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– 09/03/2012
Por distintos motivos, Hobbes, Locke e Montesquieu condenariam sem vacilar a brutalidade do governo paulista. Mas… e Maquiavel?
Por Luís Fernando Vitagliano
Segundo
Thomás Hobbes o estado moderno deve ser como um Leviatã, com todos os
poderes opressores possíveis. Detentor da força e da capacidade de
submeter seus cidadãos ao poder das suas opressões. Mas um bom leitor de
Hobbes vai se lembrar do contrato social ao qual até mesmo o rei deve
se submeter. Todo estado moderno deve levar em consideração que os
cidadãos abram mão da sua liberdade e ganhem com isso segurança. Contra a
barbárie de uma guerra de todos contra todos, da sujeição do homem ao
egoísmo do próprio homem, nasce o Leviatã, o estado, aquele aparato que
vai impor ordem à sociedade. E mesmo nesta proposta hobbesiana de
política, onde o estado é monárquico e absoluto há uma única
possibilidade de desobediência civil: quando o estado não dá segurança
aos seus cidadãos, os cidadãos têm o direito de questionar a autoridade
do rei.
Porém,
devemos entender segurança no seu sentido mais amplo: segurança
alimentar, segurança civil, segurança contra ameaças internas e externas
à vida dos cidadãos, e também segurança de que se pode ter uma vida
plena para realizar tranquilamente o trabalho e a devoção a Deus (Hobbes
era um dedicado cristão). Enfim, para resumir a teoria hobbesiana, se
não é por todas essas funções exercidas pelo estado em nome da
segurança, por que uma pessoa trocaria sua liberdade? Justificam-se, em
consequência, as atitudes que confrontam as ações do estado, quando ele
não garante condições dignas de segurança social.
John
Locke, um dos pais do liberalismo moderno e talvez a principal
referência clássica aos federalistas da Constituição americana defende
que a propriedade privada deve ser resguardada em todos os casos. Para
isso, não há exceção. A propriedade privada, fruto do trabalho e da
dedicação do homem na transformação da natureza, deve ser defendida como
o direito fundamental de qualquer sociedade política. Para Locke nenhum
direito está acima deste. Para defender sua propriedade, uma pessoa
pode até mesmo desobedecer as regras impostas pelo Estado. Todos os
cidadãos têm direitos e deveres, mas nenhum direito pode se impor ao
direito da propriedade, porque Locke entende que ela é fruto do trabalho
e a dignidade de quem trabalha deve ser defendida a todo o custo.
E
quando conquistamos propriedades ilicitamente, sem o uso do trabalho?
Nem mesmo Locke defende este regime de propriedade. O estado, para ele,
deve se preocupar exclusivamente com isso: as garantias das valorizações
do trabalho como forma de resguardar a propriedade. Que ninguém use da
força ou de poder para levar vantagens sobre ninguém e que simplesmente
seja preservada a liberdade de fazer.
Dos
liberais, o mais marcante cientista político clássico é Jean Jaques
Rousseau. Sua obra é uma mistura de ensaios com defesas engajadas da
emancipação humana. Rousseau teve influencia fundamental na Revolução
Francesa e foi sem dúvidas um dos intelectuais mais lidos para a
formação das noções da república moderna. No seu Discurso sobre as origens e fundamentos da desigualdade entre os homens, defende
que, nas várias fases do desenvolvimento das sociedades humanas, a
desigualdade começa a aparecer quando se cria a noção de propriedade
privada. Neste momento os governos garantem que a divisão entre ricos e
pobres preserve-se, assim como a divisão entre governantes e governados.
No Contrato Social,
Rousseau não aceita que os homens entreguem sua liberdade aos
dirigentes. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Azul, Branco e Vermelho
são os lemas da Revolução Francesa que colorem a bandeira daquele país e
que se baseiam nas noções de pensadores clássicos como Rousseau
(principalmente), Montesquieu, Diderot, d’Alembert, Voltaire etc. A
ideia de república é a mesma: que o público se coloque acima dos
interesses individuais. Para a filosofia política francesa, os
interesses republicanos valem mais que os interesses privados.
Levando
em consideração esses filósofos clássicos, há uma clara diferença entre
a ciência política francesa e a saxônica. Enquanto as constituições
inglesa (monárquica) e norte-americana (federalista) simplesmente versam
sobre os direitos e deveres individuais, a constituição republicana
francesa fala do universalismo dos direitos e das garantias básicas dos
cidadãos. Pensa a sociedade de forma coletiva e universalizada, com
garantias que devem sobrepor o coletivo ao individual.
O
Brasil foi nitidamente influenciado pelo Estado de Direito francês onde
a universalidade de direitos se impõe aos individualismos é a base da
Constituição Federal. É só lembrar que a Carta Magna de 1988 foi
batizada de “Constituição Cidadã”, dada a abrangência com que garantia
direitos sociais aos brasileiros.
Não
foi despropositado este longo exercício de memória da ciência política
clássica e dos filósofos políticos. Se tomarmos esses pensadores para
falar da recente crise da reintegração de posse dos moradores de
Pinheirinho, nada do que se defende em relação à reintegração pode ser
fundamentado.
Primeiro,
o estado brasileiro tem obrigação de garantir aos cidadãos condições
mínimas de direito. A tomar pela Constituição do estado republicano
brasileiro, não podemos condenar comunidades que tentam, por meio da
desobediência civil, garantir seu direito a moradia, educação e saúde.
Hobbes poderia dizer que no Brasil o dever fundamental do estado em
garantir segurança aos seus cidadãos não é cumprido e isso os desobriga
de cumprir com o contrato social.
Locke,
sobre o caso de Pinheirinho, diria que aquele espaço não foi
conquistado com base no trabalho, mas em manobras de especuladores e
criminosos do colarinho branco. E se os moradores locais trabalharam e
promoveram benefícios ao lugar, construindo sua casa com seu próprio
trabalho, isso deve ser mais valorizado que o termo de posse conquistado
com base em manobras jurídicas. Rousseau argumentaria que o direito
republicano dos cidadãos torna-os obrigados a contrariar o governo e que
a propriedade privada neste caso é antirrepublicana.
No
curso básico de pensamento político clássico, ainda teríamos uma
discussão sobre Maquiavel. Bem, o caso de Pinheirinho, visto sob a ótica
maquiavélica, é um exemplo de como o Príncipe não deve se comportar.
Precipitada, mal dirigida, escandalosa e desnecessária foi a
reintegração de posse. Provocou crise com os moradores, tornou-se
manchete dos veículos de imprensa, desgastou a relação entre governo
estadual e federal. Então, usando a frase famosa e maquiavélica: os fins
justificam os meios? Engana-se que responde sempre sim. Em geral não,
os fins justificam os meios somente quando esses fins levam em
consideração o bem público. A reintegração de posse foi muito mais um
exercício exagerado de autoridade, que não fez com que o Príncipe fosse
amado ou respeitado, mas odiado. Ou seja, nenhuma das lições contidas em
Maquiavel foi assimilada neste caso e a real politik foi abandonada em função de interesses absolutamente obscuros.
Falando
especificamente da experiência brasileira, qualquer pessoa minimamente
envolvida com as políticas de urbanização e desocupação de zonas
irregulares sabe que os procedimentos são diferentes. Em primeiro lugar,
quando se trata de uma ocupação irregular, a única justificativa
plausível para a retirada das famílias é se o terreno é uma área de
risco ou um espaço de preservação ambiental. Encostas e regiões
ribeirinhas ocupadas não são prioridades dos ocupantes. O Estado deve
providenciar a desocupação.
De
outro lado, quando a região não é de risco, outras atitudes devem ser
cogitadas e a primeira delas é considerar a manutenção das famílias nos
locais e a urbanização das áreas, com a iluminação pública, a abertura
de vias de trânsito, a regularização do fornecimento de água e luz e a
garantia de tratamento do esgoto. Remoção das famílias tem que ser
negociada, combinada, acertada e garantida com outras possibilidades. Se
não acontece desta forma, o governo esta suscetível às criticas e o
motivo é bastante simples: é obrigação de o Estado gerar moradias antes
mesmo de garantir o direito de acumulação para especuladores. Alguém
duvida dessa hierarquia em relação às prioridades de direitos?
A
propaganda em favor da barbárie promovida pela desocupação tenta
inverter a culpa e levar a população a crer que quem está em favor da
comunidade do Pinheirinho é arruaceiro, quer rasgar a Constituição, não
quer saber dos direitos na sociedade. Mas se levarmos o direito
republicano a sério é justamente o contrário: defender a comunidade do
Pinheirinho é defender a Constituição e os direitos sociais no Brasil –
apesar de o Estado querer convencer as classes médias a defender o
interesse de alguns poucos privilegiados.
Do Blog OUTRAS PALAVRAS.
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