Foi, como esperado, um dia para ser esquecido na história do Congresso. O
acordo entre as lideranças partidárias na semana passada, que deu de
bandeja ao Partido Social Cristão a Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara, possibilitou ao país assistir a um movimento
inédito: um presidente de claras inclinações homofóbicas ser eleito
representante das minorias sobre as quais nutre um desprezo declarado.
Na véspera da votação, que apenas chancelou o inevitável, grupos
ofendidos pela escolha fizeram alarde na sala da comissão. No dia
seguinte, foram impedidos de acompanhar a votação por decisão do
presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). A medida provocou
mais revolta, agora entre os deputados. O então presidente da comissão,
Domingos Dutra (PT-MA), renunciou. Foi acompanhado por colegas como a
deputada Luiza Erundina (PSB-SP). “Vamos sair juntos. Esta comissão não é
mais a Comissão dos Direitos Humanos”, disse ela.
Assim o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) ganhou terreno livre para ser
eleito com 11 votos a favor e apenas um branco. Terá agora,
oficialmente, a chance de combater por dentro o que chama de privilégio
de uma minoria rude e barulhenta. Uma minoria cujas bandeiras ele reluta
em reconhecer como legítimas.
Durante a semana, quando seu nome foi aventado e as reações se
multiplicaram, o pastor levantou a bandeira branca para cravar a haste
na garganta de quem, com outras palavras, promete combater. Disse não
ter nada contra os atores e sim contra o ato; negou ser racista com base
em sua ascendência negra. Acuado, disse que o autoritarismo não reside
em negar direitos a grupos marginalizados, mas sim na não-aceitação das
críticas aos marginalizados. Por fim, disse ser especialista em
perseguição, já que na História ninguém sofreu mais acossamento do que
os cristãos.
Trata-se de um jogo retórico: o pastor se apoia em uma série de
verdades, como a perseguição histórica aos cristãos, para sustentar uma
inverdade básica, quase lógica. Basta lembrar que, pela avenida
Paulista, não há notícias de cristãos sendo devorados por leões por
andarem com a Bíblia debaixo do braço. Nenhum crente, de qualquer fé,
terá de gritar alto para poder existir ou manifestar sua crença:
trata-se de um direito garantido e assimilado ao longo dos anos.
Mesmo assim a inversão do papel de vítima é invocada para legitimar uma
ofensa. “Reação”, dessa maneira, virou “autoritarismo” e
“fundamentalismo”, mero “ponto de vista”. O que o pastor Feliciano não
parece ter entendido é que a revolta provocada por sua escolha não se
explica pelo fato de ser cristão; explica-se pela demonstrada
ignorância, para não dizer má fé, sobre o cargo que pretende ocupar, os
grupos que pretende representar, os crimes que se nega a condenar. Pois
ele a partir de agora será o responsável por receber e encaminhar
investigações de abusos que hoje evita reconhecer a gravidade.
Ao assumir a comissão de Direitos Humanos, Feliciano provocou, não por
acaso, um embaralhamento semântico com vistas a confundir noções como
“privilégio”, “perseguição”, “preconceito”, “minorias”. Essa confusão,
mais do que vídeos antigos e comprometedores sobre Arca de Noé e “câncer
gay”, escancara o paradoxo da sua escolha. Exemplo: quando o pastor diz
saber o que é ser discriminado e usa como exemplo a morte de um bebê na
barriga de sua mulher numa fila de hospital, coloca uma tragédia
pessoal, de alcance universal, na rota do preconceito. Confunde descaso
do poder público com perseguição; descaso é universal, perseguição é
específica. O fato de ser cristão e heterossexual, portanto, não teve a
menor influência no episódio, em si lamentável.
A lógica da perseguição, é bom que se lembre, opera em outro campo. Ela
não se manifesta apenas quando se estoura uma lâmpada no rosto de
pedestres supostamente vulgares; se manifesta também quando se
classifica, isso sim de forma autoritária, o que é ou não vulgar. É a
mola propulsora do discurso de ódio, manifestada, por exemplo, quando se
usa uma interpretação bíblica para impedir a ampliação de acesso a
direitos básicos. Em nome de quê? Da suposta proliferação da espécie? Da
busca pela moral familiar? Não: em nome da manutenção da ordem. Mais:
da manutenção do medo da desordem. Se pastores, padres e líderes
espirituais aceitarem que as pessoas podem viver em paz com quem
quiserem, se quiserem, da forma como quiserem (famílias monoparentais,
pais de mesmo sexo, solteiros por convicção), não terão mais o que fazer
nem discursar. Não há Céu sem a projeção do Inferno e não há
transcendência sem pecado. Sem o inimigo declarado, a arma contra o
inimigo perde seu valor de uso e de troca. O mercado apodrece. Para quem
se apoia no discurso do medo (medo do caos, medo da vulgaridade, medo
da decadência), a liberdade de quem aceita a dor e a delícia de ser o
que se é, para citar a música, é o maior dos infernos.
E isso não tem nada a ver com a fé.
Tem a ver, é bom repetir, com a manutenção da ordem: manda quem sempre
mandou, obedece quem sempre obedeceu. Ainda que a manutenção da ordem
seja propagada à base da confusão de conceitos. Destes, nenhum foi mais
maltratado em todo o episódio do que a ideia de luta pelo direito básico
de existir – que pouco tem a ver com o propalado privilégio
citado pelo pastor. À frente da comissão, o deputado Feliciano deveria
saber de antemão que direito básico não é gritar mais alto ou se
rebelar. É poder andar nas ruas como bem quiser e com quem quiser. Sem
que por isso, e não por outro motivo, chegar vivo em casa seja um mero
lance de sorte.
Matheus Pichonelli-CartaCapital
Matheus Pichonelli-CartaCapital
Do Blog O TERROR DO NORDESTE.
Nenhum comentário:
Postar um comentário