O Conversa Afiada reproduz texto de Venício A. de Lima no Observatório da Imprensa:
Onde está a censura?
Por Venício A. de Lima
No recente episódio envolvendo a
posição da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República (SPM-PR) em relação a uma campanha da Hope Lingerie, estrelada
pela modelo Gisele Bündchen, um dos aspectos que deve merecer nossa
atenção é a reação unânime de repúdio da grande mídia à iniciativa da
SPM-PR,acusada de cercear a liberdade de expressão.
O que fez a SPM-PR?
Diante de reclamações recebidas
por sua Ouvidoria, a ministra Iriny Lopes encaminhou representaçãoao
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), com base
nos artigos 19, 20 e 21 do Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária e no inciso II do artigo 30 do Regimento Interno do Conar,
solicitandoa sustação da veiculação da campanha.
O que rezam estes artigos?
Artigo 19
Toda atividade publicitária
deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à
intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais,
às autoridades constituídas e ao núcleo familiar;
Artigo 20
Nenhum anúncio deve favorecer
ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social,
política, religiosa ou de nacionalidade;
Artigo 21
Os anúncios não devem conter
nada que possa induzir a atividades criminosas ou ilegais – ou que
pareça favorecer, enaltecer ou estimular tais atividades;
Artigo 30 – A Medida Liminar é cabível quando:
(…)
II – A infração ética
configurar flagrante abuso da liberdade de expressão comercial, ou
provocar clamor social capaz de desabonar a ética da atividade
publicitária, ou possa implicar grave risco ou prejuízo do consumidor;
Trata-se, portanto, de uma
Secretaria de Estado solicitando providências a um conselho
autorregulador da sociedade civil, apoiada em disposições do Código e do
Regimento do próprio conselho. Para produzir algum tipo de efeito, a
representação da SPM-PR teria, por óbvio, que ser julgada e aprovada
pelo Conar.
Em que medida essa iniciativa pode ser considerada censura?
Se o órgão autorregulador não
acatar a representação, não haverá qualquer tipo de sanção. Se acatar,
por óbvio, será uma sanção prevista nas suas próprias regras. Neste
caso, a eventual sanção não pode ser considerada censura ou se estaria a
supor o absurdo de que há normas do Conar que permitem que este órgão
autorregulador exerça funções de censor.
Os “libertários” caboclos
Na verdade, mais uma vez, o
episódio revela o atraso assustador dos nossos “liberais”. Do ponto de
vista das doutrinas sobre o papel da “imprensa”, a posição dos
executivos da grande mídia no Brasil é anterior à chamada “teoria
libertária” que predominou nos EUA até meados do século passado e foi
substituída pela “teoria da responsabilidade social” (ver, neste
Observatório, “A responsabilidade social da mídia“).
Os libertários consideravam
como indevida qualquer tentativa de intervenção do Estado em busca da
proteção de direitos de grupos e/ou cidadãos. Uma excelente síntese
dessa posição está expressa no editorial de O Globointitulado “Gisele
Bündchen incomoda tutores estatais”,publicado no último dia 4 de
outubro. Para os editorialistas da família Marinho, os “tutores
estatais” querem “um Estado forte a pairar sobre uma sociedade
[considerada] incapaz de decidir o que é bom para ela”.
Os libertários nativos ignoram,
por exemplo, o argumento oposto desenvolvido pelo jurista Owen Fiss,
professor da Universidade Yale e ex-assistente de dois juízes da Suprema
Corte dos EUA. Ele demonstra como a intervenção do Estado, garantida
por decisões da Suprema Corte, tem assegurado liberdade de expressão a
minorias (raciais, étnicas, religiosas, definidas por opção sexual), às
mulheres e aos portadores de deficiência física (cf. A ironia da
Liberdade de Expressão – Estado, Regulação e Diversidade na Esfera
Pública; Renovar, 2005).
São esses mesmos libertários
que consideram a classificação indicativa, prevista no inciso I do § 3º
do artigo 220 da Constituição Federal de 1988, como “ataque à liberdade
de expressão” (ver entrevista de Luis Erlanger, diretor da Central Globo
de Comunicação, ao Último Segundo) e produzem diariamente um conteúdo
jornalístico que, como afirma o professor Bernardo Kucinski, constutui…
“…um compacto
político-ideológico em defesa dos fundamentos do modelo econômico
chamado neoliberal: privatizações, terceirizações, flexibilização das
leis trabalhistas e desrregulação do movimento de capitais. Também
combate em uníssono as principais políticas públicas do governo, como o
Bolsa Família, o Plano Nacional de Direitos Humanos, as cotas nas
universidades e a política externa” (cf. “Prefácio” a Venício A. de
Lima, Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos, Paulus,
2011).
O passado como futuro
Mais uma vez fica claro que
para os empresários privados de mídia no Brasil, até mesmo a
autorregulação incomoda. Eles não querem que se altere o status quo. Não
só se colocam acima de qualquer regulação, como não admitem nem mesmo
que o Estado recorra às suas próprias instâncias autorreguladoras.
Neste ritmo, em pleno século 21, em breve chegaremos à Idade Média.
***
[Venício A. de Lima é professor
titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor,
dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e
direitos, Editora Paulus, 2011]
(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
Também do Blog CONVERSA AFIADA.
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