Imperdível
JULIAN ASSANGE: Com Chávez e Lula já deixando os principais
holofotes, vai surgindo uma nova geração de governantes na América
Latina.
Esta semana, está comigo o presidente do Equador , Rafael Correa.
Correa é líder popular de esquerda, que mudou a cara do Equador. Mas,
diferente dos presidentes que o antecederam, é doutor em Economia.
Segundo os telegramas diplomáticos dos EUA que WikiLeaks divulgou,
Correa é o presidente mais popular na história democrática do Equador.
Mesmo assim, em 2010, foi preso e feito refém, numa tentativa de
golpe de Estado. A culpa pela tentativa de depô-lo, segundo Correa,
foram os meios de comunicação corruptos. Correa pôs em marcha uma
polêmica contraofensiva. Na avaliação de Correa, os meios de comunicação
definem as reformas que seriam as únicas possíveis... para os próprios
meios.
Quero saber se essa conclusão está correta e como vê a América Latina.
RAFAEL CORREA: Está me ouvindo?
JULIAN ASSANGE: Sim, presidente Correa.
RAFAEL CORREA: Prazer em conhecê-lo. Você está na Inglaterra?
JULIAN ASSANGE: Sim, na Inglaterra, numa casa de campo, em prisão
domiciliar já há 500 dias. E sem nenhuma acusação formal contra mim.
RAFAEL CORREA: 500 dias... OK. [Para alguém ao lado] Melhor traduzir. [Em ing. “Prefiro o espanhol, ok?”].
JULIAN ASSANGE: [para a equipe] Acho que é possível. Todos prontos? Ação!
JULIAN ASSANGE: O que pensa o Equador, dos EUA, sobre o
envolvimento dos EUA? Não lhe peço que faça alguma caricatura dos EUA.
Mas... O que pensam os equatorianos sobre os EUA e o envolvimento dos
EUA no Equador e na América?
RAFAEL CORREA: Como disse Evo Morales [presidente da Bolívia], os EUA
são o único país que pode ter certeza de lá jamais haverá golpes de
Estado – porque não há embaixada dos EUA nos EUA. [Assange e equipe
riem].
Seja como for, quero dizer que uma das razões do mal-estar é que nós
cortamos todo o financiamento que a Embaixada dos EUA pagava à polícia
no Equador. Era assim, antes do nosso governo e continuou ainda, por um
ano e pouco. Demoramos a corrigir isso. Havia unidades inteiras, setores
chaves da Polícia, que eram completamente financiadas pela Embaixada
dos EUA. Os chefes policiais eram selecionados pelo Embaixador dos EUA e
pagos pelos EUA. A tal ponto, que aumentamos muitíssimo os soldos dos
policiais, mas quase ninguém percebeu, porque recebiam soldos do outro
lado. Acabamos com tudo isso. E há alguns que sentem saudades daqueles
tempos. Mas são tempos que não voltarão ao nosso país e aos nossos
países.
Quanto aos EUA, nossa relação sempre foi de muita amizade e carinho, mas
sob um marco de respeito mútuo e de soberania. Eu, pessoalmente, vivi
quatro anos nos EUA, estudei e graduei-me lá, tenho dois títulos
acadêmicos norte-americanos, amo e respeito muito, muito, o povo
norte-americano. Acredite que eu, de modo algum, jamais seria
antiamericano. Mas sempre chamarei as coisas pelo nome. E se há
políticas norte-americanas que são perniciosas para o Equador e para
nossa América Latina, sempre as denunciarei abertamente e não permitirei
que agridam a soberania do meu país.
JULIAN ASSANGE: Seu Governo fechou a base militar dos EUA em Manta. Pode dizer-me por que decidiu fechar aquela base?
RAFAEL CORREA: Ora... Você aceitaria uma base militar estrangeira no seu
país? Como eu disse naquela época. Se é assunto tão simples, se não há
problema algum em os EUA manterem uma base militar no Equador, ok, tudo
bem: permitiremos que a base de inteligência permaneça no Equador, se os
EUA permitirem que estabeleçamos uma base militar do Equador em Miami.
Nessas condições, ok, sem problema. [Assange ouve a tradução e ri]. Fico
feliz que você esteja se divertindo com essa entrevista. Também estou
me divertindo.
JULIAN ASSANGE: Achei engraçadas as suas frases, presidente Correa
[os dois riem]. Presidente Correa, por que o senhor pediu que
revelássemos [que WikiLeaks revelasse] todos os telegramas diplomáticos?
RAFAEL CORREA: Porque quem nada deve nada teme. Nós nada temos a
ocultar. De fato, os [telegramas divulgados por] WikiLeaks nos
fortaleceram. A Embaixada dos EUA nos acusava [como se fosse crime] de
sermos excessivamente nacionalistas e defendermos a soberania do governo
equatoriano [os dois riem]. E é claro que somos nacionalistas! E é
claro que defendemos a soberania do Equador! E os WikiLeaks, como
mostrei há pouco [exibe um livro], falavam de todos os interesses que os
EUA haviam investido nos meios de comunicação no Equador, dos grupos de
poder que pediam ajuda, que marcavam hora para pedir ajuda em
embaixadas estrangeiras.
Nós não tememos nada. Que publiquem tudo o que tenham a publicar sobre o
governo do Equador. Não se encontrará nada contra nós. E veremos
aparecer muitas informações sobre entreguismos, traições, acertos,
feitos por muitos supostos opositores da revolução cidadã no Equador…
JULIAN ASSANGE: Posteriormente, o senhor expulsou do Equador a
embaixadora dos EUA, como consequência da publicação dos telegramas de
WikiLeaks. Por que a expulsou? Sempre acho mais interessante dizer ao
embaixador... “Tenho esses telegramas desse embaixador. Já sei o que
você pensa.” Não seria melhor manter lá o diabo que o senhor já
conhecia?
RAFAEL CORREA: Ora, mas dissemos tudo isso à embaixadora. E ela
respondeu – e com que arrogância! – que não nos devia explicações. Era
inimiga absoluta de nosso governo, mulher de extrema direita, que
permaneceu estacionada no marco da Guerra Fria dos anos 60. A gota
d’água que fez transbordar o jarro foi WikiLeaks, que provava que o
contato dela no Equador havia dito que o Chefe de Polícia era corrupto
completo. E que eu, diziam os telegramas, o teria nomeado, mesmo sabendo
que era corrupto, para controlá-lo.
Intimamos a embaixadora, para que prestasse explicações. E ela,
arrogante, cheia de soberba e prepotência, com os ares imperiais que a
caracterizavam, respondeu que não nos devia explicações. Como aqui no
Equador, nós nos respeitamos e respeitamos nosso país, expulsamos
imediatamente a referida senhora.
Quero dizer que há um mês, poucos meses, depois de quase um ano de
investigações, o Comandante Hurtado, que foi falsamente acusado nesse
telegrama de WikiLeaks pela embaixadora, foi declarado inocente de todas
aquelas acusações daquela embaixadora, saiu limpo de todas as
investigações de que foi objeto, e que fizemos. É uma prova a mais de
como funcionários incompetentes ou mal intencionados, do governo dos
EUA, porque absolutamente não admitem e manifestam a mais flagrante má
vontade contra governos progressistas, informam qualquer coisa ao
governo dos EUA, sem procurar qualquer comprovação, sem qualquer
investigação, sem qualquer prova, baseados, só, em boatos, intrigas dos
seus ‘contatos’, muitas vezes, mentiras interessadas, que ouvem dos seus
contatos, todos adversários de nosso governo. E esses contatos são,
normalmente, escolhidos entre os opositores dos nossos governos.
JULIAN ASSANGE: Presidente Correa, como foi, para o senhor, tratar
com os chineses? É um país grande e poderoso. Ao negociar com os
chineses, o senhor não estaria trocando um demônio, por outro?
RAFAEL CORREA: Para começar, não trabalhamos com demônios. Se nos
aparece algum demônio, agradecemos e despachamos: não, muito obrigado.
[Assange ri] Em segundo lugar, você tem de ver aí um pouco do
entreguismo, do esnobismo, e até do neocolonialismo que anima as elites,
por aqui, e alguns veículos de comunicação.
Quando 60% de nosso comércio e grande parte de nossos investimentos
estavam concentrados nos EUA, e não nos davam 20 centavos para financiar
o desenvolvimento do país, ninguém reclamou de demônio algum, era como
se não houvesse problema. Agora, quando somos o país que mais recebe
investimentos chineses na região – e talvez porque os chineses não são
altos, louros, de olhos azuis, viram demônios e tudo é problema. Chega
disso!
Se a China já está financiando até os EUA! Que bom que financie o
Equador! Que bom que nos ajude para fazer aqui uma extração responsável,
de petróleo! Minas, hidroelétricas. Mas não recebemos financiamentos só
da China. Recebemos financiamento russo, brasileiro, diversificamos
nossos mercados e nossas fontes de financiamento. Mas há gente que
nasceu acabrestado, com sela e rédea, e quer continuar com a dependência
de sempre. É só isso.
JULIAN ASSANGE: Presidente Correa, como o senhor sabe, luto, há
muitos anos, a favor da liberdade de expressão, pelo direito de as
pessoas se comunicarem, pelo dever de publicar e dar aos públicos
informação verdadeira. O que o senhor fará, para que suas reformas não
acabem com a liberdade de expressão?
RAFAEL CORREA: Bem... Você mesmo é ótimo amostra, Julian, de como é a
imprensa, essas associações como a Sociedade Interamericana de Imprensa,
que nada é além de um clube de donos de jornais na América Latina.
Sobre seu WikiLeaks, publicaram-se muitos livros, o mais recente dos
quais é de dois autores argentinos, no qual analisam país por país, Wiki
Midia Leaks [1] . No caso do Equador, demonstra como,
desavergonhadamente, os veículos não publicaram os telegramas que os
prejudicavam. Por exemplo, disputas entre empresas de comunicações. E
todos, afinal, decidiram não publicar suas próprias sujeiras, para não
prejudicar nenhum deles. Leio para você a tradução, em espanhol, de um
dos telegramas WikiLeaks que a imprensa nunca publicou no Equador.
RAFAEL CORREA: [lendo] “…o fato de que a imprensa sinta-se livre para
criticar o governo, mas não um banqueiro fugitivo e os negócios da
família do banqueiro, mostra muito sobre onde está o poder no Equador…”
[Mostra as páginas do livro] E esses são os telegramas que WikiLeaks
divulgou e jamais foram publicados na imprensa do Equador. Para que você
entenda um pouco o que enfrentamos no Equador e na América Latina.
Nós acreditamos, que os únicos limites que devem pesar sobre a
informação e a liberdade de expressão são os que já existam nos tratados
internacionais, na Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a
honra e a reputação das pessoas; e a segurança das pessoas e do estado.
Quanto a todo o resto, quanto mais gente saiba de tudo, melhor.
Você manifestou seu temor – o mesmo que sentem todos os jornalistas, de
boa fé –, mas que não passam de estereótipos do medo de que o poder do
estado limite a liberdade de expressão. Isso praticamente não existe na
América Latina, praticamente não há aqui nenhuma liberdade de expressão.
Fala-se só de idealizações, de mitos.
Vocês precisam entender que, por aqui, o poder “midiático” foi, e
provavelmente ainda é, muito maior que o poder político. De fato, o
poder “midiático” tem imenso poder político, em função de seus
interesses, poder econômico, poder social. E, sobretudo, têm poder
monopolístico para informar.
Os veículos têm sido, aqui, os maiores eleitores, os maiores
legisladores, os maiores juízes, os que criam a alimentam a ‘agenda’ da
discussão social, os que sempre submeteram governos, presidentes, cortes
de justiça, tribunais.
Temos de tirar da cabeça essa ideia de que, de um lado, só haveria
jornalistas pobres e perseguidos, empresas jornalísticas angelicais,
empresas e veículos dedicados a informar a verdade dos fatos; e, de
outro lado, só haveria ditadores, autocratas, tiranos que vivem para
tentar impedir que a verdade chegue ao povo.
Os governos que trabalhamos para fazer algo pelas maiorias, somos – nós –
violentamente perseguidos por jornalistas que entendem que, por ter uma
pena ou um microfone, ganhariam algum direito de vingar-se dos
desafetos pessoais. Porque, muitas vezes, caluniam, mentem, injuriam
exclusivamente por alguma inimizade pessoal. Os veículos de comunicação
são, aqui, instrumentos dedicados a defender interesses privados.
É importante, por favor, que o mundo todo entenda o que se passa na América Latina.
Quando tomei posse na presidência, havia aqui sete canais de televisão
nacionais. Nenhum público; todos privados. Cinco pertenciam a
banqueiros. Imagine a situação: eu queria tomar uma medida contra os
bancos, para evitar, por exemplo, a crise e os abusos que, hoje, todos
estão vendo acontecer na Europa, sobretudo na Espanha. E houve uma
campanha violentíssima, pela televisão, para defender os interesses dos
banqueiros empresários donos das empresas, dos proprietários dessas
cadeias de televisão, todos banqueiros.
Que ninguém se engane mais. Temos de esquecer essas mentiras e
estereótipos de governos ‘do mal’, que vivem a perseguir valentes e
angelicais jornalistas e empresas e veículos de comunicação. Com muita
frequência, Julian, acontece exatamente o contrário.
Essa gente travestida de jornalista vive de fazer política, só se
interessa em desestabilizar nossos governos democráticos, para impedir
qualquer mudança na nossa região. Porque, com mudança democrática, eles
perdem o poder que sempre tiveram e ostentaram.
JULIAN ASSANGE: Presidente Correa, estou de acordo com o que o
senhor diz do mercado dos veículos e meios. Já aconteceu exatamente
assim, também conosco, mais de uma vez: grandes organizações
jornalísticas, com as quais trabalhamos – Guardian, El País, o New York
Times e Der Spiegel – censuraram o nosso material ao publicar, por
motivos políticos, ou para proteger oligarcas como Tymoshenko da Ucrânia
(que escondia sua fortuna em Londres); ou grandes empresas petroleiras
italianas corruptas, que operavam no Cazaquistão. Temos provas disso
tudo, porque sabemos o que há no documento original e o que publicaram, e
o que foi omitido. Mas entendo que o melhor modo para enfrentar os
monopólios e os duopólios e os cartéis num mercado é separá-los; ou
criando melhores condições para que novas empresas entrem no mercado.
O senhor não tem interesse em criar um sistema que permita o fácil
acesso ao mercado editorial, de modo a que empresas jornalísticas
editoriais pequenas e indivíduos sejam protegidos (não regulados) e as
grandes empresas editorais e grupos ‘midiáticos’ sejam separadas e
reguladas?
RAFAEL CORREA: Julian, estamos tentando fazer exatamente isso. Há mais
de dois anos discute-se uma nova lei de comunicação, para dividir o
espectro radioelétrico, quer dizer, o espectro para TV e rádio, para que
só 1/3 seja privado com finalidades comerciais; 1/3 para propriedade
comunitária, sem finalidades comerciais; e 1/3 de propriedade do Estado –
não só o governo nacional; também os governos locais, municipais,
departamentais.
Mas a lei não avança. Há dois anos, apesar de haver ordem constitucional
aprovada nas urnas em 2008, ratificada pelo povo equatoriano por
consulta popular ano passado. Pois, apesar de tudo isso, a nova lei foi e
continua a ser sistematicamente bloqueada pelas grandes empresas, nos
grandes veículos. Para eles, é “lei da mordaça”. Para eles e pelos
deputados e senadores assalariados que as empresas mantêm, a soldo, na
Assembleia Nacional, e que lá estão para defender aqueles interesses.
O que estamos fazendo é claro: democratizar a informação, a comunicação
social, a propriedade dos veículos e meios de comunicação. Por isso
mesmo, obviamente, enfrentamos a acérrima oposição que nos fazem os
proprietários dos veículos e meios de comunicação e dos seus corifeus
alugados, que atuam em todo o espectro político no Equador.
JULIAN ASSANGE: Recentemente, nesse programa, entrevistei o
presidente da Tunísia, e perguntei a ele, se o surpreendera o pouco
poder que os presidentes têm, para mudar as coisas. O senhor também
observou isso?
RAFAEL CORREA: Olhe... Muitos trabalham para satanizar os líderes
políticos, porque uma das grandes crises pelas quais a América Latina
passou nos anos 90, até o começo desse século, durante a longa e triste
noite neoliberal, foi a crise de lideranças políticas.
Afinal, o que significa “ter liderança”, “ser líder”? Significa
capacidade para influir sobre os demais. É claro que pode haver boas
lideranças políticas, pessoas que usam a capacidade que têm para
liderar, para servir a causa dos outros. E claro que também há maus
líderes – dos quais, lamentavelmente, houve muitos na América Latina –,
que utilizam a capacidade que têm, mas apenas para servir-se dos
demais.
Entendo que os líderes são importantes sempre, mais ainda em processos de mudança.
É possível imaginar a independência dos EUA, sem os comandantes que
houve lá? Sem aqueles líderes? É possível imaginar a reconstrução da
Europa depois da IIa. Guerra Mundial, sem os grandes líderes que houve
lá? Contudo... Quando se trata de fazer oposição às mudanças na América
Latina, onde há líderes fortes, mas líderes democráticos e
democratizantes, inventam logo que a liderança é caudilhista, populista,
sempre má liderança, nunca boa liderança.
JULIAN ASSANGE: Presidente Correa…
RAFAEL CORREA: Essa liderança é ainda mais importante... (Julian,
permita-me concluir a ideia, por favor)... quando não se está
administrando um sistema.
Na América Latina, no Equador, hoje, não estamos administrando um
sistema: estamos mudando um sistema. Porque o sistema que nos acompanhou
ao longo de séculos foi fracasso total. Fez de nós a região de maior
desigualdade no mundo, onde só a miséria é muita, a pobreza, e numa
região que tem tudo para ser a região mais próspera do mundo. As coisas
aqui não são como nos EUA.
Que diferença há entre Republicanos e Democratas, nos EUA? Há mais
diferença entre o que eu penso pela manhã e o que eu penso à noite, do
que entre um Republicano e um Democrata norte-americano [Assange ri].
Isso acontece porque, lá, estão administrando um sistema.
Nós, aqui, estamos mudando um sistema. Aqui as lideranças são
necessárias e importantes. Aqui, é indispensável o poder ser legítimo e
democrático, para que a mudança seja legítima e democrática, para que se
mudem as estruturas e a instituições e a institucionalidade nos nossos
países, agora em função das grandes maiorias.
JULIAN ASSANGE: Minha impressão é que o presidente Obama não é
capaz de controlar as enormes forças que se movem à volta dele. Será
sempre assim, com todos os tipos de líderes? Como o senhor conseguiu
introduzir tantas mudanças no Equador? Será sinal dos tempos que
vivemos? Será resultado de sua liderança pessoal? Da força de seu
partido? Que força, afinal – é o que quero saber – é essa, que permite
que o senhor faça algo, no Equador, que Obama não consegue fazer, nos
EUA?
RAFAEL CORREA: Permita-me começar pelo fim. O compromisso, as
concessões, o consenso é desejável, mais não é um fim em si. Para mim,
mais fácil seria conseguir algum consenso; chegaria mancando, cedendo, e
satisfaria muita gente. Mas não mudaria coisa alguma. Satisfaria,
principalmente, os poderes de fato nesse país. E tudo continuaria como
antes. Há momentos em que o consenso é impossível. Às vezes, é
necessário o confronto. Com a corrupção, por exemplo, não há consenso
possível. A corrupção tem de ser enfrentada. O abuso do poder? Tem de
ser enfrentando. Não há consenso possível, com a mentira; a mentira tem
de ser desmascarada. Absolutamente não se pode fazer concessões a esses
vícios sociais, tão graves para nossos países.
É erro imaginar que o que está sendo feito no Equador esteja sendo feito
por mim. É erro. Os povos mudam, os países mudam. Não precisam de
liderança para mudar. Talvez precisem de algum tipo de líder para
coordenar. Mas se o país muda, é por vontade de todo o povo. Nosso
governo foi levado ao poder pela indignação de todo o povo equatoriano.
Talvez aí esteja o que ainda falta, um pouquinho, ao povo
norte-americano, para que o presidente Obama obtenha capacidade para
promover mudanças reais no país. Que a indignação que já está nas ruas,
esse “Occupy Wall Street”, esse protesto de cidadãos comuns, normais,
contra o sistema, que ganhe impulso, que se torne mais orgânico, mais
permanente. E que, nesse caso, dê forças ao presidente Obama para que
possa fazer as mudanças pelas quais o sistema terá de passar, nos EUA.
JULIAN ASSANGE: Quero saber até que ponto o senhor acredita que o
Equador irá, no longo prazo, até onde irá a América Latina. Acho que,
até certo ponto, há boas coisas, como se sabe, a integração continental
na América Latina, a melhoria nas condições de vida, e o fato de que os
EUA e outros países têm, a cada dia, menos influência na América Latina.
Mas... Onde o senhor acredita que estará, dentro de dez, vinte anos?
RAFAEL CORREA: Você disse bem: a influência dos EUA na América Latina
está diminuindo – isso é bom. Por isso, precisamente, dizemos que a
América Latina está passando, do “consenso de Washington”, para o
consenso sem Washington.
JULIAN ASSANGE: [ri] Talvez venha a ser o Consenso de São Paulo.
RAFAEL CORREA: Um consenso sem Washington. Exatamente. E é bom, porque
essas políticas que nos mandavam do norte não eram feitas em função das
necessidades da nossa América, mas em função dos interesses daqueles
países, e, sobretudo, dos capitais daqueles países. Se você analisa a
política econômica – e, modéstia à parte, disso entendo um pouco –, até
talvez tenham sido boas, em algum momento. Mas, tenham sido boas ou más,
em certos momentos, todas tiveram o mesmo denominador comum:
interessavam, primeiro de tudo, ao grande capital, e, sobretudo, ao
capital financeiro. E isso, finalmente, está mudando.
Tenho muitas esperanças. Sou muito realista. Sei que avançamos muito,
mas muito ainda temos de andar. Sei que o que já andamos não é
irreversível, que podemos perder tudo, se os mesmos de sempre voltarem a
dominar nossos países. Mas estamos muito otimistas.
Acreditamos que a América Latina está mudando e, se continuarmos por
essa rota de mudança, a mudança será definitiva. Nossa América não está
passando por uma época de mudança, mas por uma mudança de época. Se
mantivermos nossas políticas de defesa da soberania, com políticas
econômicas nas quais a sociedade controla o mercado, não que o mercado
domina a sociedade e converte a própria sociedade, as pessoas, a vida,
em mercadoria. Se mantivermos essas políticas de justiça e igualdade
social, superando imensas injustiças, de séculos, sobretudo no que
tenham a ver com os grupos nativos, os afrodescendientes, etc., a
América Latina terá um grande futuro. É a região do futuro. Temos tudo
para sermos a região mais próspera do mundo. Se temos conseguido pouco,
foi pelas políticas más, pelos maus dirigentes, maus governos. E isso
está mudando nessa nossa América.
JULIAN ASSANGE: Obrigado, presidente Correa...
RAFAEL CORREA: Foi um prazer conhecê-lo, Julian, pelo menos por esse
meio. E ¡Ánimo! ¡Ánimo! Seja bem-vindo ao clube dos perseguidos.
JULIAN ASSANGE: Obrigado. [risos] E cuide-se. Não deixe que o matem.
RAFAEL CORREA: Ah, sim. [risos] Evitar isso é trabalho de todos os dias. Gracias.
_________________
Nota dos tradutores
[1] BECERRA, Martín e LACUNZA, Sebastián. Wiki Media Leaks: La relación entre medios y gobiernos de América Latina bajo el prisma de WikiLeaks. Buenos Aires: ed. B. 2012 [abr.]. Sobre o livro ver Brasilianas.org, 3/5/2012, em: Comentário fora de pauta.
Transcrição traduzida pelo pessoal da Vila Vudu[1] BECERRA, Martín e LACUNZA, Sebastián. Wiki Media Leaks: La relación entre medios y gobiernos de América Latina bajo el prisma de WikiLeaks. Buenos Aires: ed. B. 2012 [abr.]. Sobre o livro ver Brasilianas.org, 3/5/2012, em: Comentário fora de pauta.
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