Por Urariano Mota
Recife (PE) - Quis a ironia que se unissem hoje
as manchetes de todos os jornais para a eleição do novo Papa e o Dia
Nacional da Poesia. Pois 14 de março é o dia do nascimento do imenso
poeta Castro Alves, e, neste mesmo dia, à margem se insinua a
cumplicidade do Papa com a ditadura argentina. Dizia o poeta:
“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?”
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?”
Sagrada eloquência. Até parece que o poeta nos versos se refere aos
jornais de hoje, que em notícias marginalizadas pela saudação ao novo
Papa, de passagem dizem:
Nos anos da ditadura argentina, o novo Papa Francisco, que então
atendia pelo nome de Jorge Mario Bergoglio, teria dado o sinal verde
para a prisão e torturas em companheiros de sua congregação, a
Companhia de Jesus. (Creiam, não há qualquer zombaria em assim reunir os
nomes de Francisco, que vem do humanista São Francisco de Assis, mais a
irmandade chamada Companhia de Jesus e o novo Papa. A ironia está nas
notícias que correm rápido sobre a absurda trindade: São Francisco,
Jesus e o velho Jorge Mario Bergoglio.)
E continuam, como sussurros à margem: na última década, sinais mais
claros das possíveis participações do novo Papa na ditadura começaram a
aparecer na imprensa argentina. Mas foi em 2005, quando o jornalista
Horacio Verbitsky acusou o então arcebispo de ter contribuído para a
detenção, em 1976, de dois sacerdotes que trabalhavam sob seu comando na
Companhia de Jesus, que as suspeitas ganharam força.
As denúncias iniciais da participação do Papa na ditadura foram
feitas por Emilio Mignone, em seu livro “Igreja e ditadura”, de 1986,
quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico. Mignone
exemplificou a “sinistra cumplicidade” com os militares numa operação
militar em que desapareceram quatro catequistas e dois de seus maridos.
Segundo o livro do fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais, sua
filha, Mónica Candelaria Mignone, e a presidente das Mães da Praça de
Maio, Martha Ocampo de Vázquez, nunca mais foram encontradas.
Há outras acusações, tão ou mais graves.
Outro episódio, em que o novo Papa foi obrigado a prestar
esclarecimento para a Justiça, diz respeito ao desaparecimento da bebê
Ana de la Cuadra nas mãos dos militares. Bergoglio foi chamado a
testemunhar quando era arcebispo de Buenos Aires, a pedido da Promotoria
do país e da organização Avós da Praça de Maio - formada pelas avós de
crianças sequestradas pela ditadura -, mas ele pediu para dar sua
declaração por escrito.
A promotoria apresentou à Justiça cartas enviadas a Bergoglio pelo
avô de Ana, nas quais ele pedia ajuda para encontrar a neta e a filha,
Elena - que desapareceu quando estava grávida de 5 meses. Com base
nessas cartas, Estela, irmã de Elena, acusa o novo Papa de mentir ao
dizer que apenas nos últimos 10 anos começou a tomar conhecimento sobre o
sequestro de bebês por militares argentinos e de não fazer tudo o que
estava a seu alcance para colaborar com os julgamentos sobre os abusos
da ditadura.
Nas sedes das Mães e Avós da Praça de Maio, entre outras ONGs locais,
seus representantes receberam com surpresa e estupor o nome do novo
Papa. Para este setor da sociedade argentina, acompanhado nas redes
sociais por dirigentes de esquerda, a escolha de Bergoglio foi difícil
de digerir.
- Até hoje, a Igreja continua sem colaborar com as investigações
da Justiça. Bergoglio nunca quis abrir os arquivos da Conferência
Episcopal.
Como se fosse para tal notícia, o poeta ergueu a sua voz:
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
“Ó mar, por que não apagas
Co`a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
“Ó mar, por que não apagas
Co`a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
Existe um povo que a bandeira empresta
Pr`a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!”
Pr`a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!”
Enfim, talvez aqui valha o ditado popular que reza “Deus escreve
certo por linhas tortas”. O que neste caso significa: foi preciso a
eleição de um Papa, silencioso com a ditadura argentina, para nos fazer
atualizar a eloquência de Castro Alves. Meu Deus! meu Deus! mas que
bom Papa é este, que impudente no trono tripudia?
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