O livro “O Príncipe da Privataria”, de Palmério Dória, lançado na semana
passada, tem a qualidade de ser memória. Dez anos passados do final dos
governos de Fernando Henrique Cardoso, um processo do chamado Mensalão
que tomou oito anos de generosos espaços da mídia tradicional e uma
viuvez inconsolável da elite brasileira – alijada do principal poder
institucional, o Executivo, por falta de votos populares –, jogaram para
debaixo do tapete a memória do que foi o processo de privatização
brasileira e a violenta concentração de riqueza nacional que disso
resultou.
Foi quase como se a mídia tradicional brasileira e a elite “moderna” que
ingressou no capitalismo financeiro internacional na era
Collor-Fernando Henrique Cardoso tivessem tirado as palavras da boca do
próprio FHC. “Esqueçam o que eu escrevi”, teriam dito jornais e
emissoras brasileiras, se perguntadas por que subtraíram de si próprios o
mérito de ter, pelo menos, jogado luzes sobre a pesada articulação do
governo tucano para dar mais quatro anos de mandato a Fernando Henrique,
e sobre os interesses que se acumulavam por trás de um processo de
privatização que, no mínimo, e para não dizer outra coisa, foi viciado.
Na ponta do lápis, a aprovação da reeleição a R$ 200 por cabeça
(denunciada pela Folha, com três confissões de venda documentadas em
gravações obtidas pelo jornalista Fernando Rodrigues, e uma previsão de
que, no total, pelo menos 150 parlamentares venderam também o seu voto) e
os prejuízos de uma privatização que concentrou pesadamente renda
privada no país, além de desnacionalizar setores estratégicos para o
crescimento brasileiro, resultam em valores muito, mas muito mais
expressivos do que o escândalo do Mensalão, que os jornais (com a ajuda
de declarações e frases feitas de ministros do Supremo Tribunal Federal)
cansam em dizer que foi o maior escândalo de corrupção da história do
país.
Nos dois casos – do governo Fernando Henrique e no escândalo maior do
governo Lula, o Mensalão – os jornais denunciaram. A diferença para os
dois períodos, todavia, foi a forma como a mídia enxergou os desmandos.
No caso da compra de votos para a reeleição, jornais e tevês
consideraram satisfatória a ação da Câmara, que cassou o mandado de três
parlamentares que confessaram, para o gravador oculto do jornalista
Fernando Rodrigues, terem recebido dinheiro para votar a emenda da
reeleição. Os escândalos relativos à privatização foram divulgados muito
mais como denúncias de arapongagem – escutas ilegais feitas por
inimigos do programa de doação do patrimônio público a consórcios
formados com dinheiro do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social, fundos de previdência das estatais e capital estrangeiro (em
menor volume, mas com direito a controle acionário), do que propriamente
indícios de ilícitos do governo.
O fato de os jornais, revistas e tevês simplesmente terem apagado de
suas memórias edições desses períodos não chega, portanto, a ser uma
contradição. Ideologicamente, nunca houve uma proximidade política tão
grande entre os meios de comunicação e um governo eleito
democraticamente no país. O projeto tucano era também o projeto de
modernização acalentado pela mídia tradicional: uma economia aberta ao
capital estrangeiro, desregulada, obedecendo à máxima liberal de que o
mercado é o melhor governo para os dinheiros. Nos editoriais da época,
os jornais centenários brasileiros expressam a comunhão, com o governo,
dos ideais de um Brasil moderno, neoliberal, fundado na ordem que já
havia ganhado o mundo e subvertido o Estado de Bem-Estar social europeu,
que foi o modelo mais longevo de capitalismo com justiça social do
mundo (talvez tenha sido este um golpe mais duro para a esquerda
democrática do mundo do que propriamente a queda do Muro de Berlim).
Com ressalvas para denúncias de desvios que foram colocados na categoria
de “pontuais”, jamais como “sistêmicos” – como se repisa no caso dos
escândalos dos governos petistas – a imprensa embarcou no discurso a
favor de “reformas estruturais” que, ao fim e ao cabo, representavam
extinguir conquistas sociais e garantias de soberania da Constituição de
1988. No final dos governos FHC, os editoriais lamentaram não a
corrupção sistêmica, mas o fato de o Congresso (e não o governo) não ter
cedido ao Executivo e aprovado as demais reformas, que consistiam em
reformar a Previdência e reduzir garantias do trabalho. Enfim, acabar
com a herança getulista, como havia prometido FHC.
Quando se tira a história debaixo do tapete, conclui-se também que os
oito anos de governos FHC, mais os tantos anos que sobraram do governo
Collor – que sofreu o impeachment em 1991 – e os anos em que o governo
Itamar Franco esteve dominado por intelectuais ligados a FHC e Serra e
economistas da PUC do Rio, usaram todos os recursos disponíveis na
atrasada política tradicional com o propósito declarado de “mudar” o
país. Qualquer oposição era jurássica e estava exposta ao ridículo: a
elite “moderna” desprezava o que considerava ser subdesenvolvimento
cultural das esquerdas.
O jogo mais pesado foi feito para aprovar a reeleição de Fernando
Henrique, parte de um projeto político verbalizado pelo então ministro
Sérgio Motta de manter os tucanos no poder por 20 anos. A compra de
votos foi generalizada no período, segundo farto material produzido pela
mídia tradicional. Não houve ação da Polícia Federal, do Ministério
Público ou da Justiça contra as fartas evidências de que a aprovação da
reeleição foi uma fraude, proporcionada por mais de 150 votos comprados a
R$ 200 mil cada um, segundo reitera a fonte de Fernando Rodrigues à
época, agora entrevistado por Palmério Dória para o “Príncipe da
Privataria”.
Da mesma forma, os indícios de vícios graves na formação dos consórcios
que viriam a comprar o sistema estatal de telefonia, fatiado pelo
governo tucano, nunca foram objeto de uma preocupação mais séria por
parte do Ministério Público, ou jamais sofreram a contestação de um
Supremo Tribunal Federal que, na era petista, imiscuiu-se em todos os
assuntos relativos aos demais poderes da República.
Em 1994, consolidou-se um bloco hegemônico em torno de um governo. MP,
STF, polícias – todos tinham chefe. Era FHC, mas o principal partido
político não era o PSDB, e sim os jornais – assim como hoje eles se
constituem no principal partido de oposição. O que aconteceu de 2002
para cá é que a unidade em torno do governo não existe mais, mas a
hegemonia das outras instituições se impõe sobre os poderes instituídos
pelo voto. O bloco hegemônico é o mesmo, exceto pelo governo e pelo
Congresso, que dependem do voto popular. A unidade se faz em torno da
mídia – que nega o que escreveu na última década do milênio. Dois pesos e
duas medidas viraram uso corriqueiro por este bloco. Por isso é tão
simples cunhar frases do tipo “nunca houve um governo tão corrupto” para
qualquer um posterior ao período tucano, que vai de 1995 a 2002. E por
isso esta simplificação não pode ser pedagógica: não reconhecer que há
uma corrupção estrutural no sistema político é uma forma de mantê-lo
inalterado. E, quando um presidente do bloco hegemônico for eleito,
poderá usar esse sistema político atrasado, com o pretexto de
“modernizar” o país, pagando o preço que ele cobrar.
Maria Inês NassifNo Carta Maior
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