Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Ingratidão da Globo me espanta, ela vomita no prato em que comeu, com o
perdão pelo uso do verbo, de eficácia indiscutível, no entanto. Aludo ao
editorial com que o mais autorizado porta-voz das Organizações, O
Globo, brindou seus leitores dia 1º de setembro. Diz-se ali que apoiar o
golpe de 64 foi erro nascido de um equívoco. Veio a ditadura, como
sabemos, provocada pelos gendarmes chamados pelos donos do poder civil,
entre os quais figurava, com todos os méritos, Roberto Marinho, e os
anos de chumbo de alguns foram de ouro para a Globo.
A empresa do doutor Roberto cresceu extraordinariamente graças aos
favores proporcionados pelos ditadores, gozou de regalias incontáveis,
floresceu até os limites do monopólio. O apoio de 64 prosseguiu
impavidamente por 21 anos, enquanto o Terror de Estado imperava.
Grassavam tortura e censura, repetiam-se os expurgos dentro do Congresso
mantido como estertor democrático de pura fancaria. Só o MDB do doutor
Ulysses Guimarães redimiu o pecado original ao reunir debaixo da sua
bandeira todos os opositores do regime. Para desgosto da Globo.
Sim, O Globo apoiou o golpe, juntamente com os demais jornalões como o
editorial não deixa de acentuar, e também apoiou os desmandos do regime,
a começar pelo golpe dentro do golpe que resultou no Ato Institucional
nº 5. E prisões e perseguições, e até as ditaduras argentina, chilena e
uruguaia.
Em contrapartida, combateu Brizola governador, e de modo geral, os
demais governos de estado conquistados pela oposição em conjunturas
diversas, bem como o movimento sindical surgido sob o impulso de um
certo Luiz Inácio, presidente do Sindicado dos Metalúrgicos de São
Bernardo e Diadema, responsável pelas greves de 78, 79 e 80, finalmente
preso e enquadrado na famigerada Lei de Segurança Nacional.
Derradeiro lance global, a condenação inapelável do movimento das
Diretas Já, quando a Globo foi alvo da ira popular e um veículo da
empresa foi incendiado na Avenida Paulista no dia 25 de janeiro de 84,
ao término de uma manifestação que reuniu na Praça da Sé 500 mil
pessoas. Rejubilou-se, contudo, o doutor Roberto, com a rejeição da
emenda das Diretas, obra magistral da Arena de José Sarney, e com a
formação da Aliança Nacional, nome de fantasia da enésima, inesgotável
conciliação das elites.
Não se diga que a Globo deixou de ser coerente com seus ideais. Decisiva
na eleição de Fernando Collor em 89, com a manipulação do debate de
encerramento com Lula, comandada pelo doutor Roberto em pessoa. Nosso
colega, como sustentavam seus assalariados, não hesitou em promover a
festa carnavalesca contra o presidente corrupto, desmascarado somente
pela IstoÉ ao descobrir a testemunha inesperada e fatal, o motorista
Eriberto. Antes disso, o governo Sarney contara com o apoio irrestrito
da Globo, sempre beneficiada por Antonio Carlos Magalhães, ministro da
Comunicações, na mesma medida em que o fora por outro amigo
insubstituível, Armando Falcão, ministro da Justiça do ditador Ernesto
Geisel.
O governo Fernando Henrique quebrou o País três vezes, mas nunca lhe
faltou o aplauso global oito anos a fio, tanto mais na hora do singular
episódio intitulado “Privataria Tucana” e da compra dos votos para
garantir a reeleição do príncipe dos sociólogos, sem falar do “mensalão"
também tucano. Houve até o momento em que, tomado de entusiasmo, o
doutor Roberto acreditou cegamente na sua colunista Miriam Leitão,
segundo quem, eleito pela segunda vez, FHC garantiria a estabilidade da
moeda até o último alento. Doze dias depois de reempossado, o príncipe
desvalorizou o real e cobriu a Globo de dívidas. Havia, contudo, um
BNDES à disposição para tapar o buraco.
FHC deixou saudades, a justificar o apoio compacto aos candidatos
tucanos nas eleições de 2002, 2006 e 2010. E a adesão à maciça campanha
midiática que, como em 1964, coloca jornalões e quejandos de um lado só,
então a favor do golpe, nos últimos dez anos contra um governo tido
como de esquerda, atualmente a carregar a herança de Lula. Vale
observar, aliás, que mesmo no instante do pretenso arrependimento, O
Globo de domingo passado desfralda os mesmos argumentos de 50 anos
atrás. Donde a evocação da “divisão ideológica do mundo” à sombra álgida
da Guerra Fria, aprofundada no Brasil “pela radicalização de João
Goulart”. Enfim, renova-se o aviso fatídico: a marcha da subversão
estava às portas. Eu a espero em vão até hoje.
Sim, o doutor Roberto acreditou ter agido acertadamente até sua morte e
sempre chamou o golpe de revolução. Explicaria em um dos seus
retumbantes editoriais da primeira página, no 20º aniversário daquele
que seus pupilos agora definem como “equívoco”, que “sem povo não
haveria revolução”. E quem seria o povo daquela quadra criminosa? As
marchas dos titulares da casa-grande e dos seus aspirantes, secundados
pelos fâmulos momentaneamente retirados da senzala.
Sim, é verdade que muitos jornalistas de esquerda tiveram abrigo na
redação de O Globo, e alguns deles foram e são amigos meus, mas não me
consta que o doutor Roberto se tenha posicionado “com firmeza contra a
perseguição” de profissionais de quaisquer outras redações. Vezos
nativos. O Estadão chegou a hospedar colunistas portugueses, inimigos do
regime salazarista. Tinham eles a virtude de escrever em castiço os
editoriais ditados pelo doutor Julinho. Este gênero de situações reflete
a pastosidade emoliente da realidade do País, onde o dono da
casa-grande pode permitir-se tudo o que bem entender.
De todo modo, não é somente deste ponto de vista que a Globo foi
deletéria. Ensaios foram escritos no exterior para provar como a
influência global foi daninha, inclusive com telenovelas vulgarizadoras
de uma visão burguesota, movida a consumismo e cultura da aparência,
visceralmente apolítica, anódina e inodora. Como tevê, e como jornal, a
Globo já foi bem melhor. Ocorrem-me programas de excelente qualidade,
conduzidos por humoristas como Chico Anysio e Jô Soares, capazes às
vezes de ousar o desafio sutil à ditadura. Mas a queda foi brutal, como
se deu em relação ao jornal à época da direção de Evandro Carlos de
Andrade. Lamentáveis as opiniões, em compensação, boa, frequentemente, a
informação.
O texto do editorial carece, é óbvio, da grandeza que a situação
recomendaria, pelo contrário é de mediocridade e superficialidade
doridas, não somente na lida difícil com o vernáculo, mas também pela
demonstração, linha a linha, palavra a palavra, e, mais ainda, no
desenrolar do raciocínio central, da sua insinceridade orgânica. Surge,
de resto, da covardia diante das manifestações anti-Globo e, como de
hábito, aferra-se à hipocrisia típica dos senhores da casa-grande,
velhacos até a medula.
Esta é a gente que gosta de brigar na proporção de cem contra um, se
possível mil, sem mudar o número de quantos ousam confrontá-los.
Incrível, embora natural, inescapável, nesta pasta víscida e maligna que
compõe a verdade factual do país da casa-grande e da senzala, a falta
de um debate em torno da peculiar confissão global, como acentua Claudio
Bernabucci na sua coluna desta edição. Que dizem os jornalões acusados
de conivência pelo O Globo? Que dizem as lideranças partidárias? E o
Congresso? Nem se fale das figuras governistas e parlamentares que até
agora enxergam na Globo um sustentáculo indispensável.
Silêncio geral, entre atônito e perplexo.
Postado há 6 hours ago por Blog Justiceira de Esquerda
Do Blog Justiceira de Esquerda.
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