Foto: Cardeal
Bergoglio
(agora Papa Francisco)
e o general Jorge
Videla, um dos
maiores ditadores
argentinos
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Luciano Martins Costa, Observatório daImprensa
“Os jornais brasileiros abrem espaço para a defesa do papa Francisco, no debate que se estabeleceu assim que foi anunciado o nome do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio para o trono do Vaticano. O ponto focal é: que papel ele jogou durante a ditadura militar?
Com tudo que tem de retrógrada e atual, essa questão central remete a um contexto muito contemporâneo: a sociedade brasileira, assim como quase todos os países latino-americanos, está dividida em dois grupos antagônicos, duas visões de mundo divergentes que se tornam cada vez mais ortodoxas conforme se agrava o radicalismo presente na mídia e nas redes sociais digitais.
Nas edições de sexta-feira (15/3), os jornais reproduzem declaração do arquiteto argentino Adolfo Pérez Esquivel – que em 1980 recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua campanha pacifista contra a violência política –, no qual afirma não considerar que o cardeal Bergoglio tenha sido cúmplice da ditadura, mas que lhe faltou coragem para acompanhar a luta pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis.
Como os jornais recortam sua manifestação, melhor ler a íntegra do texto original, em seu site autobiográfico (ver www.adolfoperezesquivel.org).
Interessante destacar como Esquivel declara desejar que o novo papa “dê alento às transformações sociais que vêm ocorrendo na América Latina e em outras partes do mundo, nas mãos de governos populares que tratam de superar a noite do neoliberalismo”.
No contexto de extremismos em que tudo é enquadrado por estes dias, esse posicionamento do prêmio Nobel o colocaria automaticamente em um dos lados da conflagrada disputa por corações e mentes que se pode acompanhar nas redes sociais e na imprensa. No entanto, sua discordância quanto às acusações levantadas contra Bergoglio produz certamente algum desconforto entre seus simpatizantes e admiradores, ainda mais se considerarmos que a denúncia de que o papa foi colaborador e até mesmo cúmplice de crimes das forças de repressão na Argentina partiu de familiares de vítimas da ditadura e foi amplificado pelo livro escrito por Horacio Verbitsky, jornalista de grande reputação que, no entanto, não escapa do contexto de confronto em que vivemos (ver, neste Observatório, “Um ersatz”).
Raciocínio em bloco
É muito mais confortável empacotar todas as informações em duas caixas separadas, uma para os correligionários e outra para os que pensam diferente. Esse comportamento foi alimentado nos últimos anos pela imprensa na América Latina, onde uma sucessão de governos contrários ao chamado “consenso de Washington”, que dominou o cenário político nos anos 1990, vem produzindo mudanças econômicas e sociais importantes desde o início deste século.
A declaração de um personagem claramente engajado como Esquivel exige uma reflexão mais elaborada, mas a imprensa tradicional não parece capaz de enxergar outras tonalidades que não o preto e o branco. Seria longo e repetitivo descrever aqui onde e como se manifesta essa dicotomia que transforma a complexidade da vida contemporânea em um confronto de radicais. Também é ocioso ficar repetindo as demonstrações de que a imprensa tradicional se comporta como um monolito, caracterizada pelo que o antigo Pasquim chamava de “raciocínio em bloco”.
Há pelo menos dez anos se observa o fenômeno do fechamento da imprensa em si mesma, alienando-se do contexto mais amplo e diversificado da sociedade e da cultura, num comportamento que, curiosamente, repete o modelo usado pela chamada imprensa alternativa nos tempos da ditadura brasileira (ver “Imprensa alternativa, procura-se”, 6/1/2004).
Se o maniqueísmo da imprensa alternativa, também chamada “nanica”, se justificava de alguma forma como resistência à violência política e à censura, a visão monolítica que a imprensa tradicional impõe a seu público pode ser vista como sinal de discordância com os caminhos a que a democracia levou o Brasil e outros países do continente – e estimula ativistas saudosos da ditadura.
Nas redes digitais, embora proliferem
grupos homogêneos e radicais, há mais reflexão nas divergências e,
eventualmente, algum humor entre amigos que têm pontos de vista diferentes. Na
imprensa tradicional, qualquer que seja a pauta – o novo papa, a morte de Hugo
Chávez ou os indicadores de inflação – o que se pode esperar é mais do mesmo:
um mundo sem sutilezas.”
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