Quem pensava que o julgamento do mensalão seria um pelotão de
fuzilamento já deve estar com as barbas de molho depois do voto de
Ricardo Lewandowski.
Você pode pensar o que quiser de Lewandowski. Pode até lembrar que dona
Marisa Lula da Silva teve grande influência em sua nomeação para o STF. E
pode até achar que isso desqualifica sua escolha e seus votos.
Mas Lewandowski deu um voto claro e bem pensado, com argumentos e com fatos relevantes. Os especialistas dizem isso. Não eu.
Na véspera, ele condenou Henrique Pizzolato, Marcos Valério e outros
envolvidos em desvio de verbas do Visanet. Parecia que ontem iria
repetir a dose, condenando João Paulo Cunha, que era presidente da
Câmara de Deputados e foi acusado por Joaquim Barbosa de um desvio de
pelo menos R$ 10 milhões em verbas de publicidade da Câmara de
Deputados.
Lewandowski questionou essa acusação com dados obtidos por auditores do
TCU. Mostrou que o dinheiro supostamente desviado foi usado aonde
deveria e por quem deveria.
Também mostrou dados que sugerem que os 50 000 reais — a única
vinculação conhecida de João Paulo com o esquema de Marcos
Valério-Delúbio Soares — que a mulher do deputado foi buscar no Banco
Rural foram usados com despesas de campanha. Citou vários testemunhos
para sustentar isso. Citou peritos e se apoiou em vários documentos.
Você pode, é claro, duvidar dessa interpretação. Mas é recomendável
encontrar fatos para apoiar o que pensa. A tese da acusação é que os 50
000 foram usados como propina para Valério conseguir o contrato de R$ 10
milhões. Verdade? Mentira? Apenas com fatos novos é possível sustentar
uma outra visão.
Após o voto de Lewandowski já não vale ficar falando que tudo é
“pizza” e clamando contra a impunidade sem que se saiba, com clareza, o
que deve ser punido, quem, por que, com base em que.
E agora?
É certo que teremos nova confusão. Depois de deixar a definição do
sistema de votação para o plenário, Ayres Britto terá de se haver com um
conflito anunciado. Na segunda feira Barbosa quer responder ao voto do
revisor.
Lewandowski, por sua vez, já disse que se houver replica do relator, ele
vai querer uma tréplica. E aí ninguém sabe como a coisa vai continuar.
Só é preciso lembrar que vai ficar feio se surgirem tentativas —
insinuadas entre comentaristas e observadores do julgamento —
interessadas em enquadrar Lewandowski. Já começam a dizer que ele falou
demais, que extrapalou…
Agora se diz que o papel de revisor não pode ser contestar o relator,
contrapor-se, apresentar outra visão. Conhecemos essa conversinha.
As regras do fatiamento foram apresentadas na última hora para o
tribunal. Se outros juizes já tinham conhecimento delas, o próprio
Lewandowski deixou claro que era o último a saber. A defesa fez o
possível para convencer Ayres Brito a voltar atrás. A resposta foi um
sorriso antes da explicação de que a matéria estava (ou era) preclusa…
Não é conveniente, agora, mudar as regras de novo.Vai ficar feio. Vai
dar a impressão de que as regras só servem quando ajudam uma das partes.
E só estamos no primeiro item do voto de Barbosa. São oito. Se tivermos
réplicas e tréplicas todas as vezes, vai ser difícil dizer que a defesa é
que está fazendo tudo para prolongar o julgamento e impedir um veredito
antes das eleições para prefeito.
E os demais ministros, quando começam a votar? Ninguém sabe. E o Cezar
Peluso, cuja aposentadoria motivou tantas mudanças no calendário e até
no sistema de votação, como fica? Muito menos. Se der empate no final,
como fica o voto de Ayres Brito? Votará duas vezes?
Essa é a dura realidade do julgamento. Já tinha sido um pouco exagerado
definir claramente as regras de votação — o fatiamento — quando todos
estavam certos de que seria um debate convencional, com o ponto de vista
do relator, depois do revisor e assim por diante.
O voto de Lewandowski foi importante por causa do conteúdo. Mostrou que é possível apontar fragilidades na denúncia.
Deixou claro que a tese da “organização criminosa” que comandava uma
rede de assalto ao Estado, com seus núcleos e uma divisão de trabalho de
estilo mafioso é muito fácil de descrever mas difícil de demonstrar com
provas consistentes. É fácil falar em “compra de consciência” para quem
acredita que todos os políticos são corruptos.
Mas é difícil sustentar que isso aconteceu quando as pessoas têm o
direito de se defender, de dar sua versão e usufruir de todas as
garantias de um regime democrático. São centenas de testemunhas que
negam a denúncia. Não custa lembrar. Há muito tempo a testemunha
principal parou de dizer aquilo que disse.
Lewandowski foi ouvir o outro lado, foi perguntar aquilo que ninguém sabia e não queria saber.
Não inocentou ninguém por princípio. Tanto que na véspera ele deu um voto igual ao do relator.
Mas ele deixou claro que enxerga a denúncia de uma forma mais
sofisticada, diferenciada, numa visão que se encaminha para negar que
todos estivessem envolvidos na mesma atividade, fazendo as mesmas
coisas, porque todos fariam parte de uma “organização criminosa, “sob
comando de um “núcleo político”, e outros “núcleos” estruturados e
organizados. É claro que Lewandowski enxerga o crime, o roubo, a
bandalheira. Mas sabe que há casos em que é legítimo falar em corrupção.
Em outros, há crime eleitoral.
Mas não quer fingir que tem o domínio de fatos que não conhece por
inteiro. Por isso ele diferencia a “verdade processual”, aquela que se
pode conhecer, da “Verdade,” aquela que se pode até imaginar, conceber,
descrever, mas não cabe nos autos.
Vamos falar de vida real.
É complicado imaginar que José Dirceu e Luiz Gushiken pudessem
participar de uma mesma organização. Mesmo quem quer acreditar que
ambos são personagens sem uma gota de escrúpulo — é uma hipótese —
deveria saber que é difícil imaginar que os dois pudessem ficar mais de 5
minutos em qualquer tipo de organização, mesmo que fosse uma inocente
tropa de escoteiros – muito menos uma quadrilha, que exige um grau de
confiança, de intimidade e lealdade que os dois nunca tiveram. Eles
passaram boa parte da vida pública, da campanha e do governo
conspirando um contra o outro, falando mal um do outro, disputando e até
se sabotando. Como é que poderiam se unir para uma ação comum,
clandestina, arriscadíssima? Como é que o Gushiken, aliado e padrinho de
Palocci no início do governo, iria subordinar-se a Dirceu, adversário e
concorrente?
A visão que ignora as verdades duras da política não combina com essa
denúncia. É coisa de quem pretende acreditar que todos são criminosos
comuns, 100% despolitizados.
Voltando a Lewandowski. Ele deixou claro que, para acreditar na tese de
que Joáo Paulo desviava recursos públicos da Câmara – isso é sempre
importante para caracterizar corrupção – seria preciso acreditar que ele
envolveu as principais empresas de comunicação do país nessa
empreitada.
Se fossem verdadeiras, as célebres falsas despesas que teria declarado
para desviar dinheiro envolviam os principais grupos de midia do país,
as emissoras de maior audiência, os jornais de maior circulação e etc.
Imagine o surrealismo: os mesmos grupos que faziam a denúncia do
mensalão durante o dia estariam se locupletando com Joáo Paulo à noite
pelo mesmo crime que denunciavam. Me desculpem. Se isso fosse verdade, o
“maior escândalo da história” teria de ser chamado de “mensalão do
português”, com todo respeito, apenas como uma homenagem aos tempos em
que nossos humoristas se vingavam de nossa experiência colonial. Mais
uma vez, está tudo lá, com recibo, perícia e assim por diante. Ou seja:
ao menos neste caso não houve desvio, nem terceirização suspeita. Os
veículos de comunicação receberam pagamentos legítimos para veicular
publicidade definida em campanhas da Câmara. Ponto. Parágrafo.
O voto de Lewandowski tem a modéstia de quem admite que está diante de
uma realidade mais complexa e compreende que ela só é compreensível a
partir de uma visão sofisticada, sem simplismos nem frases de efeito.
Não sei qual efeito seu voto terá sobre os demais ministros. Também não
faço ideia de seu posicionamento nos próximos itens do julgamento.
Mas está na cara que sua intervenção, que teve de ser reescrita à
última hora para se adaptar as regras a que só foi apresentado com o
debate já em andamento, representou uma contribuição lúcida ao debate.
Ninguém precisa estar de acordo com ele. O julgamento só começou e
ainda há muito para ser debatido. Algumas das vozes mais experientes da
casa sequer se posicionaram e terão muito a dizer.
Mas acredite: todos terão a ganhar com isso.
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