Como o atual presidente do Supremo
Tribunal Federal armou as condenações de João Paulo Cunha e dos
dirigentes da agência SMP&B por um suposto desvio de dinheiro da
Câmara dos Deputados
O diabo mora nos detalhes, é o ditado. Para tentar entender a
condenação de João Paulo Cunha e dos dirigentes da agência de
publicidade mineira SMP&B por desvio de dinheiro público num
contrato de publicidade de 10,7 milhões de reais assinado pelo então
presidente da Câmara dos Deputados e a agência no final de 2003,
sugerimos que o leitor comece revendo um curto trecho da 31ª sessão do
julgamento da Ação Penal 470 (AP 470) no Supremo Tribunal Federal, no
dia 16 de agosto do ano passado. Esse detalhe está perto do final da
fala do ministro Joaquim Barbosa, o relator da ação. Barbosa falara
praticamente sozinho durante quase quatro horas. Sua fala fora
repetitiva, pesada. Ele apresentou e reapresentou fatos que provariam a
justeza de sua condenação. Cunha, o principal acusado, teria cometido
quatro crimes: um de corrupção passiva, por ter recebido propina de 50
mil reais; outro, de lavagem de dinheiro, por ter tentado ocultar o
recebimento dessa vantagem; e dois de peculato: um por ter se
beneficiado de dinheiro público, cerca de 250 mil reais da Câmara,
através da contratação de um assessor pessoal, e outro porque teria
repassado cerca de 1,1 milhão de reais, também da Câmara, não para a
SMP&B, mas, na verdade, para o PT.
Os 20 segundos escolhidos pelo repórter estão perto do final da sessão.
Podem ser vistos no YouTube: AP 470, 16/08/12, 2/2. É a segunda parte
da sessão. Barbosa está cansado, nervoso, como se pode ver nos 11
fotogramas acima tirados desses 20 segundos. Ele vinha lendo
pausadamente seu voto – longuíssimo, 159 páginas. Teria provado, como
escreveu à página 75 e leu para o plenário, que “o crime” estava
“materializado”. Cunha teria desviado a maior parte do dinheiro da
Câmara para o PT por ter contratado a agência SMP&B para que não
fizesse praticamente nada. Dos quase 11 milhões pagos pela Câmara no
contrato, menos de um centésimo seria trabalho feito efetivamente pela
agência.
O cronômetro no YouTube marca 1h03min10s, ou seja, essa segunda parte
da sessão já tem uma hora, três minutos e dez segundos de duração.
Aparentemente, então, Barbosa percebe que é preciso destacar também o
contraditório, a defesa de Cunha. Cita, nesse sentido, um trecho da
conclusão do acórdão 430 do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2008: o
trabalho efetuado pela agência tem um valor maior, 11,32% do contrato.
E, então, de repente, como se percebesse a extensão da diferença entre
o que vinha afirmando e o que o TCU diz – 11% é mil vezes 0,01% –,
interrompe a leitura, ergue a cabeça, sai do script e, como se falasse
diretamente para o espectador da TV Justiça, que transmite a sessão,
fala, gesticulando rapidamente com o indicador da mão direita, com a mão
inteira e com todo o braço: “Uma secretaria disse uma coisa... o que
eu já citei”. Ri rapidamente e conclui: “Foi trocada toda a equipe, que
posteriormente diz o contrário”.
Com isso, claramente, o ministro Barbosa tentou passar para o País a
tese de que a absolvição de Cunha e da SMP&B pelo TCU fora armada.
No entender do repórter, isso é uma insinuação grosseira, sem
fundamento. E é pouco provável que Barbosa mantenha esse improviso no
acórdão com a sentença a ser publicada, a princípio, até o final deste
mês de março. Não foi o TCU que tentou armar a absolvição dos acusados.
Foram as artes do ministro que construíram a condenação do STF. Para
condenar, Barbosa selecionou, basicamente, informações dos meses após o
6 de junho de 2005, quando foi feita a denúncia do deputado Roberto
Jefferson sobre a existência do chamado “mensalão”, e desprezou as
principais investigações feitas – das quais a do TCU é apenas uma – que
provam exatamente o contrário, isto é, que não houve desvio de
dinheiro da Câmara dos Deputados no contrato da Câmara com a SMP&B.
Cunha, um parlamentar com sete mandatos populares – de vereador,
deputado federal e estadual –, com uma carreira sem mácula, foi
condenado a nove anos e quatro meses de prisão. A SMP&B era até
então uma das principais empresas de publicidade do País, com mais de
30 anos de atividades. Foi destruída: em menos de dois meses não tinha
mais condições de funcionamento e demitiu todos os seus quase 200
funcionários.
A condenação de Cunha por corrupção e o suposto desvio de dinheiro da
Câmara, logo na primeira sentença da AP 470, criaram o clima para o que
alguns já chamam hoje, como veremos no último capítulo de nossa
história, o “mentirão”, um julgamento com condenações por indícios, não
por provas. No caso de Cunha foi até pior: ele foi condenado contra as
provas. Ele provou que os 50 mil reais recebidos eram de um esquema de
caixa dois do PT e apresentou as testemunhas e os recibos de que
gastou esse dinheiro com pesquisas eleitorais. Mas a maioria dos juízes
preferiu condená-lo pelo que supunha ter acontecido. A ministra Cármen
Lúcia, por exemplo, disse que achava que ele tentou esconder o fato de
ter recebido os 50 mil por ter mandado sua esposa, Márcia Regina,
receber o dinheiro e tê-lo feito às claras, deixando recibo.
A GRANDE INVESTIGAÇÃO DA CÂMARA Ela resultou de pedido do
próprio João Paulo Cunha. Foi de 2005 a 2011 e concluiu: não houve
qualquer desvio de dinheiro público
Para entender os interesses políticos por trás do escândalo chamado
“mensalão”, um episódio a ser revisto, mesmo que rapidamente, é a
eleição do pernambucano Severino Cavalcanti, do Partido Progressista
(PP), a presidente da Câmara dos Deputados em meados de fevereiro de
2005. Severino ganhou a eleição porque o PT se dividiu e apresentou um
candidato dissidente, Virgílio Guimarães (PT-MG), no mesmo pleito.
Severino, com 124 votos, e Virgílio, com 117, tinham sido derrotados no
primeiro turno pelo candidato oficial do PT, Luiz Eduardo Greenhalgh,
que tivera 207 votos. No segundo turno, Severino bateu Greenhalgh por
300 a 195 votos. Virgílio foi o homem que apresentou Marcos Valério,
mineiro de Curvelo como ele e diretor financeiro das empresas de
publicidade DNA e SMP&B, a Delúbio Soares, o tesoureiro do PT, a
quem Valério ajudou na tarefa de obter dinheiro para o partido.
Na nossa história, a candidatura de Virgílio contra o candidato oficial
do seu partido serve para ressaltar o fato conhecido de que o PT é
formado por várias correntes. O grande apoio a Severino e a baixa
votação de Greenhalgh no segundo turno mostram ainda que a já então
chamada base aliada estava longe de ser petista. A vitória de Severino,
a rigor, foi o fato que puxou o enredo da trama política para um lado:
contra o PT e a favor da invenção do “mensalão”. No caso da Câmara,
ajudou a criar a historinha contra o ex-presidente da casa. Da
assessoria do pernambucano emerge Alexis Souza, o operador na produção
do principal documento usado por Barbosa na condenação de Cunha e dos
dirigentes da agência SMP&B.
Alexis é um funcionário da Câmara ligado ao PP. Com Severino na
presidência, Alexis foi para a chefia da Secretaria de Controle Interno
(Secin) da Câmara. Quando Severino renunciou à presidência, sete meses
depois, Alexis tornou-se assessor da bancada de deputados do PP. Até
meados de fevereiro estava no gabinete da vice-presidência da Câmara,
ocupada pelo deputado Eduardo da Fonte, também do PP de Pernambuco,
como Severino. Foi lá que Alexis conversou com RB no início de
fevereiro. Pouco antes, o repórter desta história tinha revisto, no
YouTube, a condenação de Cunha por Barbosa e citou para Alexis o fato
de o ministro ter destacado o seu documento na condenação.
Aparentemente, Alexis ficou orgulhoso com o reconhecimento, mas pediu
para que não fossem registradas as avaliações que fez inicialmente
sobre a natureza política do “mensalão”. Sua presença se destaca na
história contada a seguir primeiro pelo relatório e depois por seus
depoimentos nos autos da grande investigação feita pela Câmara dos
Deputados a respeito do contrato SMP&B-Câmara assinado em dezembro
de 2003.
A investigação começou com um pedido formal do deputado Cunha a
Severino: que a Câmara oficiasse ao Tribunal de Contas da União para
ser feita uma investigação do contrato. O pedido foi feito a 7 de julho
de 2005, logo que Cunha foi apontado como receptor de dinheiro do
chamado valerioduto e surgiu a tese de que isso fora uma propina para
ele aprovar o contrato com a SMP&B. Severino não só encaminhou o
pedido ao TCU como deu ordem a Alexis, segundo o próprio repete em seus
depoimentos, para realizar uma investigação sobre o caso. E o chefe da
Secin a fez, de imediato. Quando, de 25 de julho a 3 de agosto de
2005, o TCU mandou uma equipe da sua Terceira Secretaria de Controle
Externo (3ª Secex) à Câmara para uma investigação inicial, Alexis
repassou a essa equipe as conclusões a que tinha chegado. O trabalho da
3ª Secex seguiu em frente e foi desembocar no acórdão 430 do TCU, de
2008, que absolve Cunha e a SMP&B. Esse acórdão é o mesmo
torpedeado pela diatribe de Barbosa citada no início deste artigo. A
investigação e as conclusões do TCU serão examinadas no segundo capítulo
de nossa história. Por enquanto, se descreverá a investigação da
Câmara, que começa com o relatório de Alexis e é a que o repórter
considera mais importante.
O relatório final dessa investigação é de 26 de fevereiro de 2010 e
está ao final do oitavo volume de um conjunto de 1.929 páginas.
Basicamente, ela se desenvolve em três etapas: 1) a iniciada com o
pedido de Cunha, a 7 de julho de 2005, e comandada por Alexis, que
produz dois relatórios: um dois meses depois, em setembro, e outro, a
seguir, em outubro; 2) a conduzida pelo Núcleo Jurídico da
administração da Câmara, entre o final de 2005 e meados de 2006; 3) e a
que se passa daí em diante, conduzida por uma Comissão de Sindicância
(CS) criada pela direção administrativa da Câmara na época em que era
presidente da Casa o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Como as comissões
de sindicância só podem, pelo estatuto da Câmara, funcionar por 30
dias, prorrogáveis por mais 30, a rigor foram nomeadas oito dessas
comissões, sempre com o mesmo presidente e praticamente com os mesmos
funcionários, o que permite considerá-las uma só.
Nas suas conclusões finais, a CS diz que sua investigação consumiu 480
dias de trabalho, descontados os 1.115 dias nos quais os autos
tramitaram entre os diversos órgãos interessados, que são: a Comissão
de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, na qual Cunha foi julgado e
absolvido; a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos
Correios, cujo relatório foi publicado no início de 2006 e enviado à
Procuradoria-Geral da República (PGR); a Polícia Legislativa da Câmara,
que fez inquéritos sobre a denúncia de crimes que teriam sido
cometidos na apresentação de propostas e na execução dos contratos; a
Procuradoria-Geral da República, que apresentou a denúncia contra Cunha
e outras 39 pessoas do grupo dos chamados “mensaleiros” ao Supremo
Tribunal Federal, logo depois do relatório da CPMI; e, finalmente, o
próprio STF, por meio do ministro Joaquim Barbosa, que presidiu o
inquérito da PGR e, após a aceitação da denúncia pela corte suprema,
tornou-se o relator da AP 470.
Não existe a menor dúvida de que a CS foi criada para ajudar a
esclarecer a denúncia básica do “mensalão”: a de que o PT usara
dinheiro público para realizar seu projeto político pela compra de voto
dos parlamentares. E, a esse respeito, também não existe a menor
dúvida nas quase 2 mil páginas dos autos: o contrato da Câmara com a
SMP&B foi absolutamente legal, os pagamentos à agência estavam de
acordo com os termos contratados e todos os trabalhos previstos nele
foram realizados.
Não é o que disse e repete Alexis. A primeira parte do seu relatório,
entregue a 28 de setembro de 2005, condena completamente a licitação
feita durante a gestão de Cunha. Ela não teria um objeto bem definido,
não incluiria um indispensável parcelamento de tarefas e teria a
participação de empresas com sinais de conluio entre si. A licitação
teria sido, ainda, julgada por critérios subjetivos, entre os quais o
preconceito da comissão licitante contra uma das concorrentes, a empresa
Ogilvy, por ela ter adquirido a Denison Propaganda, vencedora de
licitação semelhante realizada em 2001, quando o presidente da Câmara
era Aécio Neves (PSDB-MG). No segundo documento, de outubro, Alexis
analisa sete de 52 processos de compra de serviços conduzidos pela
SMP&B através de tomada de preços entre três fornecedores para cada
compra e diz ter encontrado neles inúmeros sinais de irregularidade,
entre os quais: a presença de empresas de existência duvidosa; a
falsificação de propostas de serviços para simular concorrência; a
introdução de elementos estranhos em pesquisa de opinião pública, com
perguntas que citavam o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o próprio
presidente da Câmara, João Paulo Cunha; e, finalmente, a falta de
comprovação da veiculação de anúncios em 76 jornais do interior. Nesse
segundo documento, Alexis faz também a avaliação que, depois, o ministro
Barbosa usaria com, digamos, uma ênfase exagerada. Alexis diz que a
SMP&B não tinha feito praticamente nada: 99,9% dos serviços do
contrato teriam sido terceirizados. Barbosa multiplicou isso por, como
diriam os matemáticos, 10-1 (10 à potência menos 1): em vez de a agência
ter feito apenas 0,1%, um décimo por cento dos serviços, teria feito
apenas 0,01%, um centésimo por cento dos serviços.
Alexis entregou esse segundo relatório com Severino já fora do comando
da Casa, depois da posse de Aldo Rebelo, a 28 de setembro de 2005. Logo
a seguir, a revista Época, semanário das Organizações Globo, de 28 de
novembro publica matéria dizendo que Alexis havia entregado, ao novo
presidente, carta de renúncia a seu mandato na Secin, que só terminaria
em 2006. Seu relatório é, visivelmente, a base da matéria, que diz
haver “fraudes e mais fraudes” no contrato em discussão. Tudo indica,
no entanto, que Alexis nem chegou a ser efetivamente secretário de
Controle Interno da Câmara. O deputado Cunha pretende entrar com um
embargo ao acórdão a ser publicado pelo STF com sua condenação, no qual
declarará que o relatório de Alexis é nulo de pleno direito porque ele
não foi nomeado efetivamente diretor da Secin. Foi indicado para o
cargo por Severino, mas a nomeação não se consumou porque necessitava
de aprovação dos outros integrantes da mesa da Câmara e isso não
ocorreu. E, a despeito de Joaquim Barbosa dizer que o relatório de
Alexis era de um colegiado, a investigação da Câmara não conseguiu
esclarecer quem elaborou o relatório com ele, embora repetidamente lhe
tenha pedido esses nomes. O relatório só tem a assinatura de Alexis,
que alega ter sido isso uma decisão sua, para proteger de represálias
os demais participantes.
O debate do relatório de Alexis continuou na Câmara após sua saída da
Secin. No final de 2006, a Câmara decidiu instalar a CS já citada, que
só começou a funcionar meio ano depois, como vimos. Enquanto isso não
ocorria, a 9 de novembro, o Núcleo Jurídico da casa encaminhou o
relatório de Alexis para os cinco membros da Comissão Especial que havia
realizado a licitação do contrato. Num documento assinado por todos os
cinco, essa comissão refutou as acusações ponto por ponto. No
essencial, disse que o contrato era a cópia melhorada do que havia sido
usado pela Câmara para a licitação que acabara resultando na
contratação da agência de publicidade Denison em 2001, quando o
presidente era o mineiro Aécio Neves. Esse contrato também previa o
pagamento, por parte da Câmara, de três tipos de serviços a serem
produzidos ou supervisionados pela agência: 1) os de criação própria de
peças publicitárias; 2) os de supervisão de serviços de terceiros, que
não os de veiculação de publicidade; e 3) os de veiculação de
publicidade. Em relação à criação própria, a Câmara pagaria com base
numa tabela de preços do Sindicato das Agências de Propaganda do
Distrito Federal, e a SMP&B daria um desconto de 80% sobre o total.
Sobre os serviços de terceiros, a agência receberia uma comissão de
5%. Quanto à veiculação de publicidade, dos descontos de 20%
normalmente concedidos pelos veículos – TVs, jornais, revistas –, 5%
seriam repassados à Câmara pela agência.
Feitas as contas, como faria depois o ministro revisor da AP 470,
Ricardo Lewandowski, no julgamento do caso, chega-se à conclusão de que
os trabalhos da SMP&B, pelos termos do contrato, valeram: 948,3
mil reais pelo serviço de acompanhamento e planejamento da veiculação
de publicidade; 129,5 mil reais pela comissão devida ao acompanhamento
de serviços de terceiros; e 14,6 mil reais pelos trabalhos próprios de
criação (veja as conclusões de Lewandowski no quadro com sua foto,
nesta página). Por esse detalhamento feito pelo ministro revisor, fica
evidente que a conta de Barbosa para chegar ao 0,01% implicou excluir
os outros dois rendimentos aos quais a SMP&B tinha direito pelo
contrato e considerar apenas os 14,6 mil reais. Foi uma contabilidade
criativa, digamos, mas não muito honesta. Nos autos estava também, para
comparação, o contrato feito antes, em 2001, pela Câmara, ganho pela
agência Denison. Como deu um desconto de 100% nos trabalhos próprios, a
Denison, pelo critério de Barbosa, não fez absolutamente nada.
No total, o valor dos serviços da SMP&B, por contrato, é de 1,09
milhão de reais, ou 11,32% do total de 10,7 milhões, como dizem
Lewandowski e o TCU, e não 0,1%, como diz o relatório de Alexis, nem
muito menos 0,01%, como disse Barbosa no seu frenesi acusatório. Os
cinco membros da Comissão de Licitação afirmaram também que as
eventuais fraudes na apresentação de propostas tinham sido encaminhadas
para a Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados (PL-CD) e estavam
sendo investigadas. A Secretaria de Comunicação Social da Câmara
(Secom) tinha sido dirigida na gestão de Cunha por Márcio Araújo,
também integrante da Comissão de Licitação e um dos principais
responsáveis pelos problemas encontrados na licitação e aplicação do
contrato, segundo Alexis. O setor jurídico da Câmara mobilizou, então, a
nova direção da Secom, da gestão Rebelo, para responder às acusações
de pagamentos feitos indevidamente. Eram várias. Uma se referia a
campanha de cerca de 850 mil reais com anúncios de promoção das
atividades da Câmara em 153 jornais, sendo 76 deles fora das capitais.
Esse montante correspondia a 21% do valor total dos anúncios, mas seus
comprovantes não tinham sido localizados e constava no relatório de
Alexis a suspeita de que fossem falsos. Em meados de janeiro de 2006,
no entanto, a nova Secom encontrou a grande maioria das comprovações e
ficou faltando apenas uma dúzia delas.
Perto do final de 2006, a CS apresentou seu primeiro relatório. Resumiu
toda a história: as alegações do relatório de Alexis, o exame que o
então diretor da Secin fez nos contratos de compra de serviços e
materiais e das veiculações de publicidade e as primeiras conclusões da
3ª Secex do TCU. E concluiu: 1) quanto à elaboração do edital: “nada”
havia de desabonador; 2) quanto ao tipo de licitação, com base na
chamada “melhor técnica”, que o relatório de Alexis considerara muito
subjetivo: o tipo de melhor técnica, por se tratar de trabalho
intelectual, era, de fato, o mais indicado, como já fora na licitação
de 2001. Além disso, a SMP&B assumira o menor preço entre os
apresentados por mais sete concorrentes; 3) e, quanto à avaliação das
propostas de compra de serviços e materiais: “não encontrou nenhuma
irregularidade administrativa”. Por fim, a conclusão da CS era que o
processo deveria ser encerrado e os autos, arquivados.
A CS deixou aberta, no entanto, a questão da investigação de eventuais
fraudes na apresentação de propostas para as compras de serviços e
materiais, a despeito de todas as compras e serviços terem sido
considerados realmente feitos. Para saber se as propostas falsas
existiram e se teriam falseado a concorrência em um conluio de
perdedores com ganhadores se deveria constituir uma nova Comissão de
Sindicância. Aparentemente, a investigação, do ponto de vista da
apuração do “mensalão”, o “crime histórico” do suposto desvio de
dinheiro público para o PT, estava encerrada. Restavam malfeitos de
detalhe numa concorrência como muitas outras. A apresentação de
propostas falsas para simular concorrência não deveria ser tolerada, mas
faria parte de outra investigação, menor. Possivelmente, é a aceitação
da denúncia do “mensalão” pelo STF, em agosto de 2007, que leva à
reinstalação da Comissão de Sindicância por mais seis períodos de dois
meses cada, três no mandato de Arlindo Chinaglia (PT-SP) como presidente
da Câmara (2007-2008) e mais três no de Michel Temer (2009-2010).
No entanto, como a CS foi praticamente a mesma, como se disse, o que
ela faz é basicamente eliminar uma lista de problemas remanescentes,
especialmente quanto às fraudes porventura existentes nas propostas
perdedoras e os anúncios da campanha da Câmara publicados em jornais do
interior cujos comprovantes ainda não tinham sido todos encontrados. Os
trabalhos nesse período têm esse sentido e a CS resolve encerrá-los
definitivamente no início de 2010, como citado. Faz, então, um balanço
final dessas pendências: tinham sido analisados os 40 procedimentos de
contratação de compras e serviços, impugnados, de modo geral, pelo
relatório de Alexis. Os ganhadores dessas contratações tinham executado
todos esses contratos e apresentado as notas fiscais correspondentes. À
base de três propostas para cada contratação, eram 119 empresas – uma
delas havia apresentado duas propostas. A CS oficia então a todas as 79
empresas perdedoras para saber se realmente tinham apresentado as
propostas derrotadas e, assim, confirmar a existência, de fato, de
concorrência. Resultado da consulta: 11 empresas não foram localizadas,
24 não mandaram resposta e 44 responderam, das quais 36 confirmaram as
propostas em poder da comissão e seis não confirmaram.
Que mais a sindicância da Câmara deveria fazer? Já tinha concluído que a
licitação vencida pela SMP&B fora benfeita e os serviços tinham
sido executados sem que tivesse havido qualquer desvio de dinheiro
público. Do ponto de vista do que deveria ser o objetivo central do
STF, provar ou não se houve o famoso “mensalão” – em essência, o desvio
de dinheiro público da Câmara para a compra de votos pelo PT –, o caso
estava liquidado. A sindicância deveria prosseguir para apurar todos
os eventuais malfeitos nas 40 contratações, para descobrir se os seis
que negaram ter feito as propostas tinham sido substituídos por
falsários e se os 35 que não foram localizados ou não responderam
tinham, talvez, algo a esconder? Um exemplo de uma investigação dessas
que foi bem longe sem qualquer resultado razoável foi feita num
contrato de produção de textos para a primeira-secretaria da Câmara, na
época ocupada pelo deputado Geddel Vieira Lima, vencido pela empresa
GLT com uma proposta de 10 mil reais mensais e perdido pelas empresas
Cogito e Agenda, que apresentaram propostas de 11 mil e 11,3 mil reais
mensais, respectivamente.
O diligente Alexis diz, em depoimento de junho de 2008 à PL-CD, que
teria sido avisado pelo TCU, logo após o início de sua investigação, de
que a proposta da Cogito tinha sido assinada por uma funcionária da
Câmara, o que implicaria uma contravenção penal. Afirma ainda que, por
esse motivo, ouviu a funcionária e a encaminhou para exame grafotécnico
depois de ela negar ter assinado o documento.
Essa investigação prosperou. Foi aberto um inquérito policial pela
PL-CD e localizados os dirigentes das três empresas, que se submeteram a
exame grafotécnico. Abriu-se também um inquérito na Polícia Federal
(PF). Dois de seus agentes foram a Belo Horizonte para ouvir uma
funcionária da SMP&B sobre o caso. Nos autos da investigação da
Câmara, essa história desaparece depois que o dirigente da GLT, a
empresa da proposta vencedora, não comparece para prestar depoimento e
apresenta atestado médico creditando sua ausência ao fato de ter se
submetido a operação de catarata. No entender do repórter, quem tentar
ir mais longe no esclarecimento de eventuais malfeitos semelhantes, que
possam ter existido no contrato SMP&B-Câmara, dizendo que faz isso
para esclarecer o “mensalão”, confunde e não esclarece nada. Embora
possa até pensar que está combatendo o desvio de dinheiro público para
fins políticos escusos, na prática pode mesmo é estar desviando
dinheiro público de atividades que poderiam ser concebidas de modo mais
sensato.
DOIS FATOS EMBARALHADOS, E UM DELES É FALSO
A história de Simone, diretora da SMP&B, é outra prova: o STF desprezou o crime existente e inventou um outro
Num ato recente, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no
Rio de Janeiro, pela anulação do julgamento do “mensalão”, com a
presença de cerca de 800 pessoas, a colunista social Hildegard Angel deu
um depoimento emocionante no qual misturou a história da morte de três
parentes no período da ditadura militar – sua mãe, Zuzu Angel, e dois
irmãos – com a defesa dos condenados no “mensalão”. Disse que, no
julgamento militar de um de seus irmãos, quando ele já estava morto,
fatos levaram a junta militar a decretar sua absolvição. Hildegard
rebatizou o “mensalão” como “mentirão”, pelo fato de, no julgamento da
AP 470, o STF ter ignorado direitos elementares dos acusados e fatos
básicos da história, que a própria ditadura levou em conta no caso de
seu irmão, pelo menos para uma absolvição póstuma.
A história de Simone Vasconcelos, diretora da SMP&B, uma das
pessoas responsáveis pela administração do dinheiro da agência,
confirma essa avaliação: fatos básicos da história na qual ela foi
envolvida e direitos elementares de sua defesa foram ignorados pelo
Supremo. RB foi encontrá-la na casa de parentes, no interior de Minas,
durante o Carnaval. Dores na coluna fizeram com que ela ficasse de pé
durante a maior parte do tempo da entrevista, de cerca de uma hora.
Simone trabalhou seis anos na SMP&B, depois de 15 como funcionária
administrativa no governo de Minas. Assinou inúmeros pagamentos pela
agência. Na página ao lado, junto com sua foto, está o recibo de um
deles, de 860.742,57 reais para a TV Globo, e a história de outro, de
300 mil reais para um certo Davi Rodrigues. O da Globo é um dos que a
emissora recebeu por propaganda veiculada para a Câmara, pelo contrato
da SMP&B. Como se viu no voto do ministro Lewandowski, citado
anteriormente, a veiculação de publicidade pela televisão, jornais,
revistas e internet corresponde a mais de 65% das despesas desse
contrato. E a TV Globo foi a que mais recebeu: 2,73 milhões do total. O
pagamento a Rodrigues é igualmente muito significativo. Como está nos
autos da AP 470, Rodrigues foi o intermediário de um doleiro que recebia
numa agência do Rural o dinheiro depositado por Simone e, depois, o
enviava ao exterior, para uma conta de Duda Mendonça no BankBoston, nas
Bahamas.
Como também está nos autos, Duda, que foi o publicitário da campanha de
Lula para presidente em 2002 e fez outras campanhas para o PT em 2004,
confessou ter recebido 15,5 milhões de reais do partido, sendo 10,5
milhões na conta do BankBoston nas Bahamas. O que um pagamento tem a
ver com o outro? Ambos são assinados por Simone, mas se ligam a duas
histórias completamente distintas. Uma, a da TV Globo, se refere a um
contrato absolutamente legal, analisado exaustivamente e aprovado por
diversos órgãos. Foi vencido pela SMP&B em licitação com mais sete
concorrentes, em que nenhum contestou o resultado. O outro é um
pagamento pelo famoso “caixa dois”. Em nenhum momento, a despeito da
fúria da maioria dos juízes do STF e da quase unanimidade da grande
mídia que os açulava, ninguém disse que Duda recebeu esse dinheiro
porque estava envolvido no suposto “maior escândalo de corrupção da
história da República, no qual o PT corrompeu o processo político
brasileiro comprando voto de deputados”.
Por que Simone foi condenada a 12 anos e sete meses de prisão,
inclusive por crime de evasão de divisas, se o próprio Duda, que
indubitavelmente recebeu o dinheiro que chegou a ele por meio da
assinatura de Simone num cheque, foi absolvido? Porque o STF embaralhou
dois fatos: 1) o crime do caixa dois, que existiu, do qual Simone foi
uma das executoras e no qual estão o dinheiro recebido por Duda e mais o
de duas dúzias de políticos e intermediários seus; e 2) o “mensalão”,
uma criatura fictícia, batizada com esse nome pelo deputado Roberto
Jefferson em junho de 2005 e animada finalmente pelo STF com sua
sentença no julgamento da AP 470 no final do ano passado.
O dinheiro que Simone disponibilizava ao PT, por ordem de Marcos
Valério, era de empréstimos tomados pela SMP&B dos bancos mineiros
Rural e BMG e repassados ao partido. Simone apenas cumpria ordens. Foi
arrolada como integrante de uma “quadrilha publicitária” porque o crime
de formação de quadrilha exige quatro integrantes e a acusação só
tinha três donos efetivos na agência de publicidade: Ramon Hollerbach,
Cristiano Paz e Marcos Valério. A “quadrilha publicitária” a que Simone
“pertencia” foi subordinada a outra: a “quadrilha política”, em que
estaria o chefão de todos, José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil do
governo. Também teria havido o incentivo de uma terceira, a “quadrilha
de banqueiros”, liderada pela presidente do Banco Rural, Kátia Rebelo. E
isso tudo porque três quadrilhas articuladas e com um propósito
grandioso ficavam bem na teoria do “maior crime da história da
República”. Simone parece ser uma mulher forte. Tem noção das forças
poderosas que foram desencadeadas para a construção da história do
“mensalão” e o apoio entusiasmado dos seus familiares, além de uma leve
esperança de que a verdade seja restabelecida.
O ministro Barbosa disse, na sua sentença contra Cunha e a SMP&B,
que se apoiava em três decisões colegiadas. Uma delas, a de Alexis,
como vimos no capítulo anterior, tudo indica, não é válida e não se
sabe se é, de fato, colegiada. A terceira é a do TCU, com a qual
encerraremos nossa história. E a segunda, por fim, é a de uma equipe do
Instituto Nacional de Criminalística, órgão da Polícia Federal
encarregado, entre outras coisas, da análise de documentos. Nossa
história não entrará em detalhes dessa investigação por três motivos: 1)
ela é confusa, tanto que foi usada pelo ministro Barbosa para condenar
os acusados e pelo ministro Lewandowski para absolvê-los; 2) os
técnicos encarregados de realizá-la não conseguiram separar as
atividades da SMP&B nas três modalidades previstas expressamente no
contrato – ao que tudo indica, por não serem especialistas no assunto,
como insistem tanto os defensores de Cunha como os da SMP&B; e 3) a
principal acusação que é feita, a de que os trabalhos da empresa IFT –
Ideias, Fatos e Textos, do jornalista Luiz Costa Pinto, de assessoria a
Cunha, não foram confirmados, está em absoluta contradição com a
avaliação do processo que resultou no acórdão do TCU de 2008, em cujos
autos estão, claramente, os comprovantes da realização dos serviços.
Finalmente, quanto ao esforço de Barbosa para desmoralizar a conclusão
do TCU, ele não a estudou, ao que tudo indica. O que cita como sendo
uma decisão colegiada da corte de contas é o relatório preliminar
apresentado pela equipe de inspeção da 3ª Secex do Tribunal, após a
visita à Câmara e a consulta ao trabalho de Alexis Souza, já citadas.
Inclusive, esse relatório da Secex, de agosto de 2005, repetia o
argumento apresentado depois em forma exagerada por Barbosa, de que os
serviços do contrato tinham sido terceirizados pela SMP&B em 99,9%.
Pedia, ainda, que fossem ouvidos, em 15 dias, o presidente da Câmara,
João Paulo Cunha; o diretor da Secom, Márcio Araújo; e o diretor-geral
da Câmara, Sergio Contreras, e os ameaçava com multa de 252 mil reais,
equivalentes ao valor do trabalho do IFT prestado ao presidente da
Câmara, serviço esse que o relatório considerava ilegal. Além disso, no
detalhe, também pedia a Cunha, Araújo e Contreras explicações sobre os
mesmos pontos cobrados na investigação da Secin.
Essa posição foi sendo desmontada totalmente à medida que a
investigação do TCU evoluía. Já em meados de setembro de 2005, o
secretário da 3ª Secex decidiu que todas as medidas determinativas do
primeiro relatório deveriam aguardar o exame do mérito da questão. No
início de outubro, o então ministro relator do caso no TCU, Lincoln
Rocha, reduziu ainda mais o caráter repressivo das propostas: acolheu
apenas a de sobrestar a prestação de contas da Câmara dos Deputados do
exercício de 2004 e determinou à 3ª Secex que acompanhasse o
desdobramento das investigações na Câmara e analisasse especialmente a
prestação de contas da assessoria denunciada, a dos serviços prestados
pela IFT.
Com a criação da Comissão de Sindicância da Câmara, em meados de 2006, e
para verificar mais informações enviadas ao TCU, o novo ministro
relator do caso, Benjamin Zymler, enviou nova equipe da Secex para mais
uma inspeção na Câmara, feita nos primeiros dias de março de 2007. A
preocupação principal era verificar a possibilidade de terem ocorrido
pagamentos por serviços não realizados. Em relação à IFT, que estava no
topo das preocupações, a Secex considerou corretas as explicações
dadas pela Câmara e a suspeita foi afastada. Outras irregularidades, no
entanto, ainda continuaram em análise.
A questão das contratações de terceiros foi esclarecida logo depois. A
3ª Secex concordou com a avaliação da Câmara de que elas correspondiam
não aos 99,9% apresentados pela Secin, mas a 88,68%, e o relator Zymler
disse que, nas auditorias realizadas pelo TCU em diversos órgãos e
entidades da administração pública federal na área de publicidade e
propaganda no segundo semestre de 2005, os contratos examinados
mostraram graus semelhantes de terceirização. Posteriormente, o TCU
aceitou a explicação dada pela Câmara para praticamente todas as outras
pendências e, a 19 de março de 2008, o caso foi levado ao plenário do
tribunal, tendo como relator o ministro Raimundo Carreiro, que
apresentou voto, acompanhado unanimemente pelos membros da corte,
considerando as informações prestadas pela direção-geral da Câmara
“suficientes para demonstrar a regularidade nos atos de gestão
analisados”. Ao final, Carreiro lembrou que as eventuais propostas
falsas apresentadas por perdedores de concorrências, como a da Cogito
Consultoria, deveriam ser analisadas em inquéritos policiais, como
efetivamente, no exemplo, a Câmara continuava fazendo. Por fim, após
recomendar o aprimoramento do modelo de contrato da Câmara para as
próximas licitações que visarem a contratar agência de publicidade, deu o
caso por encerrado e mandou arquivar os autos.
Raimundo Rodrigues Pereira
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