A
exaltada reação do presidente do STF à declaração da corregedora
nacional de Justiça de que há “bandidos escondidos atrás da toga”
reafirma na população o sentimento de que o Poder Judiciário seja uma
grande corporação de ofício.
Claro
que há bandidos no Judiciário, assim como há no Executivo, no
Legislativo, no Ministério Público, na polícia e em qualquer outra
instituição formada por seres humanos. E isso não deve ser motivo de
vergonha para essas instituições (talvez vergonha para a espécie humana,
mas não para a instituição).
É
impossível evitar que bandidos se infiltrem nas instituições, pois não
se pode prever o futuro e ainda não inventaram um “corruptômetro” para
ser usado em eleições e concursos públicos. Tudo que se pode e deve
fazer é punir com rigor e transparência aqueles que no exercício da
função pública agem como bandidos. O que deve envergonhar uma
instituição não são seus corruptos, mas a leniência de seus órgãos de
controle em investigar, julgar e punir esses corruptos. E este sim é um
bom motivo de vergonha para o Poder Judiciário brasileiro.
Julgamentos
administrativos sigilosos cuja penalidade máxima é a aposentadoria
compulsória são a resposta que o Poder Judiciário dá atualmente aos
desvios de seus membros. Alegam que o sigilo é necessário, pois, nos
casos de absolvição, o magistrado só poderia retomar suas atividades se
não tivesse sua honra abalada pela infâmia de um processo. Claro que
nunca cogitaram em aplicar essa mesma garantia do sigilo processual aos
serventes de pedreiro e camponeses que são julgados em júris
transmitidos até pela internet. Dizem que a atividade do juiz se reveste
de peculiaridades, quase como se ele precisasse estar além do bem e do
mal para julgar e, com isso, reafirmam o discurso seletivo de que a
honra dos membros da corte vale mais que a honra do cidadão comum do
povo.
É uma falácia afirmar que o
sigilo dos julgamentos preserva a instituição, pois na prática só
amplia a sensação de impunidade. A sociedade tem interesse legítimo em
acompanhar em detalhes os julgamentos dos membros de seus poderes, seja
no impeachment de presidentes, governadores e prefeitos, seja na
cassação de mandatos parlamentares, seja nos julgamentos administrativos
de magistrados. Se, ao final forem absolvidos, a transparência do
procedimento, as provas apresentadas ao público e a fundamentação da
decisão deverão ser suficientes para permitir que retornem ao exercício
de suas atividades. O julgamento sigiloso em nada ajuda a afastar
qualquer suspeita, pois o público acaba por tomar ciência da acusação e
do processo, mas não lhe é dado acesso às provas e às razões da
absolvição, comprometendo a credibilidade da decisão.
Por
outro lado, a pena máxima de “aposentadoria compulsória com vencimentos
proporcionais ao tempo de serviço” é praticamente uma sanção premial.
Se alguém cogitasse em aplicar a mesma pena a membros do Executivo que
sofreram impeachment, ou a parlamentares que tiveram seus mandatos
cassados, certamente soaria como um acinte à opinião pública. A Lei
Orgânica da Magistratura Nacional, porém, estabelece essa pena,
juntamente com as inócuas penas de advertência e censura e a também
premial “disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de
serviço”.
Não bastasse a garantia
de sigilo no julgamento e a tranquilidade de, na pior das hipóteses,
ser punido com a aposentadoria compulsória, os magistrados corruptos
contam ainda com a prescrição como sua grande aliada. As corregedorias
dos tribunais nem sempre agem com a devida presteza e muitas acusações
fundadas em provas sólidas acabam não sendo julgadas em virtude da
prescrição.
O mais grave defeito
da lei, porém, é permitir que o julgamento dos magistrados seja
realizado por seus próprios colegas de tribunal. Muitos dos magistrados
julgados pelos tribunais foram colegas de seus julgadores por mais de 30
anos, tempo mais que suficiente se não para criar uma amizade, ao menos
para gerar compaixão pelo companheiro de toga.
Para
tentar superar essas excrescências, a Emenda Constitucional nº45, que
entrou em vigor em 2004, criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que
tem por função realizar um suposto controle externo do Poder
Judiciário. A bem da verdade, não se trata propriamente de um controle
externo, já que dos 15 conselheiros do CNJ, 9 são juízes e apenas 6 são
externos. De todo modo, por ser um órgão nacional estaria mais
distanciado dos acusados.
Claro
que a maioria dos magistrados não ficou nada satisfeita com a criação do
CNJ e, desde então, o órgão é visto como uma constante ameaça. E foi
nesse contexto que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.638 visando a
impedir que o CNJ julgue acusações contra magistrados ainda pendentes
nas corregedorias dos tribunais. Na prática, essa restrição permitiria
que muitas acusações prescrevessem antes de chegar ao CNJ. Permitiria
também que os processos continuassem sendo julgados de forma
absolutamente sigilosa. Ou, em bom português, tornaria o CNJ um órgão
inócuo, condicionando o exercício de suas funções constitucionais à boa
vontade de julgar dos tribunais.
E
foi justamente quando essa ADI 4638 seria julgada pelo STF, na última
quarta-feira (28/9/11), que o presidente Cezar Peluso, incomodado com as
declarações da corregedora Eliana Calmon, resolveu retirá-la de pauta.
Um mal-estar bastante oportuno, causado por declarações da corregedora
que normalmente passariam despercebidas em um único jornal, não fosse a
iminência de uma decisão do STF que pode inviabilizar a qualquer momento
o controle externo do Judiciário pelo CNJ. Que o tempo ganho permita
aos ministros do STF refletir melhor sobre o Judiciário que querem: uma
caixa-preta na qual se finge não haver corrupção ou uma caixa
transparente na qual bandidos que hoje se escondem em togas sejam
deixados nus aos olhos do povo.
Túlio Vianna, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFMG.
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