Com marco civil da internet, Brasil vira referência mundial em democratização da rede
"A
aprovação do projeto coroa a vitória do governo que, para aprová-lo sem
alterar sua essência, enfrentou a maior crise de relacionamento com a
base aliada
A
Câmara dos Deputados aprovou na noite desta terça (25), por quase
unanimidade (só o PPS votou contra), o marco civil da internet, que há
cinco meses travava a pauta da casa e foi o pivô da maior crise já
enfrentada entre o governo Dilma e a base aliada. A expectativa, agora, é
que o projeto seja aprovado pelo Senado em tempo recorde, sem
alterações, para que siga à sanção presidencial.
Com isso, o
Brasil passará a ser referência mundial em legislação sobre rede mundial
de computadores: o projeto é, na opinião dos movimentos de defesa da
democratização da comunicação, especialistas em redes de informação e em
democracia participativa, um avanço significativo que deve servir de
exemplo para o mundo.
Prova é a nota divulgada às vésperas da
votação, pelo físico britânico Tim Berners-Lee, considerado o pai da
internet, na qual ele enaltece a proposta de marco legal brasileira. "Se
o Marco Civil passar, sem mais atrasos ou mudanças, será o melhor
presente para os usuários de internet no Brasil e no mundo", afirma ele.
Para
o cientista, o principal mérito do projeto, tal como o da própria web, é
ter sido criado de forma colaborativa, refletindo o desejo de milhares
de internautas. "Esse processo resultou em uma política que equilibra os
direitos e responsabilidades dos indivíduos, governo e empresas que
usam a internet", acrescentou.
Os movimentos de luta pela
democratização da comunicação, que atuaram continuamente para defender a
aprovação do projeto, comemoraram o peso da força da sociedade civil na
batalha. Só o abaixo-assinado eletrônico liderado pelo ex-ministro da
Cultura, Gilberto Gil, e entregue nesta terça à Câmara, conquistou 350
mil assinaturas favoráveis ao marco civil, feito histórico no
parlamento.
De forma geral, a proposta aprovada pela Câmara
disciplina direitos e deveres dos usuários da internet, mantendo a
liberdade e democracia na rede, protegendo os dados dos usuários de
espionagens praticadas pelo mercado ou por outros governos e impedindo
que as empresas de telecomunicações discriminem usuários, ao limitar a
velocidade de acesso para os que contratarem os pacotes mais populares. A
norma legal também discrimina como a Justiça deve agir para
responsabilizar crimes cibernéticos.
Construção do consenso
A
quase unanimidade em torno do texto que, até a semana passada, dividia a
Câmara e ameaçava até colocar PT e PMDB em lados opostos, só foi
possível porque o governo aceitou alterar dois pontos reivindicados por
parlamentares da base e da oposição, e que não comprometeram os três
pilares essenciais da proposta construída com a participação da
sociedade civil e encaminhada ao parlamento pela presidenta: a garantia
da neutralidade da rede, de proteção à privacidade dos usuários e da
garantia da liberdade de expressão.
Segundo o relator da matéria,
deputado Alessandro Molon (PT-RJ), o primeiro deles foi a retirada do
artigo que obrigava as empresas a manterem data centers para a
armazenagem de dados exclusivamente no Brasil. A alegação dos opositores
da norma era que a medida ia encarecer o custo da internet para os
usuários, sem trazer o resultado esperado: a proteção dos dados dos
usuários.
O relator, entretanto, fortaleceu o artigo que trata
do tema no texto final, ao prever que a lei brasileira seja aplicada à
proteção de dados de brasileiros, independentemente de onde estejam
armazenados. “Este texto está maior, mais forte e mais protetivo do
internauta brasileiro”, afirmou em plenário, ao defender a mudança.
O
outro ponto alterado, e o mais polêmico, diz respeito à prerrogativa
para determinar as exceções à neutralidade da rede. O texto original
falava que a prerrogativa era exclusiva do presidente da república, por
decreto. Com a alteração, o texto agora define que a prerrogativa
continue do presidente, mas determina que que ele ouça a Anatel e o
Comitê Gestor da Internet.
A mudança, embora enaltecida pela
oposição e pelos partidos da base que estavam contra a proposta como
definitiva, possui efeitos práticos sutis, quase inócuos. Mas foi
suficiente para fazer com que bancadas como a do PMDB, do PSB e do PSDB,
por exemplo, encontrassem a justificativa para passar a apoiar a
proposta, visando, inclusive, mais apoio popular nas eleições de
outubro.
Outras duas mudanças no texto também ajudaram o relator a
angariar votos nas bancadas feminina e evangélica. Uma delas passou a
responsabilizar o provedor pela divulgação de cenas de nudez ou de sexo
privado, divulgadas sem o conhecimento de uma das partes. A outra ampara
o controle parental de conteúdo, de forma a permitir que os pais possam
limitar o nível de acesso de filhos a sites julgados impróprios.
Posicionamentos contrários
Apenas
o PPS, que possui uma bancada de oito deputados, votou contra o
projeto. Vaiado pelo público que acompanhava a votação e por colegas
deputados, o deputado Roberto Freire (PPS-RJ) justificou a posição
alegando que o “Brasil se transformou na Turquia”, país que disciplina a
utilização da internet de forma autoritária e chegou a proibir o uso de
redes sociais como o Twitter e o Facebook.
Segundo Freire, o
texto do marco civil, já nos seus primeiros parágrafos, revela a
intenção do governo de disciplinar a internet, uma ferramenta não
regulamentada nos demais países democráticos. “É como se tivéssemos os
neoliberais, que defendem a liberdade de mercado, e aqueles que querem a
intervenção do Estado”, comparou ele, de forma desastrosa.
Vários
parlamentares criticaram sua posição. Entre eles o deputado Amauri
Teixeira (PT-BA) que, em tom bastante exaltado, esclareceu que a
intenção do projeto era justamente o contrário: impedir que o mercado ou
governos de plantão se apropriassem de uma ferramenta tão importante
para a democracia, com forte impacto na diminuição das desigualdades
sociais e na prestação de serviços públicos de melhor qualidade.
O
deputado Márcio Macedo (PP-SE) fez coro e criticou a incapacidade de
Freire de entender o tempo histórico em que vive. “Precisamos combater
esse reacionarismo anacrônico do colega que me antecedeu. Perdoem, mas
ele perdeu a noção do presente e do futuro e não sabe o que diz”,
afirmou.
Eduardo Cunha: rabo entre as pernas
Personagem-chave
na crise que paralisou a Câmara por cinco meses ao se posicionar contra
o marco civil para defender os interesses das empresas de
telecomunicações, o líder da bancada do PMDB, deputado Eduardo Cunha
(PMDB-RJ) acabou dando a mão à palmatória e reconhecendo que perdeu a
guerra que tentou travar contra o governo.
Em pronunciamento na
bancada, explicou que mantinha sua posição por uma internet sem
regulamentação, mas esclareceu que, como líder da segunda maior bancada
da casa, acataria a decisão da maioria dela. “Eu sou líder de uma
bancada e tenho que expressar o que a maioria da minha bancada quer,
mesmo que a minha posição seja vencida”, informou."
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