Imprensa da liberdade
JANIO DE FREITAS
JANIO DE FREITAS
A liberdade de debate cultural, e mesmo religioso, não se confunde com a liberdade de pregar racismo
O autor do filmeco e os extremistas da idolatria islamista deram-nos, a
nós ocidentais, mais uma oportunidade de fazer o que não faremos:
refletir sobre a liberdade de imprensa sem ideias prefixadas.
O tema é dificílimo em dois sentidos. Por si mesmo, é claro, e pela
resistência ainda intransponível à busca de sua conceituação sem
interesses e sem hipocrisias.
Não sou adepto da ideia de liberdade de imprensa plena: tenho convicção
de que a imprensa não possui a liberdade de difundir o que ponha em
risco pessoas inocentes. A decisão do semanário francês "Charlie Hebdo",
de redobrar o ataque à intolerância do extremismo islamista, não foi
defesa e afirmação do princípio da liberdade de imprensa.
Foi provocação utilitária, com a qual os dirigentes e acionistas da
publicação obtiveram, como poderiam esperar, resultado financeiro e
promocional muito acima do seu histórico (a publicação esgotou em
horas). Os editores de "Charlie" aliaram-se ao autor do filmeco de
origem suspeita, causa do assassinato miseravelmente covarde do
embaixador dos Estados Unidos em Benghazi, na Líbia que ele ajudou a
livrar de Gaddafi.
A edição anti-islamista de "Charlie Hebdo" não trouxe nem uma só
contribuição positiva, por mínima que fosse, a não ser para o seu
comando. Mas forçou o governo francês à humilhação de fechar suas
embaixadas no mundo islâmico afora, para salvaguardar a vida de
funcionários posta em risco pelas respostas à provocação do semanário.
O argumento é admissível: ainda que em nome da vida inocente, a
restrição à liberdade de imprensa plena pode abrir caminho a restrições
por causas deploráveis. A que liberdade de imprensa, porém, se refere o
argumento, eis o problema.
Está sujeito à punição legal o jornalista que chamar de ladrão a quem
não o é. Se punido pelo que fez, é porque não tinha a liberdade de
fazê-lo. Abusou daquela que lhe foi concedida, mas concedida sob
limitação legal -e quase sempre com desconsideração pelas
especificidades do jornalismo, que ficam pendentes da sagacidade e da
isenção do juiz.
A liberdade de imprensa plena, parte da plena liberdade de expressão, é
alimentada também por doses variáveis de hipocrisia. O governo dos
Estados Unidos e a justiça da Califórnia disseram não agir contra o tal
filmeco em respeito à liberdade de expressão. Mas só um tolo acreditará
que, se em vez de Maomé, o filmeco retratasse do mesmo modo George W.
Bush, por exemplo, o governo americano deixaria as cenas correndo o
mundo pelo YouTube. E o autor isentado de processo.
A França da "Charlie Hebdo" proibiu, judicialmente, as fotos do topless
de Kate Middleton, mulher do príncipe William, e fez a polícia buscar os
originais na revista "Closer" (cujo valor para a liberdade de imprensa é
mensurável pela propriedade de Silvio Berlusconi).
Jornalistas e "scholars" americanos, poucos embora, deixaram e ainda
fazem trabalhos sobre a violação da Primeira Emenda, a da liberdade de
imprensa na Constituição dos Estados Unidos, por medidas impostas pelo
governo Bush a partir da derrubada das Torres Gêmeas. A própria história
do 11 de Setembro ainda tem partes sob censura, como o ocorrido com o
quarto avião, "caído".
"A possibilidade de crítica ampla" e "manifestações que poderiam ser
classificadas como provocação" relacionam-se de modo diferente com a
liberdade de imprensa, sem paralelismo algum entre crítica e provocação
-razão da discordância em que me situo diante do editorial
"Subdesenvolvimento puro", da Folha de 21/9/12.
A liberdade de crítica, de debate cultural, político ou científico, e
mesmo religioso, não se confunde com a liberdade de pregar racismo, de
incentivar arbitrariedades, de provocar impulsos criminosos. Aquelas
práticas são a grandeza da imprensa. E as últimas, o lixo.
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