Maluf, Gaspari, Cesar Civita, Victor Civita, João Figueiredo e Augusto Nunes |
O combate à corrupção foi palavra de ordem durante a ditadura. Nos porões do regime, porém, a ilegalidade prevaleceu.
Heloisa Maria Murgel Starling
Combater a corrupção e derrotar o comunismo: esses eram os principais
objetivos que fermentavam os discursos nos quartéis, às vésperas do
golpe que derrubou o governo João Goulart, em março de 1964. A noção de
corrupção dos militares sempre esteve identificada com uma desonestidade
específica: o mau trato do dinheiro
público. Reduzia-se a furto. Na perspectiva da caserna, corrupção era
resultado dos vícios produzidos por uma vida política de baixa qualidade
moral e vinha associada, às vésperas do golpe, ao comportamento viciado
dos políticos diretamente vinculados ao regime
nacional-desenvolvimentista.
Animado por essa lógica, tão logo iniciou seu governo, o marechal
Castello Branco (1964-1967) prometeu dar ampla divulgação às provas de
corrupção do regime anterior por meio de um livro branco da corrupção –
promessa nunca cumprida, certamente porque seria preciso admitir o
envolvimento de militares nos episódios relatados. Desde o início o
regime militar fracassou no combate à corrupção, o que se deve em grande
parte a uma visão estritamente moral da corrupção.
Essa redução do político ao que ele não é – a moral individual, a
alternativa salvacionista – definiu o desastre da estratégia de combate à
corrupção do regime militar brasileiro, ao mesmo tempo em que
determinou o comportamento público de boa parte de seus principais
líderes, preocupados em valorizar ao extremo algo chamado de decência
pessoal.
Os resultados da moralidade privada dos generais foram insignificantes
para a vida pública do país. O regime militar conviveu tanto com os
corruptos, e com sua disposição de fazer parte do governo, quanto com a
face mais exibida da corrupção, que compôs a lista dos grandes
escândalos de ladroagem da ditadura. Entre muitos outros estão a
operação Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), que ganhou
concorrência suspeita para a exploração de madeira no Pará, e os desvios
de verba na construção da ponte Rio–Niterói e da Rodovia
Transamazônica. Castello Branco descobriu depressa que esconjurar a
corrupção era fácil; prender corrupto era outra conversa: “o problema
mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais
difícil de caracterizar, punir e erradicar”.
A declaração de Castello foi feita meses depois de iniciados os
trabalhos da Comissão Geral de Investigações. Projetada logo após o
golpe, a CGI conduzia os Inquéritos Policiais-Militares que deveriam
identificar o envolvimento dos acusados em atividades de subversão da
ordem ou de corrupção. Com jurisdição em todo o território nacional,
seus processos obedeciam a rito sumário e seus membros eram recrutados
entre os oficiais radicais da Marinha e da Aeronáutica que buscavam
utilizar a CGI para construir uma base de poder própria e paralela à
Presidência da República.
O Ato Institucional n.º 5, editado em 13 de dezembro de 1968, deu início
ao período mais violento e repressivo do regime ditatorial brasileiro –
e, de quebra, ampliou o alcance dos mecanismos instituídos pelos
militares para defender a moralidade pública. Uma nova CGI foi gerada no
âmbito do Ministério da Justiça com a tarefa de realizar investigações e
abrir inquéritos para fazer cumprir o estabelecido pelo Artigo 8º. do
AI-5, em que o presidente da República passava a poder confiscar bens de
“todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo
ou função pública”.
Para agir contra a corrupção e dar conta da moralidade pública, os
militares trabalharam tanto com a natureza ditatorial do regime como com
a vantagem fornecida pela legislação punitiva. Deu em nada. Desde 1968
até 1978, quando foi extinta pelo general Geisel, a CGI mancou das duas
pernas. Seus integrantes alimentaram a arrogante certeza de que podiam
impedir qualquer forma de rapinagem do dinheiro público, através da mera
intimidação, convocando os cidadãos tidos como larápios potenciais para
esclarecimentos.
A CGI atribuiu-se ainda a megalomaníaca tarefa de transformar o combate à
corrupção numa rede nacional, atuando ao mesmo tempo como um tribunal
administrativo especial e como uma agência de investigação e informação.
Acabou submergindo na própria mediocridade, enredada em uma área de
atuação muito ampla que incluía investigar, por exemplo, o atraso dos
salários das professoras municipais de São José do Mipibu, no Rio Grande
do Norte; a compra de adubo superfaturado pela Secretaria de
Agricultura de Minas Gerais e as acusações de irregularidades na
Federação Baiana de Futebol. Entre 1968 e 1973 os integrantes da
comissão produziram cerca de 1.153 processos. Desse conjunto, mil foram
arquivados; 58 transformados em propostas de confisco de bens por
enriquecimento ilícito, e 41 foram alvo de decreto presidencial.
Mas o fracasso do combate à corrupção não deve ser creditado
exclusivamente aos desacertos da Comissão Geral de Investigações ou à
recusa de membros da nova ordem política em pagar o preço da moralidade
pública. A corrupção não poupou a ditadura militar brasileira porque
estava representada na própria natureza desse regime. Estava inscrita em
sua estrutura de poder e no princípio de funcionamento de seu governo.
Numa ditadura onde a lei degradou em arbítrio e o corpo político foi
esvaziado de seu significado público, não cabia regra capaz de impedir a
desmedida: havia privilégios, apropriação privada do que seria o bem
público, impunidade e excessos.
A corrupção se inscreve na natureza do regime militar também na sua
associação com a tortura – o máximo de corrupção de nossa natureza
humana. A prática da tortura política não foi fruto das ações
incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatação
reside o escândalo e a dor. A existência da tortura não surgiu na
história desse regime nem como algo que escapou ao controle, nem como
efeito não controlado de uma guerra que se desenrolou apenas nos porões
da ditadura, em momentos restritos.
Ao se materializar sob a forma de política de Estado durante a ditadura,
em especial entre 1969 e 1977, a tortura se tornou inseparável da
corrupção. Uma se sustentava na outra. O regime militar elevou o
torturador à condição de intocável: promoções convencionais,
gratificações salariais e até recompensa pública foram garantidas aos
integrantes do aparelho de repressão política. Caso exemplar: a
concessão da Medalha do Pacificador ao delegado Sérgio Paranhos Fleury
(1933-1979).
A corrupção garantiu a passagem da tortura quando esta precisou
transbordar para outras áreas da atividade pública, de modo a obter
cumplicidade e legitimar seus resultados. Para a tortura funcionar é
preciso que na máquina judiciária existam aqueles que reconheçam como
legais e verossímeis processos absurdos, confissões renegadas, laudos
periciais mentirosos. Também é necessário encontrar gente disposta a
fraudar autópsias, autos de corpo de delito e a receber presos marcados
pela violência física. É preciso, ainda, descobrir empresários dispostos
a fornecer dotações extra-orçamentárias para que a máquina de repressão
política funcione com maior precisão e eficácia.
A corrupção quebra o princípio da confiança, o elo que permite ao
cidadão se associar para interferir na vida de seu país, e ainda degrada
o sentido do público. Por conta disso, nas ditaduras, a corrupção tem
funcionalidade: serve para garantir a dissipação da vida pública. Nas
democracias – e diante da República – seu efeito é outro: serve para
dissolver os princípios políticos que sustentam as condições para o
exercício da virtude do cidadão. O regime militar brasileiro fracassou
no combate à corrupção por uma razão simples – só há um remédio contra a
corrupção: mais democracia.
Heloisa Maria Murgel Starling é professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais e co-autora de Corrupção: ensaios e críticas (Editora da UFMG, 2008).
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