Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo*
Outra sessão longa no Supremo Tribunal Federal. Para decidir a
constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Mais uma vez a sensação de
que o Direito pátrio é um emaranhado conceitual e principiológico,
impossível de conciliar em termos de gerar decisões unânimes. Não se
pense em massificação e mente plana; há grande valor na diversidade. A
vida é ambígua, plural e contraditória. Uma mesma questão, muitas
visões, versões, tendências.O que preocupa, hoje, é a enorme dificuldade de consenso sobre temas aparentemente singelos. Ideias claras e distintas não existem mais até na matemática, na qual se diz existir, por exemplo, um número irracional. Talvez por isso, Fernando Henrique Cardoso, em seu livro "A soma e o resto", afirme como exórdio: "Sou cartesiano, mas com pitadas de candomblé". A mesma imagem parece condicionar os juristas e os juízes, enredados num discurso de muitas vozes, tantas vezes descontínuo e imprevisível, carecendo de olhos treinados no ritmo do candomblé.
Sei que o mundo é multipolar e pluricultural, em que o poder do Estado também se divide por ideologias. Ampliam-se os grupos de interesses; crescem a instabilidade e a incerteza. Entre o universal e o particular, entre o pasteurizado e a multiplicidade, o desafio é saber o que vale a pena, para a pessoa não se perder na insignificância das coisas descartáveis.
O ponto de tensão para quem exerce poder, sobretudo os juízes, surge quando as muitas razões possíveis confundem o veredicto. Não basta ser autêntico e íntegro; nem transparente. Na ordem judicial, saber a que se ater é sempre em face da questão guerreada. Pode ocorrer, algumas vezes, que as certezas radicais do indivíduo sejam de baixa serventia. Para agravar, nenhuma arte ou ciência ensina um modo seguro de decair de si mesmo, certo, de mais, que um dos sentidos da vida é sermos no mundo exterior aquilo que somos por dentro, virtualmente.
O julgamento da Lei da Ficha Limpa foi uma maratona de votos intermináveis. Por trás de cada fala o zelo à neutralidade - quase utopia deontológica -, a materializar, contudo, sob o verniz da argumentação exegética, trazendo a lume, então, a dimensão humana do julgador. Assim é que todos foram pintando o grande quadro da decisão, alguns com maior tinta e brilho, a favor do projeto popular sancionado em 2010, outros, em minoria, preocupados com o momento de vigência do novo requisito de acesso à ribalta parlamentar.
Urge bem compreender a missão de julgar. Havendo colisão de princípios, como sugeria o caso, acabou preponderando o dever de probidade da pessoa pública sobre a irretroatividade das leis, máxime por se cogitar de registro eleitoral, que é relação jurídica nova, projetada ao futuro. Normal, portanto, a divergência, com espaços à quebra de neutralidade e afirmação de crenças subjetivas, o que apenas confirma que a condição de juiz não anula o ser humano, com suas convicções, paixões, idiossincrasias.
Não creio que se abriu precedente à "retroatividade maligna", conforme palavras do presidente Cezar Peluso. Tampouco foi relativizado o princípio da inocência porque as inelegibilidades, em razão de negativa do registro, não têm natureza de pena criminal, tal a feliz observação do ministro Joaquim Barbosa. Penso mais com o poético ministro Ayres Britto ao acentuar o valor constitucional da moralidade na vida pública, permitindo-se citar trocadilho do padre Antônio Vieira: "Os governadores chegam pobres às Índias ricas (como o Brasil era chamado) e voltam ricos das Índias pobres". Também a ministra Cármen Lúcia, ditando frase antológica, "a vida não se passa a limpo a cada dia".
Sim, senhoras e senhores, a vida é a soma de tudo que a gente faz todos os dias, tanto maior se em jogo o exercício de poder político, que transmuda o que era só história privada em honra pública. Daí a importância capital da vida pregressa, sabendo-se que o passado sempre conta muito. Para condenar ou absolver.
* Juiz de Direito, aposentado – Professor – Tabelião Registrador
Fonte: Assessoria de Imprensa da Amaerj
NOTA DO BLOG DO SARAIVA:
O Juiz Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo é meu colega do Concurso de 1987.
Tabelião Rigistrador do 4º Ofício da Comarca do Rio de Janeiro, aprovado em difícil concurso, já tinha tempo para aposentadoria como Juiz de Direito e a Magistratura perdeu um Juiz íntegro, competente e inteligente.
Atencioso, ponderado e educado são outras características do Dr. Jairo.
Parabéns pelo excelente artigo.
Saraiva
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