domingo, 3 de março de 2013

A máquina da notícia pode virar sucata


Nos anos de 1970 e de 1980, o Jornal Nacional da TV Globo se orgulhava de ter uma média de 80% de audiência. Oscilava entre o primeiro e o segundo lugares no ranking de popularidade junto ao público da emissora. Hoje, o JN patina nos 27% de audiência e está no quinto lugar na lista dos programas mais vistos na Globo, atrás até mesmo do pouco expressivo seriado Pé na Cova.
Esta brutal mudança de status não pode ser atribuída a alguma defasagem técnica ou concorrência de outro telejornal. A Globo continua usando o que há de mais moderno em matéria de tecnologia, mantém o maior e mais bem pago plantel de jornalistas da tevê brasileira e nenhuma outra emissora consegue bater a Vênus Platinada em matéria de coberturas internacionais, de temas políticos ou econômicos, e na mobilidade das equipes de reportagem. Só enfrenta alguma concorrência da TV Record na cobertura de crimes, tragédias e escândalos sociais.
Pode-se alegar que a concorrência do canal fechado GloboNews – e seus similares na Band e Record – tenha levado os públicos A e B para um nicho informativo mais exclusivo, deixando a tevê aberta como um reduto das classes C e D, supostamente menos interessadas em jornalismo. Mas acontece que tanto o Jornal Nacional como seus similares na tevê paga seguem estritamente o mesmo modelo jornalístico, a mesma fórmula para lidar com a audiência.
A explicação para a perda de audiência do Jornal Nacional está fora da emissora. Está nos quase 150 milhões de brasileiros que todas as noites ligam a tevê. Este público perdeu a atração quase mística pelo noticiário na televisão, como acontecia entre os anos de 1970 a 1990, passando para um posicionamento desconfiado, distante e cético. A narrativa telejornalística deixou de ser discursiva para ganhar ares menos ufanistas, menos formalista e mais próxima da realidade, mas nem isso fez com que o telespectador baixasse a guarda.
Esse comportamento não é exclusivo do telespectador, pois também o leitor de jornais e de revistas é, sobretudo, um cético quando se trata de avaliar publicações. Em qualquer conversa sobre o noticiário impresso ou audiovisual, o número de críticas sempre supera – por larga margem – a quantidade de elogios.
Há 20 ou 30 anos, as pessoas discutiam os fatos, dados e eventos noticiados na tevê e nos jornais. Hoje, o leitor e o telespectador se mostram mais preocupados em identificar quem está por trás da notícia, quem são os beneficiários e os prejudicados. Ao longo dos anos, o público, de maneira geral, começou a perceber que os entrevistados e protagonistas do noticiário estavam mais preocupados com sua imagem pessoal do que com a informação. Que os eventos cobertos estavam ligados a interesses políticos, comerciais ou econômicos.
Como a imprensa raras vezes questionou esse tipo de comportamento, as pessoas assumiram, consciente e inconscientemente, que era necessário ter um pé atrás ao receber sua dose diária da realidade filtrada pelas redações. A sofisticação crescente do marketing pessoal, social, político e corporativo torna inevitável que celebridades, parlamentares, governantes e executivos tentem projetar para o público percepções que lhes sejam favoráveis. Pode ser eticamente nebuloso, mas é a regra do jogo.
O erro está no papel da imprensa que, em vez de questionar esse tipo de postura marqueteira, ou pelo menos identificar os interesses ocultos, simplesmente passou a publicar tudo o que recebia como informação, desde que fosse fornecido por fontes respeitáveis. A confiabilidade de dados e fatos deixou de estar atrelada a uma checagem jornalística para ficar pendente do status da fonte. Os jornais, revistas e telejornais se preocuparam mais com os formadores de opinião e tomadores de decisões do que com o público, que foi aos poucos perdendo a confiança naquilo que lhe era oferecido como sendo a verdade dos fatos.
A imprensa está pagando caro por esse erro estratégico porque a crise no modelo de negócios provocada pelas novas tecnologias de comunicação e informação fez com que ela se tornasse mais dependente do consumidor de notícias, justo no momento em que cresce o ceticismo e desconfiança do público em relação ao noticiário corrente. Ceticismo que assume proporções endêmicas no público jovem, com menos de 35 anos e que em breve estará na liderança dos governos, das organizações sociais e das empresas.
A solução para esse problema não está em tecnologias mais sofisticadas, mas na revisão das estratégias editoriais que priorizam os interesses das fontes e das empresas jornalísticas. O jornalismo tem em seu DNA a prestação de serviços ao público, e é aí que ele pode encontrar novas fórmulas de relacionamento com leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.
Trata-se de uma escolha histórica porque, se ela não for feita, corremos o risco de desperdiçar toda a experiência e sabedoria de várias gerações de jornalistas que têm muito a transmitir para os novos profissionais e amadores. Estes inevitavelmente vão mudar a imprensa porque já nasceram com um chip digital embutido em sua cultura informativa. Mas também inevitavelmente passarão por muitas decepções e revezes porque a experiência é única e insubstituível.
Se as atuais empresas jornalísticas ignorarem o público como seu parceiro para continuar a vê-lo apenas como comprador de notícias, elas não sobreviverão e serão substituídas por outras. O preço a ser pago é o desperdício de quantidades imensas de informação acumuladas ao longo dos anos e que podem virar sucata junto com marcas jornalísticas centenárias.
Carlos Castilho
No Limpinho&Cheiroso

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