A realidade áspera de uma Igreja que, de dominante, vai passando a minoritária.
O artigo abaixo, de autoria do jornalista e escritor católico
italiano Vittorio Messori, foi publicado no Brasil originalmente no site
do Instituto Humanitas Unininos.
Messori, um dos mais respeitados especialistas em Vaticano, descreve o
mundo turbulento e declinante que cercou o papado de Bento 16. É
relativamente fácil, lido o artigo, entender por que o papa decidiu renunciar.
Nestes tempos, acompanhar certas crônicas vaticanas nada edificantes pode
ser saboroso ou entristecedor, dependendo do humor anticlerical ou
clerical. Na realidade, o católico que não só conhece a história da sua
Igreja, mas que também não se esqueceu das advertências do Evangelho,
não deveria se perturbar mais do que isso. Isto é, essa Igreja é um
campo onde o grão bom e a cizânia venenosa crescerão sempre juntos; é
uma rede lançada ao mar em que peixes bons e ruins sempre vão conviver.
Palavra do próprio Jesus, que exorta a não se escandalizar com isso e a
não tentar nem mesmo dividir o são do corrompido, reservando a si essa
tarefa no dia do Grande Juízo. Exemplo primeiro dessa situação é,
obviamente, o centro e o motor da “máquina” eclesial: a Cúria vaticana,
isto é, a administração central daquela que a Tradição chama de “a
Igreja militante”.
Bem, quanto a essa, não foi um herege ou um comedor de padres, mas sim uma santa que Paulo VI quis
proclamar “Doutora da Igreja”, a padroeira da Itália, Catarina de
Siena, que constatou: “A corte do Santo Padre Nosso parece-me, às vezes,
um ninho de anjos, outras, uma cova de víboras”. Bem e mal, portanto,
unidos na mesma realidade, assim como todas as coisas humanas: e a
Igreja também é uma instituição humana, é um invólucro histórico (com os limites que derivam disso) para conter um Mistério meta-histórico.
Mas acenaremos a uma avaliação moral mais abaixo. Há, antes, um aspecto
“organizacional” a considerar. Deve ser lembrado, de fato, que, do
Vaticano atual, não vêm apenas ecos de “escândalos” de negócios, sexo,
poder. É a própria máquina da administração que, há anos, já parece
falhar com inquietante frequência; são os equívocos, as distrações, as
gafes diplomáticas, até mesmo os erros – às vezes em documentos solenes
– naquele latim que ainda é a sua língua oficial, mas que é conhecida
cada vez menos e sempre pior.
Concordo, a Cúria, assim como a própria Igreja, semper reformanda est.
Mas aqui não parece possível uma “reorganização empresarial”, porque
parecem faltar as forças novas e de qualidade. Os infinitos escritórios
vaticanos são regidos, desde os tempos da Contrarreforma, por pessoal
eclesiástico que vem de todas as dioceses e de todas as ordens
religiosas do mundo. Mas é um mundo, este nosso, onde a maioria das
dioceses e das congregações fecharam seminários por falta de
frequentadores, e o seu problema certamente não é o de enviar a Roma, a
serviço da Igreja universal, os jovens mais promissores. Esses jovens
não existem e, se existir algum, é defendido zelosamente por bispos e
superiores gerais.
No entanto, depois daquele Vaticano II que queria emagrecer a
estrutura eclesial, o Anuário Pontifício quase triplicou as suas
páginas, a expansão burocrática não teve descanso. Aumentam funções,
postos, responsabilidades, enquanto diminuem, ano após ano, os recursos
humanos. E os poucos reforços não parecem capazes de portar aquela
esmagadora responsabilidade que é gerir na terra nada menos do que a
vontade do Céu.
Assim, o realismo católico parece impor um drástico redimensionamento da estrutura de uma Catholica que,
de massa como era, está se tornando ou já se tornou comunidade
minoritária. Querer manter o imponente aparato barroco, quando as forças
vêm a faltar (e as poucas que ainda restam às vezes não são
adequadas), leva inevitavelmente aos desvios e aos erros que são
constatados na gestão eclesial.
Levar a sério, portanto, aqueles que propõem um retorno ao primeiro
milênio, confiando à Unesco, como lugares artísticos e turísticos, os
palácios na colina do Vaticano e voltar à “verdadeira” catedral
do bispo de Roma, a de São João de Latrão, com uma estrutura
institucional ao mínimo? Não é o caso de se refugiar em tais extremos,
mas o problema existe e deverá ser enfrentado, embora longe de
ideologias de 1968, de demagogia pauperista.
Mas, dizíamos, parece haver também uma falha moral que não é só sexual (a questão dos pedófilos, mas não só, docet),
mas é também o retorno, quase como nos tempos do Renascimento, de
palácios vaticanos reduzidos a nós de intrigas e de luta por carreiras,
poderes, dinheiro, interesses ideológicos e políticos. Pois bem, aqui,
não há reforma que esteja à altura, aqui não há remédio apenas humano.
Aqui, toda técnica de reorganização empresarial é ridiculamente
impotente e deve se abrir ao “escândalo” da oração.
Palavra do Papa Bento XVI, mas, durante décadas, palavra também do
cardeal Joseph Ratzinger. Se a Igreja está em crise, ele sempre repetiu,
é porque a fé dos homens da Igreja está em crise. Sem excluir a
hierarquia. Ele chegou a me dizer, uma vez: “No ponto em que estamos, eu
confesso: a fé, a fé plena, a que não hesita, parece ter se tornado
tão rara que, ao encontrá-la, ela me assombra mais do que a
incredulidade”.
Por isso, ele voltou às raízes de tudo, com os seus três volumes sobre o
Jesus da história; por isso, ele quis um órgão especial para a nova
evangelização; por isso, ele proclamou este 2012 como o “Ano da Fé”. L’intendance suivra, dizia Napoleão: antes a conquista, depois os funcionários da administração.
A Igreja – o Papa Bento XVI está certo disso – também tem que
fazer uma conquista, ou melhor, uma reconquista, a da fé na
historicidade dos Evangelhos, no Deus que se encarnou em uma mulher, em
um Jesus que, ressurgindo, mostrou ser o Cristo.
A Igreja já tem poucos homens, e às vezes pouco adequados. O
despedaçamento, para a instituição, seria certo se quem ainda está
“trabalhando na vinha do Senhor” (assim o papa gosta de dizer) perdesse a
perspectiva de se empenhar não por um prêmio humana, mas sim divino.
Se a fé vacila ou se apaga, se não é mais a razão cotidiana de vida, a
preguiça dissimulada do burocrata está à espreita, o velho monsenhor,
assim como o jovem, estão prontos para se transformar em funcionários do
ministério clerical e, como tais, sujeitos a toda tentação.
Paulo NogueiraNo Diário do Centro do Mundo
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