No Estado Novo esta mesma corte
autorizou a entrega de uma judia comunista para morrer nas Câmaras de
Gás de Hitler. Esteve dentro da estrita legalidade de uma Ditadura. Em
1988 recebemos um ordenamento jurídico resultante da luta contra o
terrorismo de Estado que imperou no Brasil depois de 1964. A condenação
de José Dirceu mostra que o consenso de 1988 mudou. Doravante,
empresários, políticos e lideres de movimentos sociais terão grande
dificuldade de se defender no STF. A não ser que o julgamento tenha sido
de exceção!
Conta-nos George Duby que no século XII o cavaleiro Guilherme Marechal
descobriu uma jovem dama e um monge em fuga. Ao saber que se dirigiam a
uma cidade para empregar seu dinheiro a juros, ele ordenou a seu
escudeiro que lhes retirassem o dinheiro. Para ele aquilo não era roubo!
Ele não tocou na jovem, não impediu que continuassem e nem lhes tomou a
bagagem. Nem mesmo quis ficar com o dinheiro tomado pelo escudeiro. É
que para a moral da cavalaria o metal era vil, a acumulação desonrada e a
usura um pecado.
Ninguém nos dias de hoje concordaria com aquele “Direito Medieval”. Todo
o Direito corresponde ao seu tempo e à leitura política que predomina
numa sociedade.
No caso do Supremo Tribunal Federal, a sua natureza política se torna
quase transparente. É que os juízes do STF não fazem concurso, eles são
indicados. A Constituição garante ao Presidente da República e à maioria
que ele constitui no Senado Federal, o poder de interferir na sua
composição.
Dessa forma é dever constitucional do presidente nomear pessoas que
estejam de acordo com a correlação de forças políticas que a população
livremente estabeleceu pelo voto. Quando Fernando Henrique Cardoso foi
eleito, ele nomeou juízes que estavam afinados com o seu projeto liberal
de privatizações. Nomeou pessoas que deveriam criar o ordenamento
jurídico dentro do qual ele ergueu o modelo econômico escolhido pelo
povo. Caberia aos juízes inviabilizar questionamentos que duvidassem das
privatizações, por exemplo.
Em 2002 o povo escolheu um novo modelo de desenvolvimento oposto ao
anterior e era esperado do presidente que nomeasse para o STF juízes que
calçariam o sua opção pelo social com uma segurança jurídica mínima que
impedisse ações contra sua política de cotas ou seus programas de
transferência de renda, por exemplo. Mas, ao contrário de FHC, Lula
seguiu uma interpretação errônea do que seria a República.
Ocorre que se o STF não é politizado pelo presidente ele o é pela
oposição. É que o Direito não é só um conjunto de fatos ou normas, como
rezam os positivistas, mas a expressão de uma relação de poder. Se um
lado hesita em exercê-lo o outro o fará. Nada disso atenta contra a
Democracia. Esta é apenas a forma de um domínio encoberto pelo consenso
da sociedade. A violação do direito ocorre se um dos lados usa a força e
se põe fora da legalidade.
Até ontem, o consenso jurídico era o de que na dúvida prevalecia a
absolvição do réu. Cabia ao acusador fornecer a prova, e não o
contrário. Provas não podiam ser substituídas pela crença espírita de
que uma pessoa devia necessariamente conhecer determinado fato. Todo
cidadão tinha o direito de ser julgado em mais de uma instância.
No século XIX havia escravos que iam às barras do tribunal para requerer
a liberdade alegando que teriam ingressado cativos no Brasil depois da
proibição do tráfico. E quando perdiam num Tribunal da Relação, podiam
recorrer até a última instância, embora a nossa mais alta corte
defendesse a escravidão.
No Estado Novo esta mesma corte autorizou a entrega de uma judia
comunista para morrer nas Câmaras de Gás de Hitler. Esteve dentro da
estrita legalidade de uma Ditadura. Em 1988 recebemos um ordenamento
jurídico resultante da luta contra o terrorismo de Estado que imperou no
Brasil depois de 1964.
A condenação de José Dirceu mostra que o consenso de 1988 mudou.
Doravante, empresários, políticos e lideres de movimentos sociais terão
grande dificuldade de se defender no STF.
A não ser que o julgamento tenha sido de exceção!
Neste caso, tudo voltará a ser como antes. Mas então a ilusão que a
esquerda acalentou na democracia será posta em causa e ela poderá se
voltar aos exemplos tão temidos pela oposição, como a Argentina, a
Bolívia, o Equador e a Venezuela.
Lincoln Secco, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USPNo Carta Maior
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