Eu
estava na lanchonete da faculdade, entre uma aula e outra, tomando um
café e lendo uma revista. O menino aproximou-se, sentou na minha frente e
me perguntou:
– Você estuda aqui?
Balancei a cabeça, negativamente.
– O que você faz?
O menino deveria ter uns 11, 12 anos.
– Sou professor de Jornalismo, respondi.
– E o que se ensina no curso de Jornalismo?
Falei das disciplinas de redação, rádio, TV, fotografia, teoria da...
– Entendi, – ele me interrompeu – mas o que o aluno aprende no curso?
O moleque tinha um quê de arrogante.
– Por que você quer saber? Você lá tem idade para prestar vestibular?
– Sou curioso – ele respondeu.
Quando
eu ia explicar, com paciência e educação, ele se levantou, disse que
precisava ir e se foi. Mas a pergunta ficou: o que se aprende no curso
de Jornalismo?
Poderia ter
respondido que, basicamente, se aprendem técnicas, teorias e ética. E,
com isso – entre outras coisas –, aprende-se a produzir textos
jornalísticos. Escrever ainda é a base da profissão. Porém, boa parte
das 470 faculdades de Jornalismo espalhadas pelo Brasil não alcança esse
objetivo. Elas estão falhando vergonhosamente.
É
o que afirma pesquisa realizada pelo Núcleo Brasileiro de Estágios
(Nube), com 10 mil candidatos de diferentes cursos universitários, entre
1º de janeiro e 31 de agosto deste ano.
O
teste consistia em escrever um ditado de 30 palavras, permitindo até
seis erros. Os estudantes de Engenharia obtiveram os melhores
resultados, com “apenas” 12,5% de reprovação. Os estudantes de
Comunicação Social, incluindo os de Jornalismo, ficaram nas últimas
posições, com uma reprovação de 65,3%. Se isso não é o fundo do poço,
alguém diga o que é.
Seria
ingênuo jogar toda a responsabilidade nas faculdades de Comunicação.
Esse resultado é também consequência de um ensino fundamental muito
precário. Entretanto, surge uma dúvida a partir dessa pesquisa: se as
faculdades não podem mudar esse quadro, se não conseguem ensinar a base
da profissão aos alunos, por que elas continuam existindo?
Continuavam
existindo, principalmente, por causa do diploma – que deixou de ser
obrigatório para o exercício da profissão. Obrigatório, para a
profissão, deveria ser uma sólida formação humanística. É isso que torna
a faculdade imprescindível.
Infelizmente,
de maneira geral, os cursos estão estruturados como um campo de
treinamento para o mercado, “o último estágio da evolução humana”. Para
entrar no mercado, dizem os manuais, é preciso seguir as regras, e não
importa se elas são, algumas vezes, injustas, hipócritas e burras.
Há
alguns anos, durante debate numa escola de Comunicação, uma estudante
afirmou: “estou na faculdade para ter um diploma e fazer contatos”,
opinião compartilhada por boa parte da plateia. O objetivo da estudante,
compreensível, torna-se preocupante, porque evidencia que o ato de
aprender – talvez o ato mais sublime do ser humano e a razão de ser de
todas as escolas – não era uma prioridade, ou melhor, nem era
importante.
Como também não é
importante, pelo que parece, debater a democratização da informação, num
país onde a mídia é controlada por algumas famílias. A base da
democracia é uma imprensa livre e competente. A pluralidade de ideias,
estimulada pelo jornalismo, é o motor que faz a democracia caminhar e
evoluir. Porém, não existe pluralidade quando há um monopólio dos meios
de comunicação.
O Sul do país é
um exemplo emblemático: A Rede Brasil Sul (RBS), a mais antiga afiliada
da Rede Globo, possui 20 emissoras de tevê, 24 emissoras de rádio, oito
jornais, além de mais de uma dezena de produtos de plataforma digital.
Essa
concentração é uma iniquidade. Todavia, os cursos de Jornalismo, com
honrosas exceções, estão empenhados em treinar os estudantes para serem
aceitos nessa engrenagem. E é melhor para eles, segundo essa concepção,
nem saber o quão prejudicial ela é para a sociedade.
Não
tenho solução para o desafio que se impõe às faculdades de Jornalismo
atualmente, e, se a tivesse, abriria a minha própria. Mas tenho algumas
ideias com relação às práticas pedagógicas, que não dependem diretamente
da estrutura institucional. Essa prática se sustenta em quatro saberes:
procurar, ver, ouvir e contar (irei detalhá-los num próximo texto).
O
fundamento de todos esses saberes é a curiosidade. Por isso, acredito
que a grande missão do professor é “provocar curiosidade”, o primeiro
passo de uma reflexão crítica. Como lembra Rubem Alves, é necessário que
o estudante veja no professor alguém curioso, a começar por aquilo que o
próprio aluno diz e faz.
Existem
muitas maneiras de desenvolver a curiosidade, e a mais prazerosa que
conheço é por meio da leitura. A boa leitura pode propiciar, além do
prazer imenso, novas perspectivas de ver e de entender o mundo. O leitor
é, em essência, um curioso e será, provavelmente, questionador e
crítico.
A curiosidade, de alguma
forma, estimula a sensibilidade. Quem está questionando e se
questionando sobre as coisas à sua volta, torna-se sensível a este
mundo. Não é, lógico, um passo automático, mas um passo possível.
Além
disso, é preciso estimular a ruptura dos padrões, para que os alunos
escrevam sem amarras, sem manuais, tentando encontrar seus próprios
caminhos – indicando a eles textos jornalísticos inteligentes e
criativos, que revelem as infinitas possibilidades de se contar uma
história.
Uma das funções do
jornalismo, até que se prove o contrário, é contar uma história real, e
contá-la bem, com precisão, honestidade e, se possível, com algum
charme, tentando alcançar “a melhor versão possível da verdade”, como
ensinou Carl Bernstein. A propósito, muitos estudantes concluem o curso
sem saber quem é Carl Bernstein.
Hoje,
dois anos depois, gostaria de reencontrar aquele “menino da
lanchonete”. Se ele mantiver a curiosidade, terá plenas condições de se
tornar um bom jornalista, se assim o quiser. Mas, cá entre nós, se for
esperto, fará coisa mais interessante na vida. Talvez, ele faça algum
curso de exatas e possa escrever, sem erros grosseiros, um ditado de 30
palavras.
Fernando Evangelista é jornalista.
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