A lei promulgada pelo regime nazista em 1935 prescrevia que era “digno
de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’
popular’”. No Mein Kampf, Adolph Hitler proclamava que a
finalidade do Estado é preservar e promover uma comunidade fundada na
igualdade física e psíquica de seus membros.
Herbert Marcuse escreveu o ensaio O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo.
Ele considerava a ordem liberal um grande avanço da humanidade. Sua
emergência na história submeteu o exercício da soberania e do poder ao
constrangimento da lei impessoal e abstrata. Mas Marcuse também procurou
demonstrar que a ameaça do totalitarismo está sempre presente nos
subterrâneos da sociedade moderna. Para ele, é permanente o risco de
derrocada do Estado de Direito: os interesses de grupos privados, em
competição desenfreada, tentam se apoderar diretamente do Estado,
suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.
Foi o que aconteceu no regime nazista. O Estado foi apropriado pelo
“movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade
civil. Os tribunais passaram a decidir como supremos censores e
sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da
legitimidade étnica dos cidadãos. A primeira vítima do populismo
judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade, com o esmaecimento
das fronteiras entre o que é lícito e o que não é. Leio que circula nos
meios judiciários a ideia de “flexibilizar” a tipificação da conduta
criminosa. Vou dar um exemplo, talvez um tanto exagerado: se João de Tal
arrotar na rua, corre o risco de ser enquadrado no crime de atentado
violento ao pudor.
Trata-se da emergência, na esfera jurídico-política, da exceção
permanente. Coloca-se em movimento a lógica do poder absoluto, aquele
que não só corrompe, como corrompe absolutamente. Os cânones do Estado
de Direito impõem aos titulares da prerrogativa de vigiar, julgar e
punir o delicado sopesamento das relações entre a garantia dos direitos
individuais, a publicidade dos atos praticados pela autoridade e a
impessoalidade do procedimento persecutório. O consensus iuris é o
reconhecimento dos cidadãos de que o direito, ou seja, o sistema de
regras positivas emanadas dos poderes do Estado, legitimado pelo
sufrágio universal, é o único critério aceitável para punir quem se
aventura à violação da norma abstrata.
Já há muito tempo, não só no Brasil, mas também no resto do mundo,
sucedem-se os episódios de constrangimento midiático das funções
essenciais do Estado de Direito, para perseguir adversários, ajudar os
amigos, quando não cuidar de legislar em causa própria. A exceção
permanente inscrita nos métodos de justiçamento midiático é funesta para
o Estado Democrático de Direito: transforma as autoridades em heróis
vingadores, encarregados de limpar a cidade (ou o País), ainda que o
preço seja deseducar os cidadãos e aumentar a sensação de insegurança da
sociedade. Nessa cruzada militam os que fazem gravações clandestinas ou
inventam provas e os jornalistas que, em nome de uma “boa causa”,
tentam manipular a opinião pública.
Os apressadinhos não se cansam de dizer que o Judiciário é lento.
Poderia e deveria, com mais recursos, pessoal e, sobretudo, com o
aperfeiçoamento dos códigos de processo, tornar-se mais rápido. Mas, num
sentido profundo, a lentidão é uma virtude do Judiciário. Melhor seria
dizer que a instantaneidade dos tempos da web é estranha ao bom
cumprimento da prestação jurisdicional. Não haverá julgamento justo sem o
contraditório entre as partes, a exibição de provas, os depoimentos. A
formação da convicção do juiz, qualquer estudante de Direito sabe,
depende da argumentação das partes.
Invocar a virtude, a honestidade ou os bons propósitos para contestar a
impessoalidade e o “formalismo” da lei é a maior corrupção praticada
contra a vida democrática. Montesquieu dizia que há insanidade na
substituição da força da lei pela presunção de virtude autoalegada.
O Judiciário era rápido e eficiente na União Soviética de Stalin ou na
Alemanha de Hitler. Os processos terminavam sempre de forma previsível e
o contraditório não passava de uma encenação. Tudo estava justificado
pelas razões superiores do Reich de Mil Anos ou pelos imperativos da
construção do socialismo.
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