A esquerda e os evangélicos têm em comum certo apelo à simplicidade e ao
diálogo com os desesperados. A escolha do novo papa, portanto, visa
bloquear o crescimento dos pentecostais e barrar o avanço da esquerda na
zona onde há mais católicos
A investidura do cardeal Jorge Bergoglio, como novo chefe da igreja
católica, de alguma forma surpreendendo até os mais atentos analistas,
pode ser interpretada através de paralelo histórico. A comparação
possível remonta a 1978, quando os italianos perderam primazia sobre o
Vaticano e o polonês Karol Wojtyla foi ungido como o papa João Paulo II.
Apresentava-se de forma bastante clara o objetivo das correntes
hegemônicas no colégio de cardeais, alinhadas com a geopolítica
ocidental da guerra fria. Para enfrentar o campo socialista e decepar a
influência dos valores de esquerda sobre o próprio catolicismo, fez-se
necessário um cavalo de pau. Foi preciso inovar na origem do sucessor de
Pedro para reduzir resistências contra o novo discurso ultramontano.
A jogada tática revelou-se formidável para a consolidação do trio de
ferro que lideraria a campanha pelo desmantelamento da União Soviética.
Ao lado de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, o papa polaco revigorou o
reacionarismo clerical. Por sua nacionalidade, pôde operar no interior
do território mais vulnerável e com maior população católica do mundo
socialista. A partir dessa ofensiva, reuniu forças para dilacerar os
grupos renovadores vinculados ao Concílio Vaticano II, particularmente
os adeptos da Teologia da Libertação.
Os trinta e cinco anos de governo Wojtyla-Ratzinger, porém, levaram à
exaustão determinada simbologia da direita católica, baseada na
recuperação do caráter sagrado e aristocrático da igreja. O arsenal que
fora útil para restaurar a hierarquia eclesiástica no período anterior,
de batalha contra a dissidência teológica, acabou perdendo eficácia
comparativa contra religiões de cunho mais popular, particularmente em
países mais pobres.
A redução do número de fiéis e outros sinais de decadência provocaram
fissuras e conflitos cada vez mais agudos na cúpula romana, dentro da
qual se intensificaram tanto a disputa de opiniões quanto a guerra por
mando e controle financeiro, para não falar de outras perversidades
próprias do ambiente secreto e de impunidade que quase sempre vigorou no
Vaticano.
Além do avanço evangélico em antigas fortalezas católicas, especialmente
na América Latina, a igreja da região, devidamente domesticada por João
Paulo II e Bento XVI, também passou a ver sua influência afrontada por
nova onda de governos progressistas.
Essas administrações, direta ou indiretamente, ademais de contrapor
projetos terrenos de libertação ao espírito de compaixão passiva pelos
pobres, ditado pelos últimos papas, abriram portas para temas laicos e
modernizantes que apavoram fundamentalistas religiosos de distintas
orientações.
Mudanças para legalizar casamento entre pessoas do mesmo sexo e o
direito ao aborto, por exemplo, passaram a ocupar espaço relevante na
agenda de nações do capitalismo periférico. Até mesmo o voto de
castidade e outras regras corporativas voltaram ao debate, solapando uma
silenciosa compreensão confessional do que seria o fim da história.
Nesse cenário de turbulências, apesar de visões antagônicas sobre vários
assuntos, a esquerda e os evangélicos têm em comum certo apelo à
simplicidade e ao diálogo com os desesperados. O conservadorismo
católico que veste sapatos Prada e reassume hábitos medievais, na mão
oposta, veio consolidando imagem de distância, opulência e arrogância.
A escolha do novo papa, portanto, naturalmente deveria acertar contas
com essas variáveis, quais sejam: bloquear o crescimento dos
pentecostais e barrar o avanço da esquerda na zona com a maior
quantidade de católicos do planeta.
Entronizar um dos cardeais latino-americanos, nesta perspectiva, era
opção previsível. Não apenas por nacionalidade, mas também para afastar a
igreja do círculo putrefato no qual rondam seus líderes europeus e
norte-americanos.
O axioma polonês foi útil na hora de decidir para qual país o pêndulo
deveria se inclinar. A escolha pelo elo mais fraco parece nítida. A
Argentina, diferentemente do Brasil, ainda é relativamente pouco afetada
pela escalada evangélica e apresenta melhores condições para servir de
plataforma às áreas hispânicas do subcontinente. Do ponto de vista
político, entre todas as experiências latino-americanas, ali as forças
progressistas enfrentam mais dificuldades e contradições, acossadas por
uma classe média organizada e possante.
Por fim, entre os cardeais argentinos havia um homem que, como Wojtyla
em seu momento, apresentava simultaneamente credenciais de
conservadorismo e mudança. Há provas razoáveis que o cardeal Bergoglio,
para além de posições reacionárias em direitos civis, comportou-se entre
o silêncio obsequioso e a cumplicidade ativa perante a ditadura
militar. Prestou-se, nos últimos tempos, ao papel de chefe moral da
oposição direitista contra os Kirchners, de acordo com o próprio
Departamento de Estado norte-americano. Mas seus hábitos são, ao menos
aparentemente, os de um pastor humilde e próximo da gente comum, uma
ruptura com o modelo púrpura de Roma.
A imagem do papa buono, que abriu a João XXIII o caminho para as
reformas dos anos 60, agora é resgatada, em operação midiática de rara
envergadura, para popularizar um príncipe da contra-reforma e reescrever
sua contraditória biografia. Um conservador jesuíta que, como seus
antepassados de ordem, foi escalado para dobrar a América Latina através
do verbo e da catequese, abandonando o verticalismo doutrinário e
oligárquico tão a gosto da Opus Dei e da igreja saxônica.
Essa alteração de método e perfil tem sido recebida por alguns setores
como prenúncio de uma época de abertura no catolicismo. Não faltou quem
classificasse de nova e alvissareira encíclica o batismo de Bergoglio
como Francisco. Pode até ser, pois de onde nada se espera tudo pode
acontecer, inclusive nada. Mas não foi a própria bíblia a alertar contra
os lobos em pele de cordeiro?
Breno AltmanNo 247
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