Depois de ver Leveson comandar as discussões sobre a mídia inglesa, dói ver nosso STF.
DE LONDRES
Acompanhei, em Londres, o trabalho sereno, lúcido, inteligente do juiz
Brian Leveson, incumbido de comandar as discussões sobre a mídia
britânica.
Leveson, para lembrar, foi chefe de um comitê independente montado a
pedido do premiê David Cameron depois que a opinião pública disse basta,
exclamação, às práticas da mídia. Já havia um mal estar, parecido
aliás com o que existe no Brasil, mas a situação ficou insustentável
depois que se soube que um jornal de Murdoch invadira criminosamente a
caixa postal do celular de uma garota de 12 anos sequestrada e morta. O
objetivo era conseguir furos.
Leveson e um auxiliar interrogaram, sempre sob as câmaras de televisão,
personagens como o próprio Cameron, Murdoch (duas vezes), editores de
grande destaque, políticos e pessoas vítimas de invasão telefônica,
entre as quais um número expressivo de celebridades.
Em seu relatório final, Leveson recomendou a criação de um órgão
independente que fiscalize as atividades jornalísticas. Os britânicos
entendem que a auto-regulação fracassou. O “interesse público” tem sido
usado para encobrir interesses privados, e a “liberdade de expressão”
invocada para a prática de barbaridades editoriais.
Um grupo de políticos conservadores publicou uma carta aberta que
reflete o sentimento geral. “Ninguém deseja que nossa mídia seja
controlada pelo governo, mas, para que ela tenha credibilidade, qualquer
órgão regulador tem que ser independente da imprensa, tanto quanto dos
políticos”, diz a carta.
Este Diário defende vigorosamente isso no Brasil, aliás: um órgão
regulador independente — sem subordinação a governo nenhum e nem a
políticos de qualquer naipe. Mas — vital — também independente das
empresas de mídia. A Inglaterra marcha para isso, e a Dinamarca — ah,
sempre a Escandinávia — já tem um sistema exemplar desses há anos. A
auto-regulação é boa apenas para as empresas de mídia. Para a sociedade,
como se observou na Inglaterra e como se observa no Brasil, pode ser
muito danosa.
Você vê Leveson e depois vê nossos juízes do STF e o sentimento que
resulta disso é alguma coisa entre a desolação e a indignação. Por que
os nossos são tão piores?
Leveson, para começo de conversa, fala um inglês simples, claro, sem
afetação e sem pompa. Não se paramenta ridiculamente para entrevistar
sequer o premiê: paletó e gravata bastam. Ninguém merece a visão das
capas que fizeram Joaquim Barbosa ser chamado, risos, de Batman.
Leveson guarda compostura, também. Se ele fosse a uma festa de um
jornalista com um interesse tão claro nos debates que ele comanda, seria
fatalmente substituído antes que a bagunça fosse removida pelas
faxineiras.
Nosso ministro Gilmar Mendes foi, alegremente, ao lançamento do livro
do colunista Reinaldo Azevedo, em aberta campanha para crucificar os
réus julgados por Gilmar, e de lá saiu com um livro autografado que
provavelmente jamais abrirá e com a sensação de que nada fez de errado.
Leveson também mede palavras. Há pouco tempo, nosso Marco Aurélio Mello
disse que a ditadura militar foi um “mal necessário”. Mello defendeu
uma ditadura, simplesmente – e ei-lo borboleteando no STF sem ser
cobrado para explicar direito isso.
Necessário para quem? O Brasil tinha, em 1964, um presidente eleito
democraticamente, João Goulart. Os americanos entendiam, então, que para
cuidar melhor de seus interesses em várias partes convinha patrocinar golpes militares e apoiar ditadores que seriam fantoches de Washington.
Foi assim no Irã e na Guatemala, na década de 1950, e em países como o
Brasil e o Chile, poucos anos depois. O pretexto era o “risco da
bolchevização”. Uma pausa para risos.
Recapitulemos o legado do golpe: a destruição do ensino público, a mais
eficiente escada para a mobilidade social. A pilhagem dos
trabalhadores: foram proibidas greves, uma arma sagrada dos empregados
em qualquer democracia. Direitos trabalhistas foram surrupiados, como a
estabilidade.
De tudo isso nasceu uma sociedade monstruosamente injusta e desigual,
com milhões de brasileiros condenados a uma miséria sem limites. Quem
dava sustentação ideológica ao horror que se criava era o poderoso
ministro da economia Delfim Netto. Ele dizia que era preciso primeiro
deixar crescer o bolo para depois distribuir.
São Paulo, a minha São Paulo onde nasci e onde pretendo morrer, era
antes da ditadura uma cidade dinâmica, empreendedora, rica – e bonita.
Menos de 1% de sua população vivia em favelas. Com vinte anos de
ditadura, já havia um enxame de favelas na cidade, ocupadas por quase
20% dos residentes.
Este o mundo que adveio do “mal necessário” defendido por Marco Aurélio
Mello. Não tenho condições de avaliar se ele entende de justiça. Mas
de justiça social ele, evidentemente, não sabe nada, e muito menos de
história — a despeito de uma retórica pomposa, solene, pretensamente
erudita e genuinamente arrogante.
Se a ditadura foi um mal necessário, aspas, Mello pode ser classificado como um mal desnecessário, exclamação.
Paulo NogueiraNo DCM
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