Para celebrar
sua 700ª edição, ÉPOCA refez a pesquisa de opinião de seu lançamento, em
1998. Resultado: os níveis de confiança e satisfação são recordes. O
que explica o perene otimismo brasileiro?
Que
o brasileiro esbanja otimismo sobre o futuro não é novidade. Há exatos
70 anos, o austríaco Stefan Zweig cunhou a famosa expressão “Brasil,
país do futuro”, que captava a atmosfera esperançosa do país e acabou
virando título de seu livro mais conhecido. Cientificamente isso também
já foi comprovado. Em 2009, uma pesquisa mundial feita pelo Gallup World
Poll mediu o grau de satisfação com a vida em 144 países. As pessoas
precisavam responder quão felizes estavam numa escala de 0 a 10. A média
7 atribuída pelos brasileiros colocou o país na 17a posição no ranking
mundial, seis posições à frente da própria colocação no ranking
anterior, de 2006. Considerando o PIB per capita, que colocava o Brasil
em torno do 50o lugar no mundo, esse desempenho já chamava a atenção.
Quando os pesquisadores do Gallup perguntaram sobre a expectativa de
felicidade para 2014, o Brasil virou campeão mundial. Com nota 8,7,
apareceu em primeiro lugar na lista de 144 países. Agora, dois anos
depois, uma ampla pesquisa exclusiva constatou que o otimismo brasileiro
está calçado na realidade econômica, reflete a melhoria da vida no
presente e – a despeito dos problemas – está em ascensão.
Para celebrar sua edição número 700, ÉPOCA
decidiu refazer a pesquisa sobre satisfação com a vida e expectativa de
futuro que foi tema da capa da edição número 1 da revista, em 25 de
maio de 1998. No levantamento de 13 anos atrás, ÉPOCA estreou nas bancas
mostrando o retrato de uma nação moderadamente otimista, menos ufanista
que seus vizinhos latinos, mas algo descrente da legitimidade da
democracia. Parecia razoavelmente satisfeita com a vida, mas muito
preocupada com o problema do desemprego. Falava-se naquele momento que a
autoestima do brasileiro estava “saindo do fundo do poço”. O que mudou
nessa sociedade, 700 edições depois, é o mote da atual pesquisa. Ela foi
levada a campo pelo Instituto MCI no mês passado, com as mesmas
perguntas de 1998, elaboradas então pelo centro chileno Latinobarômetro e
aplicadas aqui pelos institutos Mori Brasil e Vox Populi.
Apesar
de problemas crônicos como corrupção e violência, o país que emerge da
consulta parece viver um momento de intensa satisfação, inédita desde a
redemocratização, há pouco mais de 25 anos. Tostão, o ex-craque de
futebol, hoje cronista, escreveu, dias atrás, um artigo em que captura
essa sensação: “O complexo de vira-lata (que Nelson Rodrigues atribuiu aos brasileiros)
continua presente. Porém, existe hoje, bastante forte, o sentimento
oposto, o complexo de grandeza (...) Existe hoje uma euforia em parte da
sociedade, como se o Brasil estivesse uma maravilha e muitos outros
países falidos”.
A pesquisa
encomendada por ÉPOCA mostra uma nação contagiada por esse “complexo de
grandeza”. Há um sentimento de satisfação vários graus acima daquele
constatado no fim dos anos 1990, algo que nem sempre é explicável pelas
circunstâncias imediatas ou pelas ainda difíceis condições de vida da
maioria. O otimismo parece fazer parte da psicologia brasileira mesmo em
momentos de crise. Quando as coisas vão bem para o país, como agora,
ele transborda. A que se deve isso?
O sociólogo e jornalista Muniz Sodré trata disso no livro A comunicação do grotesco: introdução à cultura de massa no Brasil.
Sodré relaciona mecanismos psíquicos e sociais que passaram a fazer
parte do “ser brasileiro”. Além do “espírito de conciliação”, do
“personalismo generalizado”, do “gosto pelo verbalismo” e da
“transigência nas relações raciais”, ele dedica especial atenção ao que
chama de “otimismo generalizado” – que, segundo Sodré, muitas vezes
transborda para o ufanismo. Para tentar explicar a origem desse
fenômeno, o autor volta aos anos 1930, quando o cenário político,
econômico e social passou por profundas transformações. Com a ascensão
de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, o governo passou a incentivar um
modelo de integração nacional calcado na industrialização, na
urbanização e na complexidade do aparelho estatal, que fortaleceu o
nacionalismo. O rádio se consolidou como instrumento de difusão da ideia
de brasilidade. A cultura foi contaminada por esse clima de euforia
ufanista e passou a reproduzi-lo em cancões como “Aquarela do Brasil”,
de Ary Barroso. As riquezas naturais (“Essas fontes murmurantes, onde
mato minha sede...”) começaram a ser decantadas. Num cenário de orgulho
cada vez mais retumbante, até Deus virou brasileiro. O otimismo se
exacerbou e o ufanismo tornou-se uma característica nacional. O Brasil
se converteu no “país do futuro”, diz Sodré, um país grandioso, de
enorme potencial, de gente simples, mas trabalhadora. “Deixam de existir
limites entre o Brasil real e o Brasil possível”, escreveu ele.
Os
aspectos em que esse otimismo mítico aparece hoje de forma mais
evidente dizem respeito às condições de vida, no presente e no futuro.
“Sua vida, hoje, é melhor, igual ou pior que a de seus pais?” No fim dos
anos 1990, menos da metade da população (44%) respondia “melhor”. Hoje,
o total dos que julgam ter avançado em relação aos pais saltou para
73%, um incremento de 29 pontos porcentuais. Os que afirmavam ter uma
vida apenas igual ou pior que a dos pais formavam o grupo majoritário em
1998, com 55% da população. Agora, somam 26%, apenas um quarto do
total.
“É um avanço
surpreendente, maior que o esperado”, diz o cientista político Marcus
Figueiredo, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj). “Ou o Brasil deu um
salto muito grande nesses 13 anos ou houve um surto qualquer que fez
explodir o otimismo na cabeça das pessoas”, afirma ele. “Fico com a
primeira hipótese. Do governo Fernando Henrique Cardoso para cá, a
sociedade só teve ganhos. A partir do governo Lula, esses ganhos se
expandiram para os mais pobres.” O psicólogo Odair Furtado, coordenador
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC de São
Paulo, tem opinião parecida: “Por um período na ditadura, tivemos avanço
econômico, mas ele atendeu a um segmento privilegiado. Agora, o setor
atendido é maior e mais importante. Isso é novo em nossa história.
Vivemos um momento que pode mudar a autoestima do brasileiro”.
Nas
expectativas em relação ao futuro, o avanço é equivalente. “A vida de
seus filhos será melhor, igual ou pior do que a sua própria vida?”, foi a
pergunta feita em 1998 e refeita agora. Antes, o otimismo já era
perceptível. Para 55% da população, a vida dos filhos tenderia a ser
melhor. Hoje, o grupo que compartilha esse sentimento de confiança
cresceu para 70%, 15 pontos a mais.
Para
o cientista político Antonio Lavareda, dono do Instituto MCI, que
conduziu a pesquisa para ÉPOCA, a sensação de contentamento com a vida
captada na pesquisa tem um efeito colateral extremamente positivo: ajuda
a consolidar o valor da democracia. Os números recém-apurados por sua
empresa coadunam essa tese. Em 1998, exatamente 50% dos brasileiros
diziam que a democracia era preferível a qualquer outra forma de
governo. Agora, diante da mesma pergunta, 75% da população responde
positivamente. “É um resultado fantástico”, diz Lavareda. “Serve para
provar o valor do ambiente econômico e social. Se a gente fizesse essa
mesma pergunta em 1992, certamente esse valor não seria tão reconhecido.
Era um período de crise econômica, com inflação e pouco crescimento.
Também havia decepção política, com as denúncias que resultaram no
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello.
Além
de refazer as perguntas de 1998, ÉPOCA procurou as mesmas pessoas
entrevistadas para a edição número 1 da revista para verificar como a
vida delas evoluíra nesse intervalo de pouco mais de uma década. Cinco
foramreencontradas, concordaram em atualizar seu depoimento e posar para
novas fotos. São as pessoas que aparecem ao longo desta reportagem,
sempre em duas situações: numa imagem de 1998 e na atual. Treze anos
depois, as histórias desses brasileiros selecionados aleatoriamente
continuam servindo de exemplo para ilustrar as tabulações estatísticas.
Na minúscula amostra não científica de cinco cidadãos, quatro afirmam
ter progredido de vida desde então, conforme pode ser lido nas sínteses
dos depoimentos. Por coincidência, é uma proporção que combina com as
conclusões da apuração metodológica dos pesquisadores.
A mensagem
Para o Brasil
O otimismo brasileiro não pode ser usado
para ignorar os problemas não resolvidos do país
Para você
Em menos de uma geração, as condições de vida
podem mudar radicalmente – para melhor
O
que explica esse avanço generalizado do otimismo? O economista Marcelo
Neri, um dos maiores especialistas do Brasil em estudos sobre pobreza e
desigualdade, pesquisador da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro,
afirma que há razões objetivas que justificam o aumento da confiança.
Para ele, parte importante da explicação está no forte movimento de
redução do desemprego, simbolicamente representado pela carteirinha azul
do Ministério do Trabalho. “O sonho da carteira de trabalho está sendo
realizado”, afirma Neri. “Isso dá segurança presente e segurança futura
para as pessoas. Há níveis recordes de emprego formal, uma situação de
quase pleno emprego, apesar da legislação trabalhista, que não ajuda
muito.” Desemprego era a maior preocupação da população brasileira em
1998, seguido por criminalidade e educação. Hoje, o medo de ser posto na
rua caiu para a quinta posição no “ranking da dor de cabeça”.
Neri
relaciona vários outros dados que ajudam a explicar o aumento do
otimismo. “A vida do brasileiro está melhorando mais que o Brasil. Nos
últimos anos, a renda das famílias cresceu num ritmo maior que o Produto
Interno Bruto”, afirma. “Além disso, a desigualdade está caindo há mais
de uma década de forma ininterrupta. É um dado espetacular.”
Entre
2001 e 2010, segundo seus cálculos, a renda dos 50% mais pobres cresceu
68%, enquanto no topo da pirâmide, entre os 10% mais ricos, o avanço
foi mais moderado, de 10%. “Nesse aspecto, a posição do Brasil é muito
especial. China, Índia, Estados Unidos e diversos outros países foram
palco de um movimento oposto, de aumento da desigualdade.”
Apesar
da melhoria observada na distribuição de renda, a percepção de que o
Brasil é um país injusto continua praticamente inalterada. Em 1998, 91%
da população classificava a distribuição de renda no Brasil como
injusta. Agora, o índice é de 87%, uma redução que, segundo Lavareda,
pode ser classificada apenas como “residual”. O que caiu com um pouco
mais de força foi a ideia segundo a qual só dá para subir de vida se a
pessoa tiver “relações especiais” – algum tipo de favorecimento que não
leva em conta apenas o mérito. Antes, 86% dos brasileiros acreditavam
nisso. Agora, o índice é de 70%, consideravelmente menor que 13 anos
atrás, mas ainda majoritário.
Quando
o assunto é economia, o otimismo dos brasileiros parece mais moderado.
Em 1998, período imediatamente anterior à desvalorização do real, apenas
11% da população avaliava a situação econômica do Brasil como ótima ou
boa. Hoje, o porcentual é quase o triplo, mas ainda bem abaixo da
parcela que avalia a situação econômica como razoável.
Curiosamente,
há mais gente hoje dizendo que seus rendimentos mensais não são
suficientes para cobrir todas as despesas do mês. Ao contrário do que
esse indicador pode sugerir, não se trata de um dado ruim. A explicação
passa pela expansão recente do crédito. É resultado de um maior acesso
da população aos produtos financeiros.
Ondas
consistentes de otimismo têm o poder contagiante de melhorar a
autoestima dos cidadãos, servem de alavanca para a educação, aceleram o
empreendedorismo, podem ajudar na produtividade e até na criatividade.
Mas há riscos. Um dos maiores erros que o Brasil poderia cometer neste
instante seria confundir essa tendência positiva de confiança no
presente e no futuro com a ideia de superação dos problemas. A mesma
pesquisa que mostra avanço nas condições de vida apresenta um rol de
novos desafios a enfrentar.
O principal, segundo a opinião dos entrevistados, é a saúde.
Para
ter uma ideia da valorização desse assunto no intervalo de 13 anos,
basta notar que na primeira edição de ÉPOCA, em 1998, o tema saúde nem
chegou a ser citado na relação dos obstáculos mais sérios do país (o que
impede uma comparação direta). O que se pode comparar é a posição
relativa das prioridades. Entre 1998 e hoje, enquanto o desemprego caiu
da primeira para a quinta posição, a saúde assumiu o posto de campeão
das preocupações. No país dos otimistas, alguém se arrisca a dizer que
em 2024 (daqui a 13 anos) esse problema estará resolvido?
(arraste a barra para a direita)
Ricardo Mendonça, Alexandre de Mello, Keila Cândido e Leopoldo Mateus
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