Aguarda-se para esta semana momentos decisivos na ação penal 470.
Os onze ministros irão julgar o pedido de embargos infringentes de 12
réus. Eles tiveram quatro votos a favor de sua inocência durante o
julgamento, o que lhes dá direito a pleitear que seu caso seja
reexaminado pelo tribunal, num outro julgamento, quando teriam direito,
inclusive, a um novo relator.
A noção de que os embargos infringentes são um direito de réus hoje divide os ministros mas nem sempre foi assim. Em 2007, o próprio Joaquim Barbosa, que hoje diz que os embargos não tem amparo legal, afirmava o contrário.
Julgando um pedido de embargos num caso de assassinato, o atual
presidente do STF alegou que ele não poderia ser concedido porque os
requentes não haviam obtido pelo menos quatro votos dissidentes a seu
favor. Naquele momento, quando a ação penal 470 já era debatida no STF,
Joaquim não colocou a questão de mérito, de legalidade ou não dos
embargos. Seu argumento concentrou-se na falta de votos, deixando claro
que um réu com 4 votos a favor poderia utilizar este recurso. Não havia
dúvidas, porém quanto a legalidade dos embargos. Aplicando-se seu
raciocínio a ação penal 470, não poderia haver dúvida de que os embargos
caberiam a 12 dos 25 condenados. Isso deveria ser um ponto pacífico,
até porque não se tratava de uma opinião isolada.
No inicio do julgamento, Celso de Mello fez uma colocação longa e
fundamentada para mostrar que os embargos infringentes eram um direito
líquido e certo dos acusados que tivessem pelo menos 4 votos.
Sua sugestão serviu para dissipar qualquer dúvida sobre o direito dos réus de contar com um segundo grau de jurisdição.
Foi uma colocação importante, pois se vivia uma situação muito peculiar do ponto de vista dos direitos dos réus.
Normalmente, apenas cidadãos com mandato representativo têm direito a
serem julgados diretamente em tribunais superiores. O cidadão comum deve
ser julgado numa instância inferior e, se for o caso, pode entrar com
recurso em instancias superiores.
Com o argumento de que não se deveria dividir a ação penal, o STF negou o
julgamento em primeira instancia a 34 réus que não tinham direito ao
chamado foro privilegiado, medida tão discriminatória e injusta que não
foi aplicada a outros casos semelhantes, como o mensalão PSDB-MG.
Embora o julgamento pelo Supremo pudesse ser considerado, até então, um
privilégio e uma promessa de tratamento facilitado, que havia
beneficiado tantos políticos no passado – o caso emblemático fora
Fernando Collor -- a situação concreta estava invertida. Era claro que
se corria o risco de suprimir direitos.
Para 90% dos réus, que não tinham mandato eletivo, a decisão
representava uma perda óbvia. Para facilitar o trabalho da acusação, em
nome da necessidade anunciada pelos meios de comunicação de condenar e
punir de forma exemplar, retirou-se desses réus o direito a uma segunda
instância. A reconstituição dos debates daquela fase do julgamento é
abundante em exemplos dessa argumentação.
O argumento de Celso de Mello teve, assim, esta utilidade. Naquele
debate preciso, era preciso dar uma resposta a um prejuízo sofrido por 9
em 10 dos réus do mensalão. Ele ajudou a desafazer suspeitas e temores.
Deu segurança e tranquilidade.
A pergunta que se faz, 13 meses depois, é simples: na hora de se passar
da teoria a prática os infringentes irão sumir? Se havia discordância,
por que o STF não abriu um debate em torno da posição de Celso de Mello,
na ocasião?
As dúvidas só foram surgir na última hora, quando, do ponto de vista dos réus, pode ser tarde demais.
Em posição pouco confortável num debate que terá imensa relevância na
avaliação final do julgamento, e que pode ter repercussão no plano
internacional, na quinta-feira da semana passada Joaquim achou
necessário mostrar que não estava só na controvérsia.
Disse que o juiz Luiz Flavio Gomes também rejeitava os embargos
infringentes. Jurista com vôo próprio e conhecido por uma visão
independente em vários assuntos, com uma visão consolidada da
importância dos direitos individuais, sem que possa ser filiado a
nenhuma das famílias políticas em que se divide nossa magistratura,
Flavio Gomes é uma voz importante nessa discussão.
O detalhe: ao contrário do que disse Joaquim, Luiz Flávio Gomes é a
favor dos embargos infringentes e não tem dúvida de que eles têm
respaldo na jurisprudência brasileira e internacional. Mais do que isso.
Reconhecendo que há uma controvérsia a respeito, o jurista acredita que
este é mais um motivo para que os embargos sejam concedidos aos réus.
Com a autoridade de quem foi citado como fonte confiável pelo presidente
do Supremo, ele aplica, ao debate, um dos mais conhecidos princípios do
direito: em dúvida, pró réu. Reproduzo abaixo trechos de um artigo em
que o jurista explica o debate e seu verdadeiro ponto de vista. Noto que
o juiz sugere que confundiram a geografia de sua argumentação. Ele
considera que os infringentes valem para a jurisprudência europeia mas
não na América. Vamos ler:
"Na sessão de hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a
possibilidade de embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso
de competência originária (casos julgados originariamente em razão do
foro por prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu,
com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de
jurisdição (aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo min.
Celso de Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa).
Duas observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos
os argumentos contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os
embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande);
(b) Valério Mazzuoli e eu afirmávamos na terceira edição do nosso livro
Comentários à CADH(RT) que o sistema europeu (europeu!) não admite o
duplo grau de jurisdição quando o caso é julgado pela máxima corte do
país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos:
(a) Por que entendo cabíveis os embargos infringentes?
De acordo com a minha opinião, não há dúvida que tais embargos
(infringentes) são cabíveis. Dois são os fundamentos (consoante meu
ponto de vista): (a) com os embargos infringentes cumpre-se o duplo grau
de jurisdição garantido tanto pela Convenção Americana dos Direitos
Humanos (art. 8º, 2, “h”) bem como pela jurisprudência da Corte
Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe séria controvérsia sobre
se tais embargos foram ou não revogados pela Lei 8.038/90. Sempre que
não exista consenso sobre a revogação ou não de um direito, cabe
interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao réu, que
tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito.
Haveria um terceiro argumento para a admissão dos embargos
infringentes? Sim. A esses dois fundamentos cabe ainda agregar um
terceiro: vedação de retrocesso. Se de 1988 (data da Constituição) até
1990 (data da lei 8.038) existiu, sem questionamento, o recurso dos
embargos infringentes (art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova lei,
ainda que fosse explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu),
não poderia ter valor, porque implicaria retrocesso nos direitos
fundamentais do condenado. De se observar que tais embargos, no caso de
condenação originária no STF, cumprem o papel do duplo grau de
jurisdição, assegurado pelo sistema interamericano de direitos humanos.
Pelos três fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o
Min. Joaquim Barbosa (que já rejeitou os embargos infringentes de
Delúbio) não está na companhia do melhor direito. O tema vai passar pelo
Plenário, provavelmente na próxima seção (de 12/9/13). A controvérsia
será imensa (ao que tudo indica)."
Há outra colocação relevante. Considerado um mestre pelo ex-presidente
do STF Ayres Britto, que foi até São Paulo em busca de sua cultura
jurídica, o professor Celso Antonio Bandeira de Mello, um dos mais
respeitados juristas do país, publicou ontem um artigo sobre o mesmo
tema. Vamos aprender alguma coisa com ele:
“O Poder Judiciário, como toda e qualquer realização humana, está
sujeito às mesma falências e imperfeições a que o ser humano está
sujeito. Não é porque alguém é juiz, mesmo que da mais alta corte do
país, que escapa das insuficiências, defeitos, paixões ou mesmo simples
condicionantes capazes de virem a tisnar a atuação dos homens em geral
e, por conseguinte, a do próprio Judiciário, interferindo com a isenção,
equilíbrio e serenidade que deveriam caracterizar tal Poder.
Este é um motivo, embora não o único, pela qual o chamado duplo grau
de jurisdição é importantíssimo para ao menos tentar prevenir ou
minimizar a realização de injustiças, de decisões suscitadas por alguma
destas indevidas causas prejudiciais ao cumprimento do Direito. Por
isto, todos os povos civilizados consagram a obrigação de que os réus
sejam submetidos a mais de uma instância de julgamento, sendo
excepcionalíssimos os casos em que há dispensa desta exigência.
A Constituição brasileira não foge a este padrão. Assim, justamente
por ser incomum a transgressão deste valioso principio, é que foi
necessária a previsão constitucional do artigo 101, I, "b", para que
titulares de certos cargos fossem diretamente julgados pelo Supremo
Tribunal Federal, com o que ficaria suprimida pelo menos uma instância
de apreciação da matéria. Sem embargo, ao arrepio dele, no julgamento da
Ação Penal 470, vulgarmente conhecida, sob os auspícios da imprensa,
como mensalão, todos os réus, mesmo quando não se enquadravam na
hipótese deste dispositivo, foram privados desta garantia elementar.
Nenhuma justificativa prestante de Direito foi apresentada para fundar
tão esdrúxulo comportamento."
Você pode até achar que os embargos infringentes são uma invencione de
quem quer atrasar as punições dos condenados. Pode falar que é tudo
manobra protelatória, chicana. Mas preste atenção no argumento
fundamental de Celso Antonio Bandeira de Mello:
Não é porque alguém é juiz, mesmo que da mais alta corte do país, que
escapa das insuficiências, defeitos, paixões ou mesmo simples
condicionantes capazes de virem a tisnar a atuação dos homens em geral
e, por conseguinte, a do próprio Judiciário, interferindo com a isenção,
equilíbrio e serenidade que deveriam caracterizar tal Poder.
Pense no último argumento de Luiz Flávio Gomes: mesmo que não houvesse
fundamento para os embargos infringentes, que se considerasse que eles
são puro absurdo, eles teriam de ser aplicados, na Ação Penal 470,
porque já foram incorporados a nossa jurisprudência. Suspendê-los agora,
de uma hora para outra, implicaria em “retrocesso nos direitos
fundamentais do condenado.” Preste atenção na palavra “retrocesso.” Era
este o termo que se empregava quando, na luta pela democratização do
país, surgiam forças que operavam para restaurar medidas típicas de uma
ditadura. O jurista está dizendo, com a elegância possível de quem se
confronta com o presidente do STF que o mencionou como fonte autorizada
na discussão, que a negação dos embargos infringentes seria uma medida
autoritária e injusta.
Quem acompanha os debates sobre a fase atual do mensalão sabe muito bem qual a perspectiva destes dias.
São imensas as chances de que os embargos sejam rejeitados, apesar de tudo o que você leu nos parágrafos acima.
A Constituição mudou?
É isso que saberemos em breve.
Não tivemos uma Assembleia Constituinte para revogar direitos
consagrados pelos cidadãos e tão bem explicados por Celso Bandeira de
Mello e Luiz Flávio Gomes. Nem o Congresso aprovou qualquer emenda neste
sentido.
Mais do que nunca, o STF irá ingressar num debate político sobre os fundamentos do Direito.
A pergunta é: deve-se defender direitos e prerrogativas de cada réu, de
ser tratado como inocente até prova em contrário ou iremos atender o
clamor da mídia?
Sim, meus amigos. Depois do 7 de setembro, não dá para dizer que as ruas
“roncam” pela prisão imediata dos condenados da ação penal 470. Isso é
invenção de quem quer que os condenados sejam presos de qualquer
maneira. Acham bonito. Patriótico. Lindo.
No fundo, estão matando saudade: há quanto tempo não se via comunista na
cadeia, devem comentar, em voz baixa, mesmo admitindo que não se fazem
mais comunistas como antigamente.
Os protestos de junho foram imensos. Trouxeram questões e desafios para o
mundo político e, com o passar do tempo, todo mundo pode ver quem tenta
dar respostas aquilo que se disse nas ruas, e quem finge que não tem
nada a ver com isso.
Quem ronca sobre o mensalão é a mídia.
Tenho certeza de que, convencidos da culpa dos réus, muitos brasileiros
esperam por sua prisão. Mas tenho certeza de que nenhum cidadão quer que
isso seja feito na base do atropelo, da suspensão de direitos, da
quebra de garantias.
Todos (ou quase todo) sabemos que, num regime democrático, onde todos
são iguais perante a lei, a falta de respeito pelos direitos de um
cidadão, qualquer que seja ele, representa uma ameaça a todos cidadãos, a
ruptura do “único elo inquebrável de união entre homens civilizados,”
como dizia George Clemenceau. Para quem não se recorda, ele foi um dos
principais articuladores da campanha pela revisão da condenação do
capitão Alfred Dreyfus, vítima de um processo fabricado por militares
franceses. Perseguindo um militar judeu, eles queriam revogar direitos
democráticos de toda população francesa no final do século XIX.
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