E, com ele, um Brasil que ele criou, em Londres, para consumo próprio
O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla,geral e
irrestrita : o coração de Ivan Lessa parou de bater, em Londres. Ivan
Lessa saiu do Brasil no fim dos anos sessenta. Passou as décadas
seguintes sem por os pés na ex-Terra de Santa Cruz. Ainda assim,
mantinha uma relação absoluta com o país. Ivan Lessa convivia com um
país que, provavelmente, só existia na imaginação de Ivan Lessa : um
Brasil que que tinha com fronteiras a Ipanema dos anos sessenta e a
Copacabana dos anos cinquenta. Eis aí a beleza da atitude de Ivan Lessa :
uma bela saída para o absurdo da vida talvez seja criar países
imaginários e cultivá-los com todo cuidado por décadas a fio. De resto,
Ivan Lessa era o avesso de tudo o que pode haver de risível em
intelectuais e jornalistas: a taxa de pretensão, pompa e empáfia
circulando na corrente sanguínea de Mr. Lessa era zero. Aos que nasceram
ontem: Ivan Lessa foi um talento reluzente na geração que criou um
jornaleco que influenciaria as gerações seguintes: o Pasquim. Os textos
de Ivan Lessa eram “inlargáveis”: quem começava ia até o fim. Era um
espírito independente. Não seguia a boiada. Não implorava por aplausos.
Escrevia estupidamente bem. O lamentável é escrever sobre ele no
passado. C´est la vie.
Aqui, uma entrevista (extensa) que fiz com o homem:
O Decálogo de Ivan Lessa:1. "Eu estou por fora de Orixá, Araçá Azul, Odara e Mandacaru Vermelho!".2. "O Brasil deveria esquecer o cinema. Somos ruins".3. "Pateta, Mickey e o Pato Donald são vizinhos melhores do que o pessoal que infesata a Barra da Tijuca".4. "Não há motivo algum para nos sentirmos à vontade no mundo! Os alienígenas somos nós".5. "O calor dá sono. O frio me civiliza".6. "Não quero entrar com meu plangente violão do saudosismo, mas o nosso jornalismo piorou. Muito mesmo".7. "Semprer fui muito mais velho e muito mais cético que Paulo Francis".8. "Ainda estou moço. Só tenho 64 anos, pode ser que a depressão ainda venha".9. "O que acho triste é o fato de o meu livro sair!".10. "Uma das vantagens de estar fora é que só recebo o disco de Caetano Veloso: não sou obrigado a ouvir aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas das entrevistas".
Atenção, arrivistas, subliteratos, emergentes, poetastros,
politiqueiros, novos ricos, velhos baianos e poderosos em geral: já
podeis respirar aliviados. Porque uma das mais ferinas penas já surgidas
sob o sol da ex-Terra de Vera Cruz acaba de confessar, sem pompa nem
solenidade: não voltará jamais ao Brasil. Acabou. Já era. Bye,bye Brasil
– dessa vez é para sempre. O nome da fera? Ivan Lessa, claro. A
confissão foi feita em Londres.(Que confissão? Que pompa? Que Londres?
Que Brasil? – perguntará, em silêncio, nosso inquieto personagem,
enquanto caminha, circunspecto, por suas florestas interiores).
Que ninguém pense que Mister Lessa – uma das mais reluzentes estrelas de
uma geração marcada por monumentos jornalísticos do porte de Paulo
Francis e Millôr Fernandes – foi acometido por algum surto extemporâneo
de antibrasileirice aguda. Pelo contrário. Longe do país há
ininterruptos vinte e um anos, desde que trocou o sol escandaloso do Rio
de Janeiro pelo cinza made in Britain, Ivan Lessa cultua, a distância,
suas paixões brasileiras. Todo dia dá uma navegada na Internet à procura
de notícias da pátria-amada-idolatrada-salve-salve. É especialista em
MPB. Provocado, é capaz de recitar horas sobre os tempos (áureos?
prateados?) em que as ondas da Rádio Nacional embalavam o
Gigante-pela-própria-natureza, ali pelos anos quarenta, cinquenta. (Que
sol escandaloso? Que cinza? Que navegada? Que gigante? Leave me alone!
Deixem-me em paz! – repetirá, levemente irritado, enquanto desliza pelos
corredores da estação de Holborn).
Todo dia sai de casa, em Londres, para cumprir expediente no Servico
Brasileiro da BBC. Depois de 7.665 dias sem rever o Brasil, deu-se conta
de que não, não planeja voltar – nem em sonho. Deve estar, intimamente,
se perguntando, como o poeta Drummond no verso famoso: "Nenhum Brasil
existe. E acaso existirão os brasileiros?". Mas o Brasil de Ivan Lessa
existe, sim: é pessoal e intransferível. Dispensa o contato físico.
(Que 7.665 dias? Que sonho? Que Brasil? Que contato? Leave me alone,
please! – bradará, por seus alto-falantes internos, enquanto passa a
vista pela primeira página do Financial Times).
Uma vez por ano, Mister Lessa vai passar férias com a mãe, a cronista
Elsie Lessa, em Portugal. A ponte aérea Londres-Lisboa, com eventuais
escalas em Paris, lhe basta.
A visão de Ivan Lessa dedicado a fazer transmissões radiofônicas de
Londres para o Brasil desperta uma dúvida inevitável: não será um caso
escandaloso de desperdício de talento? Quem conhece um ouvinte regular
das transmissões da BBC, em português, para o Brasil? Cartas à redação.
Em todo caso, o sentimento de desperdício pode ser parcialmente
atenuado: graças ao zelo da mãe – que guardou os originais das crônicas -
e à dedicacao de uma colega de trabalho – que organizou o volume – os
leitores saudosos do Ivan Lessa dos tempos do Pasquim ganharam de
presente um volume de crônicas, "Ivan Vê o Mundo".
Aos 64 anos, amarga, sem dramatizar, a ausência da alma gêmea, Paulo
Francis. "Eu estou tendo agora de lidar com um buraco enorme chamado
Paulo Francis, que, de repente, sem mais nem menos, se abriu diante de
mim. O estrangeiro é espantosamente real, irreversível. Não me há mais
Brasil. Fim de papo. Não tem mais ninguém do outro lado da linha" –
escreveu na revista "Veja" nos dias seguintes à morte do amigo de quase
cinco décadas.
Senhoras e senhores: com a palavra, Mister Lessa - ferino, inquieto, irônico, brasileiro como nunca.
(Que zelo? Que desperdício? Que alma gêmea? Que brasileiro? Um Valium, urgente! – murmurará, enquanto se mistura, anônimo, aos frequentadores das livrarias da Charing Cross Road).
1- Você diz numa crônica que o mundo é um lugar estrangeiro,
"assim que a gente bota os pés na rua, fora de casa". O sentimento de
estranheza diante do mundo é indispensavel à vida intelectual ou é algo
que voce sempre teve?
Ivan Lessa: "Você me faz ficar sério… A gente vai ao Camus, a "O
Estrangeiro", o encontro com o outro. Mas olhe aqui: nasci em Sao Paulo;
garoto ainda, a primeira vez que entrei em colégio foi nos Estados
Unidos; quando voltei, fui para o Rio. Depois, garotão ainda, fui para
Paris. Isso não quer dizer nada, era viagem. Mas acho, sim, que o homem é
estranho na terra. Deve manter, por uma questão de saúde mental, essa
sensação de ser um estrangeiro aqui, no meio de árvores, pedras e seja
lá o que for. Os alienígenas somos nós! É isso mesmo, é isso mesmo:
manter a sensação de ser um estrangeiro tem um lado muito saudável. Nao
há motivo nenhum para você ficar muito à vontade no mundo! Não há motivo
para que se diga "estou à vontade". Não, não. Fique com uma certa
timidez. Isso é bom: manter uma certa distância".
2- A essa altura,a ausência prolongada do Brasil (vinte e um anos)
já se transformou num acontecimento importante em sua biografia. Não
vou perguntar por que é que você passou tanto tempo sem ir ao Brasil…
Ivan Lessa (interrompendo): "Que bom!".
Mas vou perguntar: você planeja voltar um dia?
Ivan Lessa: "Não planejo, não planejo mesmo! Não digo que não, porque aí
parece implicância. Mas simplesmente não é algo que esteja em meus
planos. O que planejo é passar novamente as minhas férias de julho, no
ano que vem, em Portugal, porque tenho um apartamento lá. É uma coisa de
rotina. Sou rotineiro. Gosto de rotina porque a rotina me ajuda a me
situar no mundo e a me sentir menos estrangeiro. Eu sei que, em
novembro, darei uma chegada a Paris. Disso tudo eu sei porque são meus
planos. Mas voltar ao Brasil não está nos meus planos, simplesmente.
Nisso não vai birra nenhuma, querela nenhuma, disputa nenhuma. Não estou
reclamando da acústica da plateia, ao contrário de João Gilberto…".
3- São irritantes para você essas teorias que se fazem sobre "por
que é que Ivan Lessa não volta ao Brasil"? O motivo pode ser pessoal: a
mãe mora em Portugal, você vai passar as férias lá e ponto final…
Ivan Lessa: "Sou ruim de número. Quantos são na diáspora brasileira?
Nós, que estamos no estrangeiro? Quantos somos nós, agora? Há um milhão
de brasileiros no estrangeiro? Então, pergunta a eles também! Não estou
sendo desaforado com você - e você sabe que não. Sou apenas um
imigrante a mais que foi tentar uma vida melhorzinha no estrangeiro.
Ponto".
4- Uma das coisas que o fizeram sair do Brasil foi a mania do
brasileiro de assoviar dentro do elevador. Qual é a outra mania
brasileira que lhe "dá nos nervos",como você gosta de dizer?
Ivan Lessa: "Informalidade! Pra resumir numa frase: pegar na gente. Você
sabe o que é que quero dizer? Inglês não pega em você!. Mas se você me
encontra ou se eu encontro você na rua e eu digo "Olá, Geneton, como é
que vai?…" e fico pegando, fico catucando… É como aquele camarada que,
ao falar com você, cola a boca no seu ouvido, como se você fosse surdo.
Dá para fazer toda uma galeria de tipos desagradáveis, num plano
leviano…".
O inglês se limita a um aperto de mão, na primeira vez…
Ivan Lessa: "Uma apresentação, um aperto de mão, como diz o samba de
Francisco Alves. Mas às vezes apertam a mão outra vez, quando veem você
novamente. Francês é que aperta a mão o tempo todo. É um motivo para
não ir muito à França. Se eu trabalhasse com você num escritório e todo
dia apertasse a sua mão na hora de chegar e na hora de ir embora… Há uma
certa pegação. E essa pegação pode ser transcendental: podem querer
pegar na sua alma também! Pegar no seu pé, pegar na sua alma, você pode
estender a metáfora".
Uma das coisas que falam - bem - do brasileiro é esta efusão…
Ivan Lessa: "Nunca vi ninguém falar bem! Não estamos saindo com as mesmas pessoas…".
Quando comparam o brasileiro com estrangeiro…
Ivan Lessa (interrompendo): "Mas efusão para mim é barulho! Um dos
motivos por que saí - mesmo! mesmo! – é que eu não podia nem conversar
na sala com um amigo quando morava no décimo-primeiro andar na avenida
Atlântica, esquina com a rua Bolívar, no Rio, em cima de um bar chamado,
veja você, Transa! Isso que você chama de "animação" …Lúcio Alves ia
cantar lá em casa, eu tinha de fechar as janelas por causa do barulho –
que criava um "funil acústico" capaz de enloquecer qualquer João
Gilberto! E sem ter um Caetano para mediar!" (Ivan Lessa se refere ao
episodio da vaia sofrida por João Gilberto na inauguração de uma casa de
espetáculos em São Paulo, num show em que Caetano tentou conter a
reação da plateia).
5- De que maneira você detectou, fora do Brasil, uma piora nos modos do brasileiro? Isso foi através do telefone?
Ivan Lessa: "Nestas novas gerações de brasileiros com quem vou me
encontrando por um motivo ou por outro, noto, cada vez mais, um excesso
de informalidade. O cara que assoviava no elevador - e me irritava –
hoje piorou muito mais. Hoje em dia, ele já entra assoviando dentro da
minha alma, não apenas no elevador".
6- A vaia a João Gilberto criou um certo escândalo, porque abriu
um precedente: um monumento da MPB levando uma vaia durante um show.
Isso assustou você? Em que situação você justitificaria uma vaia a esses
monumentos da MPB?
Ivan Lessa: "Não me assustou. Com todos "esses" e "erres", não. Em 1958,
eu, com vinte e três anos, economizo meu dinheiro para ir ver Billy
Eckstine cantar no Fredy’s, na esquina da avenida Princesa Isabel com
Atlântica. Peguei uma mesa quase ao lado do palco. Entre mim e o palco,
havia uma mesa com Abrahão Medina e Sônia Dutra. Nesta época, Abrahão
Medina patrocinava nada mais, nada menos que o programa "Noite de Gala",
em que Billy Eckstine iria se apresentar na segunda-feira. Eles falaram
o tempo todo! Billy Eckstine, então, parou de cantar e pediu para eles
calarem. Delicadamente. Eu estava ali vendo o Billy Eckstine fazendo
aquilo, porque a importância de Billy Eckstein para mim é uma loucura.
Para quem tem vinte e três anos e economizou para ver o show… Ele estava
cantando "Blue Moon". Se em 1958 este era o comportamento da plateia
com um astro internacional, por que é que vão interromper o papo para um
sujeito chamado João cantar ou tocar violão? Nós somos muito
mal-educados! É o negócio do cara que entra assoviando no elevador. Há
gente que não assovia no elevador, só assovia no show de João…".
Caetano Veloso deu, depois, uma entrevista irritada dizendo que eram cinquenta imbecis… .
Ivan Lessa(interrompendo): "Deu uma entrevista irritada, mas era uma
daquelas falas demagógicas dele. Disse que os que vaiavam "não me estão
no coração" ou algo assim. Em vez de chamar de filhos da puta! Rodou a
baiana, mas rodou muito mal pra cima deles. Deveria ter dito assim:
"Respeitem! João está reclamando da acústica! Parem de fazer barulho!" -
e não ficar falando "meu coração não se alegra…". Não! Respeitem o
artista, deixem-no cantar, mesmo que fosse uma merda! Mas deixem que ele
cante! Fiquem quietos por cinco minutos. Não demora mais do que cinco
minutos uma música!".
Um caso que foi lembrado, porque envolvia gente da estatura de João
Gilberto, foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buaque levaram naquele
festival em que cantaram "Sabiá"…
Ivan Lessa: "Mas ali havia torcida, era festival no Maracanãzinho,
povão, todos eles insuflados, incentivados pela Globo. Aquilo vai
adquirindo um clima de Fla-Flu, coisa que não havia no Credicard Hall.
Era um pessoal que pagou – ou não – apenas para ver um cantor. O
pessoal, no Maracanãzinho, estava torcendo, "eu torço por Tom Jobim"…
Não era o ano de Geraldo Vandré? Ele todo de preto, naquela época só ele
e o violão. Mas aí é pra torcer. Se você não torcer num Fla-Flu, se
quer ficar sentadinho, deve ter algo de errado com você. É melhor vir
para Londres, porra!".
7- Quando publicou o primeiro romance, "Cabeça de Papel", Paulo
Francis ficou deprimido ao constatar a falta de repercussão cultural do
que se faz no Brasil. Francis achava que o romance iria ter uma
repercussão muito maior. Disse que ficou deprimido, deitado, olhando
para o teto. Você tem também tem essa sensação? Assim como Paulo
Francis, você acha que o Brasil vive num "sertão cultural"?
Ivan Lessa: "Francis era meio ingênuo em certos troços. Eu disse: "Oh,
rapaz, esse negócio de romance, livro, o pessoal fala pra burro, você dá
entrevista de duas páginas pra Veja e pra Istoé, sai nos quatro jornais
de sempre - Folha, Estadão, Globo e JB - e, depois, acabou! É isso
mesmo, porra!. Assim como aqui na Inglaterra, você vai e escreve um novo
romance! Investe mais dois anos nisso!".
Mas Francis não pegou isso. Nesse ponto, eu sempre fui muito mais velho e
muito mais cético do que Francis: talvez por este motivo é que ele
tenha ido para Nova Iorque e eu, para Londres".
…Paulo Francis teve sucesso como romancista…
Ivan Lessa: "Mas ele tinha o "post-romance-tristis…". Adaptando o
post-coitum tristis, é o que tinha. Ficava deprimido. Mas não penso em
sertão cultural nenhum não. Eu acho que há sertão cultural sim, mas não
por causa do livro de Francis. Ele estava partindo do livro que tinha
lançado. Eu não tenho porra nenhuma. O que acho triste é o fato de o meu
livro sair! Fiz as crônicas na esperanca de que fossem se perder no
éter… Nunca guardei cópia".
8- …Mas você não guarda o que você escreve?
Ivan Lessa: "Não! Quem guarda isso é mãe, tia…"
9- Sua mãe não guarda?
Ivan Lessa: "…Mas essas crônicas só saíram porque minha mãe guardou! Eu
escrevi entre 1978 e 1992 para o serviço brasileiro da BBC. Revezava,
nos primeiros anos, com Vamberto Morais. Num domingo era eu, no outro
era ele. Depois, fiquei eu. São quatorze anos de crônica. Eu escrevia em
casa, entrava no estúdio, gravava, botava aquela fita amarela no comeco
e a vermelha no fim e deixava lá numa caixa azul, com uma cópia para
que o sujeito que fazia o transmissão da noite soubesse o começo e o
tempo. Depois, alguém arquivava lá. Mas nunca guardei cópia pra mim. Um
dia, uma secretária escocesa estava limpando lá e me perguntou: "Você
quer isso aqui?", Era um punhado de crônicas, um cadernão daqueles
grandes. Eu disse: quero. Por um acaso, era fim de ano, época em que
minha mãe vem para cá, passar o Natal. Botei tudo dentro da pasta de
trabalho, cheguei em casa e disse: "Elsie, você quer isso aqui?". Então,
ela levou tudo com ela, para Cascais, Portugal. Helena Carone – que
estava preparando um livro baseado em contribuições que eu fazia sem
script para a parte cultural das transmissões do servico brasileiro da
BBC – iria fazer a transcrição do que eu tinha falado com ela. Mas aí eu
estava em Cascais, como todos os anos, monótonamente, passando minhas
férias, mexendo na caixa da Elsie depois do almoço. Terminei achando as
crônicas. Desci, fui ao português lá de baixo tirar xerox do que sobrou.
Desses quatorze anos, sobraram umas oitenta crônicas, só. Trouxe para
cá. Dessas oitenta, Helena selecionou quarenta. As menores, as que não
chegam a uma página, evidentemente não eram crônicas: eram transcrições
da minha colaboração com o programa cultural".
Numa gravação que fez com você, na BBC, Paulo Francis disse que, diante
da sociedade de massas, filistina e medíocre, ele se sentia
"tecnicamente morto"…
Ivan Lessa: "Agora eu me lembro…"…
10- Você tem também essa sensação de ser um peixe fora do aquário?
Ivan Lessa: "Absolutamente! Absolutamente! Talvez porque Francis
vivesse muito mais no Brasil e dependendo do Brasil. Repare que o
dinheiro de Francis vinha do Brasil. Então, muito corretamente, ele
tinha de ir lá para regar a flor da carreira dele. De seis em seis
meses, Francis estava no Brasil, não só para rever os amigos – e ele os
tinha, muitos – mas para se acertar com o pessoal da Folha e, depois, o
Estadão. Francis ganhava em dólar, mas era dinheiro que deixava o país.
Eu, não. Eu ganho aqui mesmo, em Londres. O dinheiro quem paga é o
contribuinte britânico. A verba da BBC é do ministério do interior. Em
resumo: o que quero dizer é que não tenho necessidade de regar a flor da
minha profissão. Como ia ao Brasil, Fancis talvez sofresse com esse
deslocamento. Dava o choque de ida e vinda. A cada vez que descia no
Galeão, sentia uma emoção, possivelmente. A cada vez que descia no
Aeroporto Kennedy de Nova Iorque, também. Eu, não. Meus aeroportos são o
Charles De Gaulle, o de Heatrow e o da Portela, em Lisboa, onde me mexo
mais".
Mas quando Francis se declarava "tecnicamente morto" não estava se referindo apenas ao Brasil, mas a uma situação geral…
Ivan Lessa: "Francis tinha uma variação nos "moods". Eu não traduzi
essa. Tinha as suas ruas. Como é que que se diz quando alguém sobe e
baixa…"
Era ciclotímico…
Ivan Lessa: "Tecnicamente, era ciclotímico. Eu,não. Estou na média
ponderada. Não sou muito entusiasmado, mas não tenho depressões, graças a
Deus. Também estou muito moço ainda: só tenho sessenta e quatro anos.
Pode ser que a depressão venha ainda".
Eu me lembro que você me disse uma vez que quer é ficar na arquibancada – olhando o jogo…
Ivan Lessa: "Agora, nem na arquibancada! Quero ver o jogo pela TV a cabo".
Em breve, a TV brasileira vai chegar à Inglaterra, por assinatura….
Ivan Lessa: "Tomei contato com o Brasil agora nas minhas férias em
Portugal, porque tinha o GNT e o Canal Brasil.Vi filme que não acabava
mais. Tudo o que podia. Fico muito tempo em casa, na piscina. Depois que
saio da piscina, entro no apartamento e faço questão de ver tanto a
programação do GNT como, principalmente, os filmes. Honestamente, pra
ver chanchadas, essa coisa toda, eu não morria de saudades. Não tive
surpresa nenhuma em constatar que eram muito ruins. Eu, na epoca, já
achava ruim, mas via e gostava de ver. Já os filmes mais pretensiosos,
esses foram uma luta para ver. Puta que o pariu! Eu acho que, em cinema,
a gente é ruim. Cinema a gente deveria esquecer. Com uma exceção. Você
vai brigar comigo: gostei muito de todos os filmes que vi do Júlio
Bressane. Vi "Brás Cubas", "Tabu", "Matou a Família e Foi ao Cinema" e
"Cara a Cara". Eu não tinha visto quando estava no Brasil. Quando morava
no Brasil, eu não via filme brasileiro porque achava um saco. Gostei
muito, achei muito pessoal".
Júlio Bressane tem um estilo…
Ivan Lessa: "Exatamente! Um estilo urbano, safado – de citação. Eu sinto
que ele faz para seis pessoas, seis entendidos, no bom sentido".
Você escreveu que aqui no Brasil são trinta pessoas vendo um o que o outro faz…
Ivan Lessa: "Num artigo sobre 68, eu disse que eram quarenta pessoas
fazendo coisas para quarenta pessoas assistirem: teatro, cinema,
bossa-nova. Eram só quarenta pessoas. Aliás, eram quarenta fazendo e
quarenta consumindo. De vez em quando, havia um troca-troca".
Um dos dos problemas do cinema é industrial. Se o Brasil não tem uma
indústria de ponta, não vai ter um cinema. Se você não tem equipamento
de última geração, não vai fazer, porque cinema não cai do céu. Vai
haver sempre um problema técnico…
Ivan Lessa: "Isso tudo completa o que estamos falando. Nós estamos
ligadíssimos a tudo o que é americano. Então, a narrativa vai ser a
convencional americana, com começo, meio e fim americano. Você pega um
filme francês: eles tentam escapar. O nocivo que vem dos Estados Unidos
nao é a Barra da Tijuca que sofre não. É o proprio Central do Brasil".
11- O Brasil aparece como sonho ou como pesadelo em suas noites londrinas?
Ivan Lessa: "Estou fora do Brasil há vinte e um anos enfileirados. Mas
sonho é sempre desinteressante, é sempre bobagem. De vez em quando é
ruim, é pesadelo. Hoje, segunda, por exemplo, eu entro na Internet para
imprimir colunas de Elio Gaspari, Carlos Heitor Cony, Janio de Freitas.
Em resumo: passando os olhos, fico horrorizado com o Brasil. Claro que
fico. Acho o jornalismo de muito baixa qualidade. O nosso jornalismo
piorou muito. Muito mesmo. Não quero aí entrar com meu plangente violão
do saudosismo, mas piorou mesmo. Quanto a sonho e pesadelo, digo o
seguinte: até os dez, quinze anos de ausência do Brasil, um e outro
ocontecem. Depois, quando você completa dezoito anos fora, o Brasil
fica longe, no tempo e no espaco. Nesta hora, você tem de botar Einstein
na equação, porque o negócio fica totalmente imponderável. O Brasil
fica mais distante do que um assunto como o tráfico de escravos e a
Grã-Bretanha, tema de um documentário que gravei em vídeo ontem e hoje
na tv. Por incrível que pareça, é um assunto que fica mais próximo de
mim e dos problemas atuais que vivo no sentido de sair de casa, pegar o
metrô e ir para o trabalho’’.
12- Você reclama de que o calor "’prega peças em nossa
sensibilidade, inteligência e discernimento". Você faz alguma relação
entre calor e incivilidade? Historicamente, parece que existe alguma…
Ivan Lessa: "O calor dá sono. Você dorme, fica de calção ou até pelado.
Fica ali pelo Rio, dá uma porrada no peixe. Mas o frio obriga você a ter
roupa, a sair para matar um urso. É mais complicado matar urso do que
matar peixe. "Matar urso" quer dizer fazer um guarda-roupa de inverno
mais adequado. Com o frio, você tem de fazer casa, é obrigado a produzir
calor. Não adianta estender a carne no sol- Pernambuco que me desculpe.
Então, vou naquela que diz que o frio civiliza. Qual é o outro lugar
comum? "Nunca houve uma civilização abaixo dos trópicos". Não discordo
muito. A mim, pelo menos, num aspecto pessoal, o frio me civiliza".
Há o lado estético também: o frio obriga as pessoas a se vestirem melhor…
Ivan Lessa: "Exatamente! Eu,como estou engordando, disfarco melhor a barriga com roupa de frio…".
13 – Você escreve que desenhos e caricaturas de seus amigos,
pendurados na parede de casa, parecem dizer: "era uma vez, era uma vez,
era uma vez…". É natural achar o passado sempre mais interessante que o
presente?
Ivan Lessa: "Nao é questão de ser interessante. Há no livro – o que
sobrou das crônicas que faço na BBC – um nítido saudosismo. Quem escreve
crônica tem a tendência a se autobiografar, no sentido de se entender.
Procuro evitar a babaquice, a nostalgia pela nostalgia, o saudosismo
pelo saudosismo, mas é uma maneira de a gente se entender e se
autobiografar. Todo mundo, numa certa altura da vida, quer se botar em
ordem. Já que vimos, neste fim de milênio, que o sofá de Freud não deu
certo, queremos nos botar em ordem, então.
Mas há um detalhe que acho importante na ligação com o passado. É uma
coisa muito, mas muito importante mesmo. Poucas pessoas entenderam o que
vou dizer agora: o passado não só ajuda você (nós, a gente, um povo) a
se entender, mas também nos ajuda a compreender aquilo a que
aspirávamos! Isso é muito importante! Se você pegar a arquitetura do
Recife ou da Bahia ou do Rio ou de São Paulo, há uma aspiração ali!
Vamos para Brasília: há uma aspiração naquela arquitetura. Um dia,
possivelmente, vão derrubá-la para fazer outra coisa em cima. Então, não
é endeusar o repertório de Orestes Barbosa ou de Noel Rosa… Aliás,
devemos endeusar sem esquecer jamais que aquilo é uma contribuição à
cultura. Mas a conexão com o passado é tambem a conexão com a nossa
aspiração como um povo, como um todo. O lugar comum é aquele: você vai
ao passado para se entender. Mas é para entender aquilo a que a gente um
dia aspirou,rapaz!"
Quem olhar para a Barra da Tijuca, daqui a trinta anos, vai ver que
aquilo é uma cópia de Miami. Hoje, então, existe um Brasil que aspira a
ser Miami…
Ivan Lessa: "Eu li, no New York Times, um artigo excelente sobre a
Barra, escrito por um americano, dizendo exatamente isso. O autor do
artigo vai enfileirando desde a arquitetura até os nomes dos lugares,
feito este Credicard Hall. Eu acho até que ele errou um pouco, ao dizer
que o Leblon e Ipanema estavam mais ligados à Franca. Dá como exemplo
aqueles edifícios do Sérgio Dourado, já nos anos setenta, com nomes
franceses. Mas ai ele errou, porque nossa influência francesa é muito
anterior, pode ser vista no Teatro Municipal – que é o Opera’’.
14 – Quando a Disneylândia Paris foi inaugurada, os franceses
disseram que aquilo era o Chernobyl cultural. Ariano Suassuna escreveu
que aquele era o maior monumento à imbecilidade humana. Você, que esteve
lá ,concorda com essas duas avaliações?
Ivan Lessa: "Sem dúvida nenhuma! Mas acontece que, como tudo o mais, vai
ficando natural. Os japoneses devem ter ficado muito mais chocados que
os franceses, mas aceitaram docilmente. Os franceses já aceitaram
também. Devem rir um pouco das pessoas que vão lá. Mas acabam aceitando,
como parte da paisagem. Hampstead, aqui em Londres, é um bairro metido a
besta, intelctual, mais ou menos como Ipanema nos anos sessenta. Não
tinha McDonald’s lá. Para conseguirem abrir um McDonald’s lá, foi uma
luta. Então, fizeram uma fachada meio disfarcada, mas abriram um
McDonald’s em Hampstead, sim. Você acaba aceitando. Vai em frente! É a
globalização,rapaz, a escrotidão! É essa Barra da Tijuca. O artigo do
New York Times lembra que a Califórnia também aparece na Barra da
Tijuca".
É americana nesse sentido: para viver e se deslocar na Barra da Tujuca, você tem de ter carro…
Ivan Lessa: "Como na costa oeste americana! Se a polícia vê você
andando, em Los Angeles ou Beverly Hills, ela para imediatamente para
pedir documento. É o que estou dizendo: qual é a diferenca entre a Barra
da Tijuca e a Disneylândia? Apenas que a Disneylândia é mais
organizada. Pateta, o camundongo Mickey e o Pato Donald são vizinhos
melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca".
….Onde haverá uma réplica da Estátua da Liberdade…
Ivan Lessa: "A história da réplica da Estátua é que motivou a reportagem do New York Times…".
As agências do Banco do Brasil exibem placas dizendo "personal banking"
junto dos caixas eletrônicos. Sem patriotada: por que nao escrever em
português?
Ivan Lessa: "Isso é grotesco. Eu abro o jornal. Todo mundo tem "personal
trainer". Não! É demais! Você aceita, na lingugem da economia, um
"over" aqui, ou uma "net", ou palavras como "deletar". Mas o presidente
da República falar em "cenário" no sentido de hipótese, não! Um absurdo!
A Academia Brasileira de Letras foi criada para proteger a língua e
para ajudá-la a lidar com inovações. Então, ao invés de ficarem se
premiando, deveriam dar uma mãozinha, porque supostamente são
alfabetizados! Não digo forçar a barra como os franceses tentaram, ao
baixar uma lei para que quarenta por cento de toda música tocada tem de
ser francesa… Computador na Franca é "ordinateur". O software é
"logiciel". Pelo menos tentaram. E essas duas palavras pegaram. O
aparelho de gravar é "magnetophone". O que quero dizer é o seguinte:
deve haver um esforço no sentido de tentar traduzir. O jornalismo entra
aí…".
Um deputado brasileiro vem tentando criar uma lei que limite o uso de expressões inglesas em locais publicos…
Ivan Lessa: "Nao dá. Legislar a língua não pode. A Academia Brasileira,
já que é um dos poucos lugares onde há supostamente intelectuais
reunidos, e com algum poder, poderia tentar sugerir. Antonio Houaiss não
estava lá com um projeto de reforma ortográfica que era uma besteira
enorme? A Folha, o Estado de S.Paulo não têm manual de estilo? Sempre
que possível, deveriam tentar traduzir as palavras, porque elas pegam…".
15- Você - que é especialista em música popular brasileira dos
anos quarenta e cinquenta – acha que a MPB daquele tempo era melhor do
que a de hoje?
Ivan Lessa: "Não estou no Brasil para acompanhar, mas acho que, em
matéria de música popular, a gente é danado de bom. O último que ouvi
foi Ginga, qualquer coisa que Aldir Blanc faz eu acho sensacional.
Honestamente! Outros nunca ouvi. Anunciaram um concerto enorme aqui em
Londres com a turma de sempre - Caetano, Gil, Chico Buarque - e uma de
quem nunca ouvi falar: Virgínia Rodrigues. O que quero dizer, então, é
que não estou acompanhando. Caetanices à parte, tiro o chapéu para
Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque não sou idiota. Brinco com eles,
mas não sou idiota para não ver o extraordinário talento que existe ali.
Eu acho que estamos melhores em música do que em futebol. Vi trechos do
Brasil e Holanda… Há o lugar comum que diz nós, brasileiros, sempre
fomos bons de futebol e bons de música. Somos bons! Então, acho que a
música não piorou…".
Houve brigas com os baianos, herança da época do Pasquim, principalmente com Caetano Veloso…
Ivan Lessa: "Jaguar chamava de baiunos…"…
As brigas eram com Millôr Fernandes, o próprio Paulo Francis…
Ivan Lessa: "Os baianos enchiam muito o saco, com muita autopromoção.
Era odara, oxalá, como é aquele negócio azul? Araçá azul! Uma fase de
Caetano Veloso. Então, Caetano tem aquele negócio de se reiventar. É a
fórmula de David Bowie, a de ter "personas" artísticas. Implico um pouco
com a parte promocional, mas o produto final, o que me interessa, é o
disco. Uma das vantagens de não estar no Brasil é que só me chega o
disco; não tenho de acompanhar as entrevistas, ver aquelas tolices
enormes e aquelas bobajadas que as pessoas são obrigadas a dizer para
promover. De certa maneira, estou dizendo minhas bobajadas aqui para
ajudar a vender o meu "disquinho",o livro. Mas quanto ao produto final
nao tenho dúvida nenhuma".
16 – Durante anos houve aquela briga, entre aspas, entre o público
de Caetano e de Chico Buarque, hoje inteiramente superada. Você chegou a
tomar partido?
Ivan Lessa: "Não, porque era bobagem tomar partido. Eu poderia gostar
mais do que Chico fazia. Meu Deus do céu: eram anos em que Chico não
errava uma! Com essa mania de fazer listas neste fim de milênio, se você
tiver de fazer uma lista de cinquenta álbuns (vamos falar de álbuns
conceituais, com começo, meio e fim), "Construção", o álbum de Chico
Buarque, é uma loucura, rapaz! Chico fazia uma atrás da outra. Pá,pá,pá!
Havia, em Chico Buarque, uma consistência de qualidade que era
absolutamente extraordinária. Então, eu apenas gostava mais de Chico, o
que não significava que eu fosse brigar com Caetano Veloso. Os dois
davam concerto, cantavam juntos aquela "Bárbara,Bárbara…"(cantarola a
música do disco "Chico e Caetano Juntos e ao Vivo", lancado em 1972).
Então, essa briga, para efeitos de Pasquim ou de sacanagem no botequim
da esquina ou na mesa de bar, tudo bem, acho que vale. Mas – falando
sério mesmo – acho que não vale não! Apenas Chico me falava mais. Sou
mais urbano, estou por fora de orixá, araçá azul, odara e mandacaru
vermelho! Eu estou por fora dessas porras! Letra de Aldir Blanc marca
minha vida. Eu manjo o "dois prá lá, dois prá cá". Eu estive lá!".
17 – Você constata que o fôlego literário brasileiro é curto, com
exceção de Euclides da Cunha. Enquanto o resto da América Latina produz
escritores que você chama de "caudalosos", nós seriamos "excelentes" no
ping-pong do conto, com Machado de Assis, Dalton Trevisan, entre outros.
Você não acha que um país que, pelo menos geograficamente, tem vocação
para grandeza, como o Brasil, não deveria produzir também uma literatura
mais épica?
Ivan Lessa: "Se não produzir, há algum motivo. Cabe a pessoas mais bem qualificadas do que eu entender o por quê.
Mas há o reverso do que falei. Citei o conto, mas me esqueci de citar os
nomes de três gigantes: Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e
Carlos Drummond de Andrade. O que é a poesia se não a linguagem em alta
tensão? Você tem aí três poetas de estatura mundial em qualquer época!
Já que vivemos esta febre de fazer listas neste fim de milênio,
seguramente você pode botar essses três em qualquer lista dos maiores
poeta do século! Você sabe muito bem que não sou ufanista nem
nacionalista. Era apenas uma crônica o que escrevi. E crônica é para
sair no jornal e, no dia seguinte, estar embrulhando peixe, aquela velha
história. Se você parar e pensar, além de Dalton Trevisan, Rubem
Fonseca ou dos cronistas que não citei, como Rubem Braga, basta citar
estes três poetas. Nossa Senhora! O Brasil dá um banho em poesia! Do
outro lado do Atlântico, você tem Fernando Pessoa".
18- A presença do Brasil no exterior se deve basicamente ao
futebol – em primeiro lugar – e à musica popular, em segundo. O fato de o
Brasil ser sinônimo de futebol e música é sempre um motivo de orgulho
ou é um incômodo para você – que vive fora do país?
Ivan Lessa: "Para efeito externo, faço assim (e sei que estou fazendo
conscientemente de birra; senão, teria enlouquecido há muito tempo):
"Ah, esse time não é de nada, é uma cambada de vagabundos, esse
Ronaldinho não vale porra nenhuma, vai perder para os franceses, eu
torco pelo Zidane e essa coisa toda… Mas não. O que me chateia é o
torcedor! O inimigo é o amigo. O inimigo é esse cara que vive dizendo
"somos os maiores, o Brasil já ganhou, é o tetra, é o penta, Caetano
Veloso é o maior do mundo, a música brasileira é a melhor!". O inimigo é
esse!".
19- Qual é a grande música brasileira do século vinte? Qual é a canção que você vai passar o resto da vida ouvindo?
Ivan Lessa: "O título do romance que não escrevi seria "Nos Astros,
Distraído". Então, por aí você tem uma ideia (Nota: o título vem da
letra da música "Chão de Estrelas", o clássico de Orestes Barbosa e
Sílvio Caldas). O livro que não escrevi fala de um camarada que, em
1949, vivia de biscate, um tipo que conheci muito no Rio de Janeiro dos
anos quarenta e cinquenta. Era um sujeito que escrevia para a Rádio
Nacional, tentava escrever. Para cinema, ele estava tentando fazer uma
daquelas cinebiografias terríveis da Atlântida, filmes de meio de ano,
sobre Noel Rosa. Para rádio, ele vai tentar fazer a de Orestes Barbosa.
Então, esse era o tema do romance: eu ia levando num tom de deboche.
Resolvi escolher 1949 porque em 1949 não existia ditadura: era Dutra.
Ainda não tinha Maracanã e, principalmente, não existia televisão. É
por isso que o romance se passava em 1949. Era um tipo que tinha como
influência cultural os cinemas da praça Saenz Peña e o rádio que ele
ouvia… Então, quanto à musica, estou entre Noel e Orestes, entre asfalto
e morro, se bem que, a rigor, Noel falava de morro mas não subia morro
não. Era asfalto tambem".
20- Você parou em que altura o romance? Chegou a escrever?
Ivan Lessa: "A sinopse do Noel foi publicada no primeiro exemplar da
revista dos meninos do Casseta & Planeta. Eu dei pro Reinaldo".
21- Quase tão irritantes quanto as cobranças sobre por que você
não vai ao Brasil deve ser a cobrança sobre por que você nao escreveu
até agora "o romance da sua geração". Você não tem vontade?
Ivan Lessa: "Não tenho nenhuma vontade mais. Eu escrevi alguns
capítulos, porque tinha um negócio bolado. Mas veio a preguiça. Bateu-me
o Caboclo Macunaíma. Ai, que preguica (dá uma gargalhada)… Pura
preguiça! Nada mais brasileiro que Ivan Lessa. Preguiça! Macunaíma!".
22- Você confessa que sentiu mais uma manhã de Sol em Copacabana,
num banco com a namorada, do que o suicidio de Ana Karenina de Leon
Tolstoi. Isso quer dizer que, invariavelmente, a vida é superior à
literatura? Ou a literatura pode ter também o poder de marcar a gente
pelo resto da vida, através de uma frase, uma passagem?
Ivan Lessa: "Eu, levianamente, escrevi essa frase numa crõnica. Mas,
para ficar pretensioso, qual é o subtexto do que eu escrevi? É que
talvez, ao ler Ana Karenina, você se empolga, acompanha a mulher até ela
se jogar embaixo de um trem, mas, se você se lembrar dessa meia hora na
praça ou num jardim, evidentemente essas experiencias têm, em você, um
impacto pessoal que a literatura jamais vai dar. Posso, agora, ler um
poema terrível, terrível. Vamos ficar no João Cabral. Pego o poema O Rio,
é um horror aquilo que ele narra, mas é tao bonito, é tao bem-feito que
você sai quase empolgado. Então, esse é um velho problema de arte: você
pode despertar a atenção para uma coisa, mas termina filmando
bonitinho… Tenho um tape guardado com o "Morte e Vida Severina",
dirigido por Avancini. Há umas nuvens bonitas. Nunca vai ser o horror
que é a vida real. O que quero dizer é que um livro pode me ajudar para
que eu busque, em mim, os meus próprios dados para entender certos
problemas básicos, como vida, copulação e morte. Isso soa pretensioso.
Minha crônica é leve".
23- Logo depois da morte de Paulo Francis, você deu um depoimento
obviamente desencantado dizendo que já não tinha interlocutores: "Só sei
que de repente passei a me sentir mais sozinho do que nunca, mais
distante ainda de um Brasil que deixou de existir, talvez nunca tenha
existido. O estrangeiro é espantosamente real, irreversível". A sensação
permanece?
Ivan Lessa (depois de um breve silêncio): "Permanece. Permanece. Mas tudo bem".
(Entrevista gravada em 1999)Geneton Moraes Neto
No Dossiê Geral
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