principalmente quando lhe faltam glórias próprias. Muitas vezes
essas falsificações são imposições a jornalistas, massacrados pela
ditadura dos donos do poder, que sequer têm tempo de estudar as leis e
meditar sobre os problemas nacionais, de auscultar o coração do povo, de
ler e entender os processos sociais. Muitos nem foram formados neste
espírito e, em terra de batráquio, precisam se agachar para não ser
atingido pela língua do sapo.
Ruy Barbosa e Padre Vieira
Quem vive sob a égide do Estado de Direito tem a proteção da
Constituição e de outras cartas. E Ruy Barbosa deixou escrito que a
Constituição não é roupa que se recorte para ajustá-la às medidas deste
ou daquele interesse. Poderíamos, nesse vazio de inteligência da mídia,
nos consolar com as palavras do Padre Vieira, no “Sermão da
Sexagésima”, onde se vê a causa dessa pregação recheada de ameaças ou
promessas, uma discurseira que põe palavras onde faltam idéias. Lá se
diz: “As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O
pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as
alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela
memória, senão pelo entendimento. (...) O que sai da boca, para nos
ouvidos, o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento.”
Mas é necessário que a bandeira da verdade nunca seja arriada. Apesar
de a maioria das acusações, convenientemente, já estar sepultada em cova
rasa — sem nenhuma investigação a mais, sem nenhuma satisfação ao
público, sem nenhuma retratação —, a dissemântica continua ativa. Desde o
princípio, as denúncias — sustentadas em fontes que se revelariam
frágeis como a convicção de um cínico — esbarram em uma questão de
lógica básica. Um mergulho nas páginas publicadas sobre o caso revela
muito sobre a maneira como são produzidos — e depois manipulados — os
escândalos.
Latifúndios de mídia
Em uma carta aos seus alunos — indevidamente publicada pelo jornal Folha de S. Paulo —,
a filósofa Marilena Chaui disse que com esta imprensa estamos diante
de um campo público de direitos regido por campos de interesses
privados. "E estes sempre ganham a parada", afirma ela. No caso da
farsa do “mensalão”, a mídia apressou-se em publicar frases
bombasticamente vazias, como uma do senador Álvaro Dias (PSDB-PR).
Segundo ele, os papéis que seriam aprendidos pela CPI dos Correios
seriam capazes de "abalar os pilares da nação". Depois, quando a
realidade se mostrou bem menos formidável, Álvaro Dias teve de baixar o
tom: "Eu queria que a coisa fosse bem maior, mas não é".
Esse fato deveria ser objeto de demorado estudo por parte dos editores
de publicações de qualquer natureza. Mas não é assim. Cláudio Abramo,
conceituado jornalista com ideias situadas à esquerda no espectro
político e respeitável ícone do jornalismo brasileiro — ele conheceu as
entranhas de jornais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo —,
dizia que para ter democracia no Brasil é preciso começar fechando
todas as TVs particulares. Esses latifúndios de mídia, dizia ele, são as
primeiras trincheiras usadas pelas classes dominantes em casos de
crises políticas. Ele não fez uma tirada inconsequente — apenas disse o
que acontece. Não porque achava, mas porque sabia.
Propaganda ideológica
O tom da pregação moralista revela também que as relações entre o
governo da presidenta Dilma Rousseff e a mídia estão em seu pior
momento. Blogs, colunas, editoriais e peças pretensamente humoristas
propagam uma onda conservadora que chama a atenção e faz pensar. Antes,
havia a histeria da denunciamania que cavalgava o “mensalão”; agora,
assume a pauta a propaganda ideológica fundada no rancor político, no
ódio de classes e no reacionarismo.
Os mandantes da mídia sequer são capazes de admitir a ideia de que as
pessoas que não seguem seu figurino ideológico não são necessariamente
“petistas”. Basta ser democrata e progressista para ser enquadrado nesta
categoria. O epíteto passou a ser sinônimo de xingamento. O ser
“petista” é alguém que não pensa, que está na contramão dos fatos. A
explicação mais plausível para isso é a aproximação das eleições de
2014.
Oportunidade perdida
Na verdade, a direita, com essa farsa, atrapalhou uma excelente
oportunidade para a apuração rigorosa das origens do escândalo. Durante a
CPI dos Correios, a então ministra do STF Ellen Gracie proibiu o
acesso dos parlamentares ao conteúdo da principal peça do computador do
banqueiro Daniel Dantas sob a alegação de que o requerimento do então
deputado Jamil Murad (PCdoB-SP) precisava ser melhor fundamentado.
Suspeitava-se que ali estaria os detalhes de um fundo, sediado nas Ilhas
Cayman, que aplicava dinheiro de doleiros acusados de operar no
esquema de Dantas.
Vale rememorar o despacho da juíza: ''As transações das empresas de
publicidade DNA e SMP&B não se deram com o Banco Opportunity, mas
com algumas das controladas pelo chamado Grupo Opportunity (dirigido por
Dantas). Todas essas empresas (Brasil Telecom, Telemig e Amazônia
Celular) têm personalidade jurídica própria, inconfundível com a de sua
entidade controladora, muito embora os nomes em suas diretorias se
repitam com freqüência e sejam ligados por laços de parentesco ou
afinidade ao primeiro impetrante (Dantas)''.
Prócer tucano
Em depoimento à CPI, tanto Marcos Valério quanto o ex-tesoureiro do
Partido dos Trabalhadores (PT), Delúbio Soares, confessaram encontros
com representantes do Opportunity. O objetivo seria ''aparar as
arestas'' do banqueiro com o governo. O motivo real era o esquema de
irrigação subterrânea de campanhas eleitorais arquitetado pelos tucanos.
Na Procuradoria-Geral da República, Delúbio Soares disse que foi
apresentado ao publicitário por ''amigos de Minas'' — incluindo o então
deputado federal Virgílio Guimarães (PT). Eles teriam lhe orientado a
procurar Marcos Valério por causa da sua ''experiência na captação de
recursos para campanhas eleitorais, como fizera na de 1998, na eleição
do então governador Eduardo Azeredo e do deputado Aécio Neves (ambos do
PSDB)''.
Diante dos fatos, o PSDB mineiro lançou nota denunciando a existência
de uma ''articulação nacional'' (não deu detalhes sobre a conspiração) e
criticou o “clima de denuncismo”. Ao tomar conhecimento da
profundidade do buraco, o principal prócer tucano, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso (FHC), se saiu com essa: ''Precisamos
investigar tudo, mas sem perder o foco de que a crise é hoje. O que
aconteceu no passado, no meu governo, é coisa da história.'' Bem, uma
das características mais marcantes do ex-presidente neoliberal é a sua
capacidade de dizer bobagens. Mas os que pregam em nome da justiça não
poderiam ignorar estes fatos se quisessem realmente provar a existência
do “mensalão”.
Corvo de Allan Poe
Há informações de que o esquema do PSDB existe desde o início dos anos
1990 e tem outras ramificações. Entre janeiro e maio de 2004, por
exemplo, a agência do Banco Rural em Brasília fez pagamentos em espécie
no total de 7,9 milhões de reais ao Instituto de Desenvolvimento,
Assistência Técnica e Qualidade em Transporte, órgão vinculado à
Confederação Nacional dos Transportes (CNT), presidida por Clésio
Andrade — que foi vice-governador de Aécio Neves em Minas Gerais. O
dinheiro seria usado em campanhas para prefeitos e vereadores mineiros.
Detalhe: Andrade foi sócio de Marcos Valério na SMPB e na DNA.
Seria o caso de ir mais fundo e analisar os escândalos que proliferaram
na ''era FHC'', um se sobrepondo ao outro. Compra de votos da
reeleição, “caixa dois” da campanha presidencial, fitas do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)... Era como se a
realidade desejasse impor uma máxima inversa à do corvo de Allan Poe:
''Sempre mais''. Poderia ainda verificar as acusações contra Ricardo
Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e
apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas
eleitorais do PSDB — que foi flagrado dizendo que atuava no ''limite da
irresponsabilidade'' no processo de privatização do sistema Telebrás.
Julgamento parcial
O grampo do BNDES talvez seja o exemplo mais evidente para se
estabelecer a conexão de todos esses escândalos tucanos com o
''mensalão''. O caso, que trouxe ao nível da superfície o palavrório
utilizado nos subterrâneos da privatização das telefônicas, pode
explicar muita coisa. Soube-se que ''o maior negócio da República'',
tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros — então do Ministério das
Comunicações — e André Lara Resende — então na presidência do BNDES —,
fora trançado numa atmosfera de alto risco (''no limite da
irresponsabilidade''), em meio a um linguajar raso (''se der m...,
estamos juntos'') e com pitadas de truculência (''temos de fazer os
italianos na marra''). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre
as “vantagens” da negociata destinada a favorecer o Opportunity,
assentiu dizendo: ''Não tenha dúvida, não tenha dúvida.'' Mas, como se
diz, a Justiça é ágil em certos casos e cágada — a sílaba tônica fica a
seu critério — em outros.
A cobertura do julgamento parcial — nos dois sentidos do termo — do
“mensalão”, no entanto, oferece mais uma oportunidade para se entender o
que isso tudo quer dizer na prática. Não há dúvida de que a mídia
agora volta a tentar pôr a faca no pescoço da presidenta Dilma Rousseff
e conduzi-la imobilizada ao matadouro. É uma tentativa de fazer uma
ponte com outros casos e criar o chamado efeito dominó. Tradução
simples e direita: para desgosto dos amantes da tranquilidade, a
disputa pelo poder no Brasil volta a ter intensidade crescente. O
responsável por esta situação é o leve balanço na estrutura social
brasileira provocado pelas ações sociais dos governos Lula e Dilma.
Realidade complexa
Vivemos numa realidade tão complexa que a construção de uma simples
rede de esgoto em alguma periferia ou de uma estrada asfaltada que rasga
os sertões rompe ao mesmo tempo o véu das relações sociais obsoletas
que temos no Brasil. E olha que são medidas meia-sola, que nem de longe
ameaçam o satus quo. Com estes dados, fica fácil entender por
que o vazio de propostas da direita é preenchido com adjetivos. No
primeiro julgamento do "mensalão", o que mais se ouviu ou leu é que o
STF tomou uma decisão histórica — com ênfase no “tó” — e que a
transformação dos denunciados em réus — com ênfase no “ré” — mostrou que
as “instituições” funcionavam. Agora, a retórica midiática se
inverteu.
Convenhamos, não se faz justiça assim. O problema não está aí. Se
estivesse, deveríamos proclamar: deixem os poderes da República
trabalhar e noticiemos o que eles fazem! Os procuradores de escândalos e
os promotores de injustiças não teriam vez. E aí sim teríamos toda
razão do mundo para clamar por justiça para todos — independente da cor
ideológica de cada um.
Rosca sem fim
Quando o assunto é tratado sem as bravatas e foguetórios da mídia, e
sem o histrionismo dos grupos “esquerdistas” — uma poderosa arma da
direita —, o que se vê é um panorama bem diferente. A briga real, com
fichas de verdade na mesa, está no confronto entre um Brasil arcaico,
que faz tudo para sobreviver, e um Brasil moderno, que está tentando
começar. As calamidades que a elite brasileira foi capaz de produzir ao
longo da história e parece decidida a continuar produzindo, numa
espécie de rosca sem fim, ilustram essa situação de modo exemplar. É
uma situação que pode ser descrita como o retrato da morte moral de uma
ideologia que vive na delinquência e se agarra a todas as formas de
poder para continuar a delinquir em larga escala.
Todas essas coisas compõem o enredo da ópera, mas o seu melhor resumo
não é o tamanho da vigarice, e sim a sua natureza: ela expressa, mais do
que um espetáculo de má conduta, o funcionamento a todo o vapor do
país do atraso. O Brasil que vive do passado vai muito além da mídia —
inclui forças políticas e práticas elitistas que sempre estiveram
presentes em toda a nossa história. Na verdade, essa opção preferencial
pelo arcaísmo, pela imobilidade social e pelo que não funciona é
simplesmente o que se poderia mesmo esperar de um setor da sociedade que
carrega usos e costumes que chegaram com a turma que desembarcou por
aqui junto com Pedro Álvares Cabral.
Sentimento patriótico
Conferir credibilidade ao seu projeto equivale a fundar, hoje, um
partido a favor do colonialismo. Não é com o governo que a direita
realmente está em guerra. O seu problema é com o Brasil que não quer
mais ser o mesmo. Ela guerreia com este Brasil em transformação pelo
menos desde o início da década de 1940 do século XX. O problema é que de
1950 para cá a direita tem obtido poucas vitórias. De meados dos anos
1950 em diante, as forças populares deixaram de ser marginais para
tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país.
Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, em sua
campanha eleitoral para a Presidência da República, conforme ele mesmo
disse, foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o
petróleo por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido
pelas forças progressistas. Fatos como este se repetiram nos governos
Jânio Quadros e João Goulart, e refletiam o crescimento das correntes
políticas populares. A eleição de Miguel Arraes para governador do
Estado de Pernambuco marcou a entrada em cena, naquela conjuntura, de
uma tendência política desvinculada dos esquemas tradicionais.
Ações golpistas
Foi o suficiente para alarmar as forças conservadoras, atiçando o seu
instinto de sobrevivência. A vida política do país foi se conturbando
com o aprofundamento do choque entre os dois campos. E a UDN — o PSDB da
época —, com suas faces gráfica, fardada e política, que havia sido
batida com a renúncia de Jânio Quadros, partiu para a pregação golpista
sem meias palavras. A situação se complicou quando surgiu a questão da
sucessão presidencial, que deveria se dar em 1965.
O campo progressista discutia os nomes do próprio Juscelino Kubitschek,
de Miguel Arraes, do ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola, e até a saída extraconstitucional da reeleição de
Goulart para enfrentar Carlos Lacerda, do campo conservador. Quando o
campo progressista tentou articular uma “frente ampla” sem Juscelino
Kubitschek para sustentar o governo e fazer a sucessão presidencial, a
direita já havia estruturado um engenhoso sistema de obtenção de fundos
(sacados principalmente das grandes empresas estrangeiras) para
financiar as ações golpistas.
Cegueira política
Nas vésperas do golpe militar de 1º de abril de 1964, as bases
políticas do campo progressista estavam bastante enfraquecidas. Era o
resultado das eleições de outubro de 1962, quando a direita ganhou o
controle dos principais Estados (com a exceção de Pernambuco).
Contribuíram também para o enfraquecimento do campo popular os equívocos
das forças progressistas que, aberta ou veladamente, compreendiam ser
sua principal tarefa a criação de dificuldades ao governo — na vã
ilusão de que com isso era possível avançar muito mais.
A cegueira política impediu que todos os esforços se voltassem para o
combate ao inimigo, que preparava febrilmente o golpe de Estado. Quando
os militares que expressavam a ideologia da UDN marcharam rumo ao
Palácio do Planalto, o povo estava desarmado politicamente para
enfrentar os golpistas. As forças populares se viram diante de um fato
que não estava previsto em seus cálculos, ficando hemiplégicas diante
dos acontecimentos. A tática das correntes progressistas estava apoiada
numa base falsa: a de que não havia uma correlação de forças favorável
ao golpe.
Ares de dramaticidade
Era uma visão decorrente da vitória do povo quando João Goulart tomou
posse, enfrentando os militares da UDN, após a renúncia de Jânio
Quadros. Aquela derrota dos golpistas foi tomada como algo definitivo,
como demonstrativo de uma mudança de qualidade na vida política
brasileira. As forças progressistas não viram que aquela vitória ocorreu
por razões e fatores de ordem conjunturais, que poucos meses depois
desapareceriam. Desorientadas pelo êxito obtido, não traçaram uma tática
com bases nos fatos e na realidade nacional.
Seria interessante que certas figuras do campo de apoio ao governo
revisitassem este cenário para, quem sabe, compreender melhor o que se
passa com o país atualmente. As forças progressistas derrotadas em 1964
foram vitoriosas em 2002, em 2006 e em 2010 porque enfrentaram a
ditadura militar, travaram uma dura disputa com a direita na Assembléia
Nacional Constituinte de 1988 e nas eleições presidenciais de 1989, e
resistiram ao projeto neoliberal. Os elementos desta trajetória estão
presentes na atual disputa política que ganha cada vez mais ares de
dramaticidade. Não enxergar isso é miopia política de oito graus.
Osvaldo Bertolino
No Fundação Maurício Grabois
Postado por
z carlos
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18:00
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