Especialista em Direito Penal afirma que alguns pontos do julgamento
não foram respeitados pelo ministros do Supremo, colocando em perigo o
Estado democrático de direito
Texto por Hélmiton Prateado
Diário da Manhã
Texto por Hélmiton Prateado
Diário da Manhã
O advogado Pedro Paulo Guerra de Medeiros diz que o julgamento da
Ação Penal 470, popularmente chamada de mensalão, está sendo uma
sucessão de problemas causados pelos ministros e que deverá ser a
origem de um constrangimento para o Brasil. “É praticamente certo
que esse julgamento será levado a organismos internacionais,
como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela forma
arbitrária como está se processando esse julgamento”, explicou.
Pedro Paulo é especialista em Direito Penal, conselheiro da
OAB-GO e professor universitário. Em entrevista ao DM, ele
detalha os principais pontos de discórdia sobre o julgamento e o
que deverá ser objeto de questionamento em uma corte
internacional para rever as possíveis condenações.
“Alguns pontos não respeitados pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal estão colocando em grave perigo o estado
democrático de direito, situação que não podemos permitir, pois a
democracia é um valor muito caro para a sociedade brasileira. O
direito a uma revisão do julgamento e o princípio do juiz natural
são alguns desses quesitos que estão sendo afrontados pelos
eminentes componentes do STF”, frisa.
Para o advogado, a forma deste processamento está se
assemelhando a um tribunal de exceção ou mesmo aos julgamentos da
inquisição, o que tira o caráter democrático da mais alta Corte
do País. “Precisamos impedir violações, sob pena de criarmos um
monstro incontrolável que se voltará contra nós no futuro.”
Diário da Manhã – O julgamento do mensalão é passível de ser revisto?
Pedro Paulo Medeiros – Sim, por certo que deverá ser. Esse
julgamento, assim como qualquer ato de poder público do Estado
brasileiro, pode ser submetido à Corte Interamericana de
Direitos Humanos se existir alguma nuance a caracterizar que esse
ato afronta a Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa
convenção é um tratado internacional de direitos humanos, da
qual o Brasil é signatário. De forma soberana, o Brasil aderiu a
esse tratado e se comprometeu a cumpri-lo. Dessa forma, algumas
premissas são de cumprimento obrigatório e estão sendo violadas
nesse julgamento.
DM – De forma mais direta, quais são essas violações?
Pedro Paulo Medeiros – Neste caso concreto, o Supremo Tribunal
Federal está julgando e condenando acusados. Nós, advogados,
entendemos que está afrontando a Convenção Americana em alguns
pontos bem claros. O primeiro é que está se dando um julgamento
parcial, pois o mesmo juiz que colheu as provas na fase de inquérito,
ministro Joaquim Barbosa, é o mesmo juiz que está agora julgando.
Isso é muito próximo do que víamos na inquisição, até porque também
não está estabelecido o contraditório. Outro ponto crucial nesse
julgamento é a inexistência de um duplo grau de jurisdição. Esse
princípio reza que o cidadão tenha sempre o direito de recorrer a
uma instância acima quanto à sua eventual condenação. Como já estão
sendo julgados pelo mais alto Tribunal do País, esses acusados não
terão direito à revisão de seu caso, como se os ministros do STF
fossem infalíveis e seus atos sejam de forma dogmática
irrecorríveis.
DM – Esta convenção prevê possibilidade de recurso?
Pedro Paulo Medeiros – Justamente nesse ponto, está havendo a mais
grave agressão. A Convenção Americana de Direitos Humanos
estabelece que em casos de julgamentos criminais o indivíduo
terá sempre direito de recorrer a alguma instância superior, o que
não existe no Brasil. Em resumo, os acusados que forem condenados
no STF têm o direito previsto na convenção de recurso de revisão
para seus casos e não há previsão no ordenamento brasileiro para
isso. Dois casos semelhantes já foram levados à Corte, e neles a
Corte admitiu que houve violações e determinou que fossem
corrigidas as distorções. No caso Las Palmeras, a Corte
Interamericana mandou processar novamente um determinado réu
(na Colômbia), porque o juiz do processo era o mesmo que o tinha
investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar esses
dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo
processo, sob pena de repetirmos a inquisição e o regime militar
autoritário que há pouco nos cerceava os direitos mais simples. No
caso Barreto Leiva contra Venezuela, se depreende precedente
indicativo de que o julgamento da Ação Penal 470 no STF poderá ser
revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição para todos os
réus, incluindo-se os que gozam de foro especial por prerrogativa
de função. Além da violação ao princípio do juiz natural, que é um
direito previsto na convenção americana de o cidadão não ser
julgado por juiz que não tenha competência expressa para fazê-lo.
DM – Caso a Corte Americana julgue contra o STF, qual é o resultado prático?
Pedro Paulo Medeiros – A Corte prolata uma decisão para o Brasil para
que o Supremo cumpra o que foi pactuado na convenção. O Brasil tem
de cumprir de bom grado, corrigindo as distorções, ou sofrerá
sanções internacionais, como embargos, e estará dando uma
demonstração para a comunidade internacional de que não cumpre
normas que ele mesmo prega: respeito e cumprimento. Não se pode
conceber que o Brasil tenha esta postura, principalmente quando
quer ser ator de primeira grandeza no cenário internacional,
inclusive postulando um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU.
DM – Há opiniões sobre a falta de contraditório no processo. Isso procede?
Pedro Paulo Medeiros – Sim, esse é um dos argumentos dos
defensores. Basta prestar atenção nos votos dos ministros que
condenam os envolvidos. Eles estão aceitando indícios como provas e
elementos colhidos fora do processo, como dados da Comissão
Parlamentar de Inquérito dos Correios ou mesmo durante o
inquérito. Está patente que esses elementos não passaram pelo
contraditório e pela ampla defesa. É regra no direito brasileiro
que, remonta a toda a doutrina jurídica, que só se pode utilizar
elementos colhidos em juízo, com a presença de advogados, de
membros do Ministério Público e com a garantia do amplo direito de
defesa e do magno contraditório, como está preconizado na
Constituição Federal e que a democracia brasileira ainda mantém
como soberana. São preceitos inabaláveis, que também estão
contidos na Convenção Americana de Direitos Humanos e que,
portanto, devem ser levados à apreciação da Corte
Interamericana.
DM – O Supremo está fugindo à sua tradição e fazendo um julgamento mais político que jurídico?
Pedro Paulo Medeiros – Acredito que o Supremo está transpondo sua
jurisprudência de décadas, que era absolutamente libertária,
constitucional e garantista. Estão fazendo um julgamento
diferente do que foi feito em décadas, muito mais duro, julgando por
indícios, sem provas juntadas aos autos e atropelando preceitos
constitucionais. Espero que seja o único e que isso não se
repita, mas de que isso vai virar um precedente muito perigoso, não
temos dúvida.
DM – Qual o efeito posterior a isso?
Pedro Paulo Medeiros – Qualquer juiz de primeira instância se
sentirá avalizado para tomar decisões idênticas, desrespeitando
garantias constitucionais e praticando inquisições à
vontade. Nos rincões, com pessoas simples, advogados simples vão
sofrer horrores nas mãos de inquisidores com o poder da caneta
para sentenciar. Juízes vão se sentir muito à vontade para julgar na
base do “ouvi dizer”. Imagine só que terror não será uma situação
assim! O Supremo está criando um paradigma perigosíssimo ao
julgar por indícios e condenar. As pessoas estão achando muito bom
isso agora, porque o STF está julgando o rico, bonito e famoso
distante, o bem situado. O dia em que isso começar a acontecer na
casa delas, verão o monstro que criaram e que se tornou
incontrolável. Na época do regime militar, da ditadura dos
militares, eles prendiam as pessoas, torturavam e as deixavam
incomunicáveis, e achavam que estavam agindo dentro da
legalidade e da legitimidade, com toda a naturalidade
possível, dentro da mais perfeita justiça. Tinham seus fundamentos
para prender sem fundamento, para julgar por “ouvir dizer” e para
condenar sem provas, tudo muito próximo do que está sendo feito nesse
processo do mensalão. Terminantemente, as provas produzidas
perante o Supremo Tribunal Federal sob o contraditório não
comprovam as acusações.
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