Bazar revolucionário [foto por rogalonzo]
Em 15 de maio, as pessoas retomaram
as ruas e praças na Espanha inteira. Ocuparam, acamparam, papearam, se
expressaram, batucaram, se amaram, produziram uma forma de vida alegre e
militante. Viveram dias e noites incríveis que jamais esquecerão.
Batizado de 15M, Democracia Real Já! ou #spanishrevolution, o
movimento reúne um espectro vasto de insatisfeitos com o estado das
coisas: precarização do trabalho, endividamento generalizado, frustração
com o governo, falta de perspectivas, incapacidade de a política
absorver as demandas da geração. Da rede Juventude sem Futuro a organizações de excluídos do trabalho, depopulações endividadas no sistema financeiro a contestadores do neo-neoliberalismo, estudantes e aposentados, midialivristas e hackers. Na Espanha, clamou-se por democracia real já contra
a surdez, a insuficiência e a paralisia de todo o arranjo político. A
agitação se alastrou por centenas de cidades pela Europa, com protestos
inclusive no Brasil, e promete disseminar-se ainda mais nas próximas
semanas e meses.
Não
se trata de uma explosão espontânea e sem sentido. A rede de contatos e
a circulação de discursos vêm proliferando há meses, em encontros e
coletivos, nas redes sociais e novas mídias. O 15M foi
arquitetado e concretizado sem um centro nítido, a partir de muitas
direções, muitos nós e rótulos, com um discurso heterogêneo. Obra
aberta, inacabada, constituinte. Que não é, como o acusam, vago ou
inconsistente. Como poderia sê-lo quando, de fato, movimentou multidões?, embasbacando partidos e instituições, entusiasmando pessoas numa luta global?
Na medida em que o enxameamento vai
dando certo e se chocando com o real, constroem-se novas narrativas e
pautas, numa dinâmica expansiva que seduz mais e mais gente. No
processo, já se consolidou uma convergência de demandas mínimas.
Num contexto maior, o 15M continua as revoluções árabes. Cada manifestante tem dentro de si uma Praça Tahrir. Traz consigo a percepção alterada que,
com efeito, pode-se mudar um mundo que antes parecia superpoderoso e
invencível. A geração perdeu o pudor. A revolução foi resgatada dos
livros de história, de volta à conversa cotidiana, não mais demodê. Quem
está acuado, agora, é o poder constituído, temeroso diante dos rastros
de pólvora. Esses bárbaros que surgem do nada e somem em lugar algum,
inebriados de aventura.
Decepcionante
ouvir de pessoas de percepção mais à esquerda que, no frigir dos ovos,
esses movimentos nada significariam. Que lhes faltam uma visão de longo
prazo e um projeto de novo estado. Que seriam virtuais e liquefeitos…
pós-modernos. Não e não e não. Pois significam tudo.
Pois são o que de mais real e mais verdadeiro se pode vivenciar hoje na
política. Sua dinâmica atravessa o estado e não tem como ser
redimensionada na lógica da representação. Porque a recusa; desertando
da melancolia das eleições, dos rituais do estado, da mera disputa por
aparelhos. Não está repercutindo em mudanças constitucionais ou
institucionais? ora, precisamente esta a potência do movimento. Não se
deixar capturar pela representação em crise. Isso ambicionam os partidos
ideologicamente pastosos da Espanha. A inovação está no modo de
organizar, de produzir formas de vida, de viver, de reinventar a cidade,
de contagiar muitos mundo afora.
Como escreveu Cézar Migliorin em
seu blogue, menos “perguntar o que querem os manifestantes, mas apenas
perceber a evidência do desejo”. A experiência de ruas e praças, esse
copioso amor revolucionário, vale por cem livros vermelhos e dez mil
aulas universitárias.
Do
ponto de vista regional, contribuiu o fracasso do governo José Luis
Rodríguez Zapatero, do partido socialista (PSOE). Fora eleito graças a
uma dinâmica que não está distante dessa militância em enxame. Em março
de 2004, depois dos atentados contra os trens em Madri, o então premiê
José María Aznar, do partido progressista (PP), usou a máquina estatal
para fabricar um conto do vigário. Insinuou que a culpa dos ataques
fosse do movimento de libertação nacional basca (ETA), escondendo
indícios, já a sua disposição, de que se tratava de ação da Alcaida.
Graças à comunicação em rede via celular, multidões tomaram as ruas para
desmascarar o engodo. Como consequência, Aznar foi vencido cabalmente
no voto, numa virada histórica, contra as previsões das pesquisas.
O
governo Zapatero, portanto, também foi cria de um novo tipo de
ativismo, propiciado pela velocidade e articulação das redes. Mas o
premiê socialista não soube reconhecer essa nova composição das bases,
o modo 2.0 de fazer política.
O seu governo reduziu-se a mais um repeteco da velha política da
representação, incapaz de dar um passo significativo para mudar o
essencial. Sua rotunda derrota ontem confirmou a incompreensão diante de um cenário mutante.
O
fiasco definitivo de Zapatero é o mesmo que pode acontecer, muito em
breve, com outros governos ditos “progressistas”. Estou falando dos
governos Obama e Dilma. Dois candidatos da esquerda carregados ao poder
em meio a campanhas eleitorais inovadoras, no modo 2.0. Tristemente, os
dois se descolam dessas bases para praticar o mais do mesmo. Um ao
assumir o discurso surrado dos senhores da guerra, contra o que tanto
combateu na campanha. Não admiram assim as recentes ocupações de
Wisconsin, por fora da lógica da representação, tentando realizar elas
mesmas o que Obama não tem conseguido no poder. A outra, Dilma tem
falhado em reconhecer as forças vivas da cultura como mundo,
que integrava o projeto de democracia do governo Lula. Diante da
guinada reacionária do ministério encabeçado por Ana de Hollanda e
protegido pela presidenta, o governo se distancia dessas dinâmicas
produtivas, das novas mídias. Talvez, estas venham a fazer muita falta
nos momentos de conflito com a classe dominante e sua imprensa golpista.
Hoje,
na política do mundo, existe um presente que já está morto e um futuro
que já nasceu e se constitui sem parar. Tenho a impressão que basta um
toque de despertador para, de supetão, sermos arremessados nesse futuro
já existente. Eis o devir revolucionário.
Nas revoluções árabes, tudo aconteceu quando um camelô teve a
barraquinha apreendida por uma operação choque de ordem, e quando um
internauta foi preso e chorou diante do mundo. Na Espanha e a partir
dela, está acontecendo. Nada impede aconteça aqui no Sul, onde o abismo
entre o presente morto e o futuro vivo aumenta todos os dias.
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PS. Compartilho com o leitor a bela reflexão de Moysés Pinto Neto, doIngovernável, que tem tudo a ver com o momento:
“(…)
Com o tempo, viramos cínicos. Passamos a rir da esperança. Abrimos mão
de ideais abrangentes para ficarmos com nosso pequeno quinhão do todo,
afinal, é inevitável. Vestimos gravatas. Aprendemos a falar de direitos
humanos e um vocabulário neutro que nos garante uma isenção de
“polêmicas ideológicas” tão forte que se tornou, no mesmo passo,
anódino. Aprendemos a escrever textos sem cheiro. Não desagradamos
ninguém; estamos no centro. Murchamos. Nos tornamos bons para todos.
Aprendemos a falar sem ofender os fascistas. Falamos para fascistas,
tentando convencer fascistas. E perdemos, com isso, tudo. Nos tornamos
coniventes com os crápulas. (…)” –Ensaio completo aqui (texto imperdível e apaixonante).
Do Grupo Beatrice.
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