domingo, 16 de março de 2014

“Neoconservadores” à brasileira atacam ideias distributivas da esquerda, na defesa do capitalismo. Turma bem remunerada e de prestígio que cumprem a função que outrora Paul Nizan, escritor de esquerda vítima do fascismo, chamou de "cães de guarda" do sistema.

Os 'cães de guarda' contra-atacam
“Neoconservadores” à brasileira atacam ideias distributivas da esquerda, na defesa do capitalismo.

Por Reinaldo Lobo* - 12/03/2014 - domtotal
"OS CÃES DE GUARDA" - Les Chiens de garde, Rieder, Paris, 1932 - reedições : Maspero 1969 ; Agone, 1998, com prefácio de Serge Halimi. 
Eles estão em toda parte. Como gafanhotos vorazes, ocupam espaços na cultura, nas ciências humanas, na imprensa, na TV, no rádio, nas universidades em geral, entre os chamados "formadores de opinião". São os "neoconservadores" à brasileira, cuja missão é desconstruir o que consideram o pensamento "politicamente correto" de esquerda. Infiltram-se nas brechas e interstícios de vários setores culturais e do poder, porque é isso o que imaginam que a esquerda faz. Seu truque secreto é usar o que pensam ser - depois de uma leitura ligeira de Gramsci - os métodos e a estratégia esquerdista para manter a hegemonia e o mando na sociedade civil e no Estado. Esse é um dos seus grandes equívocos.

Os "neocons", como alguns gostam de ser chamados, reúnem desde filósofos (Denis Rosenfield, Luiz Felipe Pondé), sociólogos e geógrafos (Demétrio Magnoli), historiadores (Marco Antonio Villa), artistas, roqueiros (como o conhecido Lobão), adeptos da geopolítica pós-militarista (como ocorre com um apresentador da Rede Globo, William Waack), humoristas do "infoentretenimento" (Danilo Gentili, Jô Soares) até ensaístas de ocasião (Arnaldo Jabor) e jornalistas da imprensa mais conservadora do País (como Reinaldo Azevedo). Jô Soares uma vez chamou Jabor de "comunista de direita". Essas personagens têm, obviamente, qualificações e talentos diferentes entre si, mas é possível traçar um fio comum - o repúdio às políticas distributivistas e desenvolvimentistas do PT e de quaisquer outros grupos mais socializantes. O máximo que aceitam é a social-democracia à maneira tucana, aliada aos "liberais" dos Democratas (ex-ditadura civil-militar) e com uma base de centro direita.

O neoconservadorismo, como muitos sabem, é uma visão política do mundo inaugurada nos Estados Unidos. Essa corrente ideológica surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a Guerra Fria. Desenvolveu-se entre ex-comunistas que passaram da crítica à burocracia soviética e aos horrores do stalinismo para uma posição de direita. Nasceu num meio de jornalistas trotskistas, ao redor da revista "Commentary". Dois dos seus primeiros intelectuais convertidos foram Irving Kristol e James Burnham, esse último autor de um best-seller intitulado "A Revolução dos Gerentes", onde defendia a tese de que as sociedades capitalista e comunista tendiam a se tornar uma coisa só, sob uma administração tecnoburocrática e gerencial. Essa mesma teoria foi defendida na França por Raymond Aron, um franco conservador. Foi a raiz da ideologia da "terceira via", que ressurgiria recentemente na Inglaterra com Anthony Giddens e o primeiro ministro Tony Blair. Mas os neocons dos EUA não hesitavam em aderir ao "modo de produção menos ruim", o capitalismo no sentido estrito. Não é preciso dizer que o auge de seu prestígio foi sob os governos de Reagan e Bush (pai e filho).

Os neocons brasileiros, diferentes dos norte-americanos, são mais sutis na defesa do capitalismo. Preferem apresentar-se como os verdadeiros transformadores e democratas, a partir de uma crítica pretensamente demolidora das ideologias em geral e do socialismo petista em particular. A sua ideologia consiste em se declararem anti-ideológicos. E os seus procedimentos argumentativos são de dois tipos.

O primeiro é a teoria do aparelhamento do Estado, pois o Partido tenderia a se confundir com o poder estatal, como na URSS, sem se considerar que todos os partidos no Brasil colocam, sem exceção, os seus aliados e militantes nos cargos mais importantes. Como o regime do PT e do País está longe de ser uma URSS, esse argumento se liquefaz. Fazem parte da base do governo e da burocracia estatal mais de dez outros partidos e estamos numa democracia. Os atuais membros petistas do governo sempre disputaram eleições livres e assim se mantiveram em uma parte do poder coligado.

O segundo procedimento dos neocons deriva do fato de muitos deles terem migrado da esquerda para a direita, talvez por motivos até semelhantes aos norte-americanos -- "o peso da realidade" da vitória do capitalismo na Guerra Fria e os horrores do stalinismo. Concedamos que seja assim. O seu truque consiste, porém, em inverter os argumentos da esquerda contra ela própria. Assim, tivemos há pouco um artigo do colunista da Folha, R. Azevedo, em que inventa um "racismo de segunda ordem" a ser atribuído a qualquer petista que criticar as decisões erradas do ministro do STF, Joaquim Barbosa. Todos sabem que a luta contra o racismo é uma bandeira histórica da esquerda. O próprio Barbosa já foi chamado pela direita de ministro da "cota de Lula". Nada melhor para os propósitos ideológicos do colunista Azevedo do que "informar", invertendo o racismo da elite, dizendo à população que "racistas" são Lula e o PT. É como a crítica ao programa de cotas - estimularia o "racismo ao contrário", dos negros contra os brancos e criaria uma "elite privilegiada".

Essas figuras decidiram que a melhor defesa do sistema elitista, escondendo suas mazelas, é partir para o ataque. São os falsos rebeldes que desejam destruir os "mitos" da esquerda para impor seus próprios mitos, como a "captura das mentes" e a "infiltração".

O truque é simples, mas tem funcionado e se repete. Um outro articulista, Jabor, só se refere aos adversários como a "velha esquerda", como se ele fizesse parte da nova, a moderna e vanguardista. É bem conhecida a relação de Jabor com a "social-democracia" tucana. E sua luta para se tornar Ministro da Cultura numa pretendida volta dos tucanos ao poder. Há algo de mais velho na praça do que a social- democracia?

Uma característica dos neocons é a de se mostrarem os defensores da modernidade (capitalista, é claro). Ou como a encarnação da pós-modernidade. Todos falam do "atraso" da esquerda e de seu ultrapassamento. Mas as ideologias dos "novos conservadores", em alguns casos, lembram demais a Velha Direita de Joseph de Maistre, da Action Française e das falanges de Mussolini.

Autores um pouco mais sofisticados, como Luis Felipe Pondé, reproduzem aqui no Brasil as idéias do filósofo pessimista inglês John Gray, para quem não existe progresso real na história e a "natureza humana" predatória e violenta só se coaduna com regimes de "alta competição" - como se o capitalismo atual, de monopólios, fosse competitivo! Essa pequena teoria "hobbesiana", evidentemente distorcida, vale para tudo: o capital, o combate ao crime, etc. O paradoxo de Gray -- ele defende a modernidade, mas sustenta, ao mesmo tempo que ela não tem sentido, pois é a maior ilusão vinda do Iluminismo e da noção de progresso. Em seu livro "Straw Dogs (Cachorros de Palha): Thoughts on Human and other Animals", Gray diz que, de Platão à Cristandade, do Iluminismo a Nietzsche, a tradição ocidental tem sido baseada em crenças arrogantes e errôneas sobre os seres humanos e o seu lugar no mundo. Quer retirar o "privilégio" concedido por essa tradição ao homem em relação aos animais e à sua própria animalidade. Filosofias como o liberalismo e o marxismo pensariam a humanidade como uma espécie cujo destino é transcender seus limites naturais. Gray argumenta que essa crença na diferença humana é uma ilusão perigosa. Propõe investigar a vida do homem "da forma como ela se parece", uma vez que o "humanismo foi finalmente abandonado" ( pelo pós-modernismo). Ele pensa ter perturbado nossas mais profundas crenças, mas nada mais faz, na melhor das hipóteses, do que propor uma natureza humana ao modo do século XVIII ou, na pior das hipóteses, à maneira do ultra-conservadorismo pessimista do fascismo. Sua teoria quer-se moderna ou até pós, mas é mais antiga do que andar para a frente.

O filósofo Pondé importa até os cacoetes e ironias de autores como Gray. A frase mais espirituosa do brasileiro é também uma contradição em termos - "O Viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo". Ora, para quem vê o progresso como ilusão, cabe a pergunta - o Viagra não é progresso? Tecnológico, é verdade, mas progresso? Saibam que o Viagra é perfeitamente compatível com o marxismo e até com o liberalismo. A incompatibilidade só pode ser uma brincadeirinha de mau gosto do filósofo da PUC.

Pessimismo sempre foi uma marca registrada do conservadorismo. É regressivo. Seu corolário é a antiutopia e o conformismo. Mas essa turma tem prestígio e muitos ganham bem para cumprir a função que outrora Paul Nizan, escritor de esquerda vítima do fascismo, chamou de "cães de guarda" do sistema.

* Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog -imaginarioradical.blogspot.com.

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