sábado, 15 de março de 2014

Eles não são mendigos. Os bem-sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não sujeitos de direito.

Eles não são mendigos
Os bem-sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não sujeitos de direito
Por Luiz Gonzaga Belluzzo - CartaCapital - 13/03/2014

Eleições suscitam polarização de opiniões e exageros de pontos de vista. A campanha eleitoral já em curso, como outras, emite sinais de pródigas manifestações de maniqueísmo. O expediente de satanizar o adversário revela, esta é minha opinião, indigência mental e despreparo para a convivência democrática. Intelectuais, incluídos os jornalistas, não escapam desses desígnios: as sagradas funções da crítica e da dúvida sistemática são atropeladas pela paixão política.


Leio sistematicamente as colunas dos jornais brasileiros. Leio sempre com o espírito disposto a considerar os argumentos, mesmo aqueles que não batem com meus juízos e julgamentos.

Pois, embrenhado no cipoal de opiniões, deparei-me com um luminar da sabedoria nativa que, do alto de sua coluna, alertava a nação para os perigos da exploração do “coitadismo”. Imagino que vislumbrasse nas políticas de redução da pobreza uma afronta aos méritos dos cidadãos úteis e eficientes.

Lembrei-me de uma palestra memorável do escritor americano David Foster Wallace. Diante dos estudantes do Kenyon College, Foster Wallace começou sua fala com um apólogo:

“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?”

Wallace prossegue: “O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. ... Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras ‘virtudes’. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração-padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser”.

O povo brasileiro tem manifestado seu desacordo com os bacanas que, como os peixinhos, mergulhados em seu egocentrismo, não conseguem reconhecer o ambiente social em que vivem. Por isso, os bem-sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não enquanto sujeitos de direito.

Nas últimas décadas, certos liberais brasileiros julgam defender o mercado, desfechando invectivas contra as políticas públicas que, em sua visão, contradizem os critérios “meritocráticos”.

Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, o liberal Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório, defendeu o mercado ao fincar as estacas que iriam sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar.

Associado à ruptura causada nas concepções da economia convencional pela Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda – obra magna do também liberal, porém iconoclasta, John Maynard Keynes –, o Relatório Beveridge cuidou dos princípios e políticas que deveriam orientar a ação do Estado britânico do pós-Guerra.

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