Em texto exclusivo para o 247, o escritor Fernando Morais relata um
episódio pessoal, de quando concorreu ao governo de São Paulo, e diz que
o país sonhado no poema "O outro Brasil que vem aí", escrito por
Gilberto Freyre, em 1926, pregando a esperança contra o medo, começou
com Lula e continua com Dilma; leia
Por Fernando Morais
A festa de celebração dos 10 anos de governo do PT, realizada nesta
quarta-feira, me fez lembrar de um episódio ocorrido em 2002, durante a
vitoriosa campanha de Lula.
No começo de junho daquele ano fui chamado para um encontro com o
ex-governador Orestes Quércia, presidente do Diretório Estadual do PMDB,
partido ao qual eu era – e sou – filiado. Sem muitos prolegômenos, ele
foi direto ao assunto: o partido me convidava para ser candidato a
governador de São Paulo. Ele, Quércia, disputaria uma das duas vagas de
senador em jogo naquelas eleições.
Mal refeito do susto, respondi que era uma honra etc etc, e que eu
aceitava – mas havia uma questão que certamente inviabilizaria minha
candidatura. Eu estava decidido a fazer a campanha de Lula e votar nele
para presidente, a despeito da decisão da direção nacional do partido de
apoiar José Serra.
A aliança com os tucanos havia sido cimentada com a indicação da
senadora Rita Camata, do PMDB capixaba, para vice de Serra. Para minha
surpresa, Quércia topou, mesmo sabendo que sua decisão poderia implicar
em uma intervenção da direção nacional na Executiva paulista.
Estendeu-me a mão a anunciou: “Então está fechado. E você não vai
sozinho com o Lula. O PMDB paulista, como um todo, vai apoiá-lo para
presidente.”
Durante dois meses eu acordava todos os dias às seis da manhã, chovesse
ou fizesse sol, pegava um avião e saía pelo Estado pedindo votos. Nesse
período devo ter percorrido mais de cem municípios. Participei de um
único debate, na TV Bandeirantes – do qual saí com um processo movido
contra mim pelo governador e candidato à reeleição Geraldo Alckmin, do
PSDB. Minha pele foi salva pelos craques Manuel Alceu Afonso Ferreira e
Camila Cajaíba, meus defensores. Derrotado na Justiça, o governador
ainda teve que pagar as custas do processo – os tais “honorários de
sucumbência” – dinheiro que eu pretendia que fosse doado ao MST, mas que
acabou sendo destinado ao Fundo Social de Solidariedade de São Paulo.
Anos depois recebi um polido telefonema de Alckmin, sugerindo que
puséssemos uma pedra sobre o assunto. Mas isso é outra história.
Minha campanha foi muito difícil. Embora tivesse que enfrentar
pesos-pesados com máquinas poderosas, como Alckmin, Maluf e Genoíno, eu
contava com pouquíssimos recursos e estrutura muito precária. Com
índices miseráveis nas pesquisas (acho que nunca passei dos 5%), eu
apostava no grande trunfo do PMDB: no horário eleitoral eu iria dispor
de cinco minutos diários – que na verdade eram dez minutos, já que o
programa era exibido duas vezes por dia. Quem quer que tenha elementar
noção do poder da televisão sabe que cinco minutos diários na TV são uma
eternidade. E era na TV que eu pretendia virar o jogo.
No dia 15 de agosto, quando faltavam duas semanas para a estreia do
horário eleitoral, liguei para o marqueteiro contratado pelo PMDB para
sugerir que começássemos a gravar meus pilotos para o programa de
televisão. Para meu espanto, o publicitário respondeu que na primeira
semana o horário do partido seria integralmente ocupado por Quércia –
que já dispunha dos três minutos destinados ao candidato ao Senado.
“São ordens do próprio Quércia”, reiterou, “e eu obedeço ordens de quem
paga as minhas contas”. Para encurtar a conversa, no dia seguinte
denunciei a tramoia publicamente e retirei minha candidatura.
Entrei na campanha do PT e passadas algumas semanas fui convidado a
participar de um ato de artistas e intelectuais em apoio a Lula no Rio
de Janeiro. Ao chegar ao salão apinhado de gente (acho que era na
churrascaria Porcão), fui informado de que eu falaria “em nome dos
escritores”. Apanhado de surpresa, eu não sabia direito o que dizer. Foi
então que me lembrei que trazia na mochila uma preciosidade: um poema
escrito em 1926 por Gilberto Freyre que me fora mandado dias antes por
e-mail por uma amiga de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Na
verdade eu ignorava que o autor de “Casa Grande e Senzala” era dado à
poesia. Mas não tinha dúvidas de que aqueles versos septuagenários de
pouco mais de trezentas palavras caíam como uma luva para o momento
vivido pelo Brasil, na iminência de eleger pela primeira vez um operário
para a Presidência da República. O poema parecia atual também pela
circunstância de que dias antes a atriz Regina Duarte aparecera no
programa de TV de José Serra afirmando “ter medo” – medo, claro, de que
Lula ganhasse a eleição. Enquanto Regina falava em medo, Gilberto Freyre
semeava esperança.
Quando chamaram meu nome, subi ao palco e anunciei que, em vez de fazer
um discurso, eu leria uma ode à esperança, o poema de Freyre:
O outro Brasil que vem aí
Gilberto Freyre, 1926
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil,
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil,
coragem de morrer pelo Brasil,
ânimo de viver pelo Brasil,
mãos para agir pelo Brasil,
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e
norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.
Emocionado, e diante da emoção daquela multidão, não resisti e repeti o verso final:
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.
À saída Lula me pediu uma cópia do poema, que passou a ler no
encerramento de todos os comícios dali em diante. Na primeira
entrevista depois de eleito, ele declarou aos jornalistas: “O mais
importante é que a esperança venceu o medo” – expressão que o ágil
marqueteiro Duda Mendonça havia transformado em bordão de campanha.
Seria arriscado afirmar que o poema de Gilberto Freyre tenha sido
profético em relação à Revolução de 30 – até porque a primeira
providência do grande sociólogo, após a chegada de Vargas ao poder, foi
asilar-se em Portugal. Nem acredito que Freyre, se vivo fosse, estaria
ao lado dos petistas. Mas ao reler “O outro Brasil que vem aí” é
impossível deixar de pensar que o país sonhado no poema começou com
Lula. E continua com Dilma.
Fernando Morais, jornalista e escritor, é autor, entre outros, dos
livros “Olga”, “Chatô” e “Os últimos soldados da Guerra Fria”.
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