O anúncio de que o governo Dilma deve trazer seis mil médicos cubanos
para atuarem nas regiões Norte e Nordeste, feito pelo ministro Antonio
Patriota (Relações Exteriores), tem causado fortes reações, tanto dos
que apoiam a medida quanto dos que a rejeitam, num embate em que o peso
das paixões ideológicas - sempre abrasivas quando envolvem Cuba – com
frequência se sobrepõe à reflexão criteriosa.
Assim, no bojo da repercussão do anúncio de tais medidas, ao invés de um
debate de facto sobre o atual quadro geoeconômico da medicina no país,
assistiu-se, por um lado, a manifestações pobres em fatos mas ricas em
preconceitos contra o regime cubano e de inverdades contra seu
mundialmente reconhecido sistema de saúde; e, de outro, a um esforço
para impugnar o protesto de associações de médicos como "virulenta
reação" de uma "elite corporativista", numa demonstração de que a
desqualificação, tática-mór do jornalismo neocon, faz escola no debate público brasileiro, inclusive entre contendores que se apresentam como progressistas.
Narrativa reduciomista
Tais discussões exemplificam um processo que vem ocorrendo com uma
frequência preocupante no Brasil em relação ao debate de dilemas
específicos da área social: ao invés de se refletir acerca de soluções
efetivas, que levem em conta a concretude do problema em seus diversos
aspectos e procurem atender, na medida do possível, as demandas de todos
os atores sociais envolvidos, cria-se uma narrativa maniqueísta e
fortemente idealizada que, ignorando a complexidade de nosso atual
quadro social, tende, por alguns, a desqualificar a priori
qualquer iniciativa que não se amolde ao figurino do capitalismo
neoliberal vigente no último quarto de século; e, por outros, a opor uma
elite insensível e malvada ao resto da população, acrescentando a
crença ingênua de que o governo petista sempre ao lado desta se coloca,
com medidas invariavelmente corretas. O dogmatismo se sobrepondo à
razão.
A polêmica sobre a vinda dos médicos cubanos é exemplar nesse sentido.
Ante os protestos suscitados pelo anúncio da medida, criou-se uma
contra-narrativa que apela para uma generalização desmedida a qual tem
tipificado os médicos – tanto as dezenas de milhares de profissionais
anônimos que se recusam a ir trabalhar no Norte/Nordeste, quanto os que
se declaram contrários à vinda dos cubanos – como uma elite
preconceituosa e socialmente insensível, a qual a vinda redentora dos
idealistas e generosos médicos cubanos viria vingar.
Na internet e nas redes sociais, os fanáticos e ingênuos de plantão, que
se apresentam como pertencentes à esquerda, difundem essa falácia
diuturnamente, fingindo desconhecer que a situação dos médicos
brasileiros, em sua ampla maioria, é bem outra, submetidos a cursos
universitários de qualidade duvidosa e a um sistema de saúde que, tanto
em sua versão estatal quanto privatizada, os remunera mal e oferece
péssimas condições de trabalho, além de virtualmente nenhum estímulo à
necessária atualização em um campo do conhecimento que se renova
constantemente, com novas descobertas científicas e novos métodos e
processos de cura.
Problema crônico
O Norte e Nordeste brasileiro apresentam uma grande carência na área de
saúde, com um déficit de médicos e demais profissionais, em relação ao
Sul/Sudeste (que concentra 70% dos doutores), em dimensões ainda mais
pronunciadas do que as históricas assimetrias sócio-econômicas entre
tais regiões, as quais vêm sendo reduzidas em ritmo acelerado na última
década. Enquanto o Distrito Federal apresenta uma média de 4,02 médicos
por mil habitantes – seguida de 3,57 em São Paulo e 2,58 no Rio de
Janeiro -, em alguns estados da Amazônia Legal há um médico para cerca
de 1200 habitantes.
A dificuldade para atrair médicos para essas regiões é um problema
antigo e que se tem mostrado infeso às tímidas medidas até agora tomadas
para combatê-lo. Ela se origina já no estágio de formação do futuro
profissional, visto que pesquisas demostram
uma clara tendência do recém-formado em fixar-se em áreas próximas às
quais cursou a faculdade. Se vontade política houvesse e a intenção
fosse realmente trabalhar para resolver a questão , esse mal de origem
poderia ser combatido pelo governo com relativa facilidade, com o MEC
coibindo a concentração excessiva de cursos de Medicina no Sul/Sudeste e
os oferecendo em maior número nas regiões carentes de profissionais,
diretamente através das universidades federais ou de forma indireta,
estimulando sua oferta através do ProUni. Atualmente, os cursos de
medicina desovam anualmente 13 mil novos profissionais, dos quais menos
de 3000 vai trabalhar nos estados com carência de profissionais de
saúde.
Modelo híbrido
A essa questão formativa somam-se fatores estruturais, tais como a
lógica mercantilista e classista que caracteriza o modelo de saúde
brasileiro, mezzo público, mezzo privado; o atraso
estrutural da economia do Norte/Nordeste, o qual acaba por gerar
problemas eventualmente graves, que vão de falta de saneamento básico a
maior dificuldade de acesso a educação e bens culturais; além dos
efeitos do arraigado preconceito contra tais regiões no Sul e Sudeste, o
qual tende a perpetuar uma visão anacrônica que amplifica aspectos
negativos e subestima potencialidades.
Independentemente do mérito acerca da vinda dos médicos cubanos, o certo
é que, por sua própria natureza transitória, ela não se apresenta como
uma solução – ou sequer um encaminhamento de solução – para o caso, e
sim como um mero paliativo, destinado a durar alguns meses e a gerar
algum dividendo eleitoral, antes que a situação da saúde no Norte e
Nordeste volte a apresentar os crônicos problemas de sempre, cuja
solução o atual governo federal se comprometera a encaminhar à época das
eleições, antes que o ministério da Saúde passasse a oscilar,
esquizofrenicamente, entre o fortalecimento do SUS, a privatização do
sistema ou a improvisação emergencial que ora ameaça se tornar a regra.
Ameaça aos direitos trabalhistas
Porém, em termos trabalhistas, o precedente que a vinda dos médicos
cubanos abre é perigosíssimo. Se a moda pega, o governo – este ou os que
virão, eventualmente ainda mais conservadores - pode vir a resolver
importar contingentes de trabalhadores estrangeiros a cada crise
setorial, o que representaria uma séria ameaça aos direitos
trabalhistas, aos sindicatos, ao poder reivindicatório dos trabalhadores
e ao recurso legal à greve como forma de pressão.
Assim, a repercussão do caso dos médicos cubanos evidencia o altamente
contraditório apoio que tantos que se dizem de esquerda têm dado a uma
medida que é, na essência, profundamente antissindical e contrária aos
direitos trabalhistas - no caso, de uma classe que, embora goze de algum
status e prestígio social, está muito longe, no Brasil, de receber o
devido reconhecimento, seja em termos salariais ou de condições de
trabalho. É certo que chegamos em um ponto da história política
brasileira que muitos que se dizem de esquerda apoiam prvatizações e
medidas antitrabalhistas, mas imaginemos qual seria a reação desses
mesmos setores que hoje apoiam entusiasticamente a chegada dos médicos
cubanos se, no futuro, um governo conservador acabar com uma mobilização
de professores federais trazendo seus pares angolanos, moçambicanos ou
portugueses. Ou se, ante a carência de engenheiros em determinadas
regiões do país, o governo importar em massa profissionais de países
capitalistas em crise.
Além disso, é preciso atentar para um paradoxo tão curioso quanto
nocivo: o fato de que o governo brasileiro está, na prática, se valendo
da situação anômala a qual foi submetida a economia cubana (graças em
grande parte a um criminoso boicote ditado pelos EUA) – em que os
salários dos trabalhadores são simbólicos, se comparados aos padrões
internacionais, sendo complementados por cotas de alimentos e de roupas e
pelo acesso a um sistema de educação e de saúde de bom nível – para
suprir um problema geoeconômico de um país capitalista. Problema este
agravado pelo misto de falta de vontade política e incompetência
gerencial de um governo profundamente identificado com o consumismo
capitalista, o qual tem estimulado ao máximo, no altar do
desenvolvimentismo a todo custo, à revelia de ponderações écológicas,
éticas ou sociológicas.
Com a palavra, o ministro
Ante a forte reação contrária que a proposta suscitou entre a comunidade
médica e na mídia, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, fez divulgar
nota afirmando que, para além da vinda dos médicos cubanos, o governo
"continua analisando" medidas para a questão e formas de reverter a
distribuição assimétrica de profissionais de saúde no Norte/Nordeste em
relação às demais regiões do país.
Ora, o PT está no governo federal há mais de dez anos, não pode mais
agir como um neófito em fase de reconhecimento do terreno. Teve tempo
mais do que suficiente para analisar em detalhe um problema estrutural
antigo como o da distribuição de médicos no território nacional,
apresentar propostas e implementá-las. No entanto, além de não mover uma
palha para reconfigurar o panorama do ensino de medicina no país,
prefere, como tem feito em outras áreas, adotar a medida mais fácil e
menos custosa - mesmo porque temporária e meramente profilática -, ao
invés de buscar encaminhar um conjunto de decisões que vise solucionar
efetivamente o problema, o que necessariamente exigiria mais
investimento, mais tempo e mais supervisão, e não ofereceria as
facilidades marqueteiras que a trupe de médicos em forma de anunciada
panaceia proporciona.
Infelizmente, o adesismo cego tem feito com que blogueiros e colunistas
simpáticos ao governo - e lenientes com a recusa deste em promover os
avanços para os quais fora eleito - comprem acriticamente tais
estratégias eleitorais e as corroborem, seja difundindo-as, seja
procurando desqualificar os que as criticam, num processo inverso mas
idêntico ao que acusam a mídia corporativa de fazer contra o governo.
Maurício CaleiroNo Cinema & Outras Artes
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