Da Carta Maior - 10/10/2011
O
integrante do CQC, que fez piada de péssimo gosto com Wanessa Camargo,
já falara coisas piores. Agora mexeu com esposa de milionário, que
ameaçou tirar anúncios da TV Bandeirantes. Ninguém classificou caso como
atentado à liberdade de expressão. Já quando ministra condena comercial
de lingerie machista, o coro é um só: “Censura”!
Gilberto Maringoni*
Qual é o problema com a suposta piada de Rafinha Bastos? Ele antes já exibira todas as cores de seu mau gosto e nada acontecera.
Todos
conhecem a pérola, não? O apresentador aproveitou-se de uma bola
levantada pelo chefe da cena do programa Custe o que Custar (CQC),
Marcelo Tas, sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, e cortou
ligeiro: “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”. Foi logo acompanhado
por risos e caretas de seus colegas de vídeo, Tas e Marco Luque .
A
grosseria foi ao ar dia 19 de setembro. A TV Bandeirantes, que exibe o
programa, levou duas semanas para decidir o que fazer. Em 3 de outubro, o
apresentador foi suspenso da bancada. Não se sabe se voltará.
Não
foi a primeira vez que Rafinha exerceu sua – digamos - sutileza. Em
entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2011, ele saiu-se com
esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal
os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”.
A
gracinha com as feias não rendeu ao gaúcho de dois metros de altura nada
além de protestos de movimentos femininos. Mas a liberdade com a
cantora custou-lhe até agora, além do posto no programa, o cancelamento
de shows e o rompimento de alguns contratos de publicidade. Rafinha
perdeu grana com a brincadeira.
Pensamento vivo
Repetindo:
qual o problema com as tiradas do rapaz de 34 anos, num universo
midiático em que o mau gosto, a boçalidade e o “politicamente incorreto”
passaram a ser valores em si?
Rafinha vive num tempo em que as
demonstrações de preconceito, como as do apresentador de outro programa
de entretenimento da mesma emissora, Boris Casoy, não têm consequências
maiores. Todos se recordam da fineza do jornalista ao desqualificar dois
garis que apareceram em seu programa para desejar boas festas, no final
de 2009. Sem saber que os microfones estavam abertos, ele foi ao ponto:
"Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas
vassouras. O mais baixo na escala do trabalho".
O artista do CQC
também sabe que o pensamento vivo de gente como o deputado federal Jair
Bolsonaro (PP-RJ) recebe destacada acolhida em grandes meios de
comunicação. Sua entrevista à revista Playboy, em junho último, é
pródiga em preciosidades. Segue um exemplo: “Moro num condomínio, de
repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai
desvalorizar minha casa!”.
Outro luminar da intelectualidade
midiática, o ex-compositor Lobão, por sua vez, exibiu os músculos
cerebrais em um festival de cultura em São Francisco Xavier (São José
dos Campos, SP), também em junho. Após demonstrar criteriosamente que
toda a música popular brasileira não tem nenhum valor, ele sentenciou:
“A gente tinha que repensar a ditadura militar. Essa Comissão da Verdade
que tem agora. (…) Que loucura que é isso? Aí tem que ter anistia pros
caras de esquerda que sequestraram o embaixador, e pros caras que
torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não?”.
Os exemplos são
infindáveis. Rafinha provavelmente é leitor de Reinaldo Azevedo, o
blogueiro de Veja, que, em março de 2010, durante uma palestra no
afamado Instituto Millenium, em São Paulo, externou sua particular
concepção de liberdade de expressão: “A imprensa tem que acabar com o
isentismo e o outroladismo, essa história de dar o mesmo espaço a
todos”. Na mesma oportunidade, o cineasta aposentado Arnaldo Jabor
lançou o desafio de “impedir politicamente o pensamento de uma velha
esquerda que não deveria mais existir no mundo”. Impedir o pensamento...
muito bom!
A baixaria televisiva contaminou até mesmo as
campanhas eleitorais. Continuam na memória de todos os ataques da
campanha de José Serra à Dilma Rousseff, em 2010, sobre o tema do
aborto. Em Nova Iguaçu (RJ), Monica Serra, esposa do então candidato
tucano, disse o seguinte sobre a petista: "Ela é a favor de matar as
criancinhas".
Dois anos antes, a campanha de Marta Suplicy (PT) à
prefeitura de São Paulo já havia colocado em dúvida a sexualidade de
seu oponente, ao dizer: “Você sabe mesmo quem é o Kassab? Sabe de onde
ele veio? Qual a história do seu partido?” Em seguida, aparece a foto do
prefeito: “Sabe se ele é casado? Tem filhos?”
Bem acompanhado
Rafinha
está em boa companhia. Deve se sentir incentivado para exercer seu
rosário de preconceitos. Provavelmente pensa estar “quebrando
paradigmas”, investindo contra o estabelecido e externando uma rebeldia
adolescente, que lhe granjeia grande popularidade e bons cachês.
Ridicularizar
e humilhar quem tem poucas chances de se defender, em uma sociedade com
desigualdades abissais como a brasileira, é um grande negócio. Prova
isso a lista de clientes dos shows do moço, que constam de sua página na
internet. São elas Votorantim, Bosch, Agroceres, LG, HP, Ernst &
Young, IBM, Banco Real, Vivo, Springer Carrier, Cargil, Unilever,
Motorola, Chevrolet, Sherwin Williams, Valor Econômico, Bunge, GNT
(Globosat), Jornal O Estado de S. Paulo, Coca-Cola, Bradesco, ESPM etc.
Segundo a Veja, ele foi visto em mais de 730 comerciais somente neste
ano.
Rafinha faz parte de uma tendência do humor televisivo, que
se abriu após a chegada dos humoristas do Casseta e Planeta ao vídeo. A
linhagem envolve também o programa Panico (da Rede TV!) e outros
imitadores, além do Zorra Total, da Globo. Todos se dizem distantes da
política, independentes e praticantes de um humor anárquico e sem
freios. Nem mesmo a participação de Marcelo Tas como palestrante em um
encontro da juventude do DEM ,em novembro de 2008, ou de Marcelo
Madureira nas palestras hidrófobas do Instituto Millenium, os
comprometem, segundo eles, com idéias que não as próprias.
Acima da cintura
Num panorama desses, repetimos: qual o problema de Rafinha Bastos?
O problema é que o garoto bateu acima da cintura.
Tudo
bem desancar garis, a esquerda que foi à luta nos anos da ditadura,
exaltar a parcialidade da imprensa e atacar homossexuais e outros grupos
vulneráveis.
Não pode é investir contra o topo da pirâmide social.
Rafinha
cometeu esse pecado. Wanessa Camargo é casada com Marcus Buaiz, 31
anos, herdeiro de um dos maiores conglomerados empresariais do Espírito
Santo, o Grupo Buaiz, que completa 70 anos em 2012. O grupo é formado
pela TV Vitória (afiliada da Rede Record), por duas rádios, pelo Nova
Cidade Shopping Center, por várias empresas de alimentação (Café Número
Um, Moinho Três Rios e Moinho Vitória), pela Buaiz Importação e
Exportação, pela incorporadora Meca e pela Automóbile Comércio de
Veículos, entre outras.
Marcus Buaiz transferiu-se para São
Paulo, onde é proprietário de casas noturnas e restaurantes, além de uma
empresa de marketing esportivo, a 9INE, em parceria com o ex-jogador
Ronaldo Fenômeno. Segundo o jornal A Gazeta, de Vitória, o empresário e
seu sócio teriam ameaçado tirar anúncios do programa, após a performance
de Rafinha Bastos. “Um comercial de 30 segundos no CQC custa 130 mil
reais. Já um merchandising pode custar de 240 mil a dois milhões e 400
mil reais, sem incluir cachês”, diz a publicação.
Com tudo isso, a Bandeirantes podou Rafinha Bastos de sua programação.
Dois pesos
O
curioso da história é que intenção semelhante, de retirada de um
comercial de lingerie do ar, por parte da ministra da Secretaria
Nacional de Políticas para Mulheres, Iriny Lopes (PT), foi classificada
como censura por colunistas de imprensa e até por colegas seus na
Esplanada dos Ministérios.
Na peça, em três versões, Gisele
Bündchen faz as vezes de uma esposa prestes a dar uma péssima notícia ao
marido: estourou o limite do cartão de crédito, bateu o carro ou
informa que sua mãe virá morar com eles. É um machismo digno dos anos
1950. Os publicitários da agência Giovanni+DraftFCB devem ter achado o
máximo a própria criação. No clima de boçalidade modernosa, não há
problema na mulher bonita, mas dependente do marido provedor, invocar
seus atributos eróticos para conseguir o que quer.
Em entrevista
ao jornal O Estado de S. Paulo, a representante governista assim se
manifestou: “A propaganda caracteriza como correto a mulher dar uma
notícia ruim apenas de lingerie e errado estar vestida normalmente. Essa
definição de certo e errado caracteriza um sexismo atrasado e
superado”.
A ação da ministra está a quilômetros de distância das
ameaças que teriam sido feitas pelo marido de Wanessa Camargo ou pela
ação da Bandeirantes, que sem mais tirou Rafinha do ar. Iriny apenas
solicitou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar) a suspensão da peça publicitária.
O mundo desabou sobre sua cabeça, com insinuações sobre estética feminina e inveja da modelo.
O
caso Rafinha Bastos é pedagógico. No Brasil, além das mulheres,
qualquer minoria pode ser atacada. Menos uma: a minoria dos
endinheirados.
*Gilberto Maringoni,
jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e
intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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