Erro espantoso no mensalão
Paulo Moreira leite - ISTOÉ - Independente
Em reportagem que escrevi para Istoé desta semana, mostro que o
julgamento do mensalão incluiu uma acusação falsa contra o publicitário
Ramon Hollerbach, condenado a 29 anos de prisão - a segunda pena mais
alta, depois de Marcos Valério, que ficou com 40.
A acusação errada foi feita pelo relator Joaquim Barbosa. Ele acusou
Hollerbach de ter embolsado R$ 400 mil através de uma empresa que seria
de sua propriedade. Anunciada de modo repentino, como um trunfo na
manga, sem que o acusado nem seus advogados soubessem que ela seria
feita, a revelação-bomba ajudou a aquecer o julgamento.
É compreensível.
A noção de que um réu havia colocado tão grande volume de dinheiro no bolso envenenava toda alegação de inocência.
“Como é que você vai acreditar na inocência de um sujeito que recebeu propina?”, pergunta Hollerbach.
O problema é que tratava-se de uma acusação falsa. Confira aqui o vídeo que comprova isso.
O laudo 2828, em que o presidente do STF se baseou para fazer a
acusação, não estabelece a mais remota ligação entre Hollerbach e aquele
depósito. O nome do publicitário sequer é mencionado neste trecho e a
suposta empresa-fantasma, que seria de sua propriedade, é uma
tradicional produtora de marketing do Rio de Janeiro, a RSC,
abreviatura de Rio, Samba e Carnaval, com décadas de atuação na cidade.
Fornecedora da DNA, com contrato assinado, participou de campanhas
promocionais e, pelos serviços prestados, apresentou uma nota para
receber R$ 670 mil. Mas a DNA achou caro. Pagou R$ 400 mil. Em
março, no acórdão em que trouxe por escrito o voto que havia lido no
tribunal, Joaquim Barbosa deixou claro que reconhecia o erro. Suprimiu
as linhas em que se referia ao episódio. (Procurado pela revista para
comentar o caso, Joaquim disse, através de um assessor, que nada teria a
dizer.)
Do ponto de vista de Hollerbach, contudo, o estrago já foi feito.
Embora as referências à RSC constassem de um laudo assinado em 2007, a
acusação contra Hollerbach ficou ausente de todas as fases anteriores ao
julgamento, quando o réu poderia prestar esclarecimentos e dar
explicações.
O erro até seria evitado – desde que, é claro, houvesse disposição para escutar o que a outra parte tinha para dizer.
Feita de surpresa, a denúncia ganhou grande impacto no tribunal, até
porque, num primeiro momento, deixou a defesa desorientada.
“Cheguei a imaginar que meu cliente tivesse cometido o erro de me
esconder um fato desse tamanho” recorda Hermes Guerrero, advogado de
Ramon Hollerbach.
Apresentada na fase inicial do julgamento, quando os ministros testavam
os próprios argumentos e convicções, aquela denúncia errada contribuiu
para alinhar juízes experimentados com a acusação, pois mexia com
convicções profundas e legítimas.
Marco Aurélio Mello fez questão de mencionar o depósito – que não houve,
sabemos agora – para sustentar que o réu tinha “ciência” do que se
passava, elemento subjetivo indispensável para sustentar a culpa de um
acusado num crime dessa natureza.
Não basta, como se sabe, fazer a “coisa errada”. É preciso que o réu tenha consciência do que está fazendo.
E nada mais consciente do que dinheiro no banco, certo?
Minutos depois da acusação falsa, Hollerbach enviou um torpedo para seu
advogado, avisando que fora vítima de uma mentira. Disse que não
conhecia a empresa e não havia recebido aquele dinheiro.
Horas depois, um auxiliar da defesa, o advogado Estevam Ferreira de
Melo, redigiu e distribuiu a cada ministro um memorial prestando todos
os esclarecimentos sobre aquela denúncia.
Em seus votos, proferidos mais tarde, nenhum deles se referiu às informações do memorial.
Ironicamente, a descoberta de que a RSC existe e prestou serviços à DNA também ajuda a defesa a demonstrar outro ponto.
Contrariando a tese de que a agência apenas servia para desviar dinheiro
para o bolso dos petistas, o caso é um elemento a mais para mostrar que
a agência efetivamente prestava serviços para o Visanet e fez campanhas
de verdade.
Não é fácil explicar por que uma denúncia de tamanho impacto foi apresentada sem um indispensável esforço de checagem.
Você pode avaliar como quiser a motivação íntima de cada um dos envolvidos.
Muitas pessoas já criticaram Joaquim Barbosa por ter assumido uma
postura de promotor e não de juiz. O episódio reforça essa visão – com o
detalhe de que ele apresentou ao tribunal uma denúncia sem o devido
fundamento.
A impressão é que se acusava de qualquer maneira, sem a necessária
preocupação de encontrar provas – postura estranha ao bom funcionamento
da Justiça, ainda mais num tribunal, a mais alta corte do país, onde
decisões devem basear-se no equilíbrio e num conhecimento pleno dos
fatos.
Do ponto de vista da retórica jurídica, é impossível negar que essa
denúncia se encaixava perfeitamente no esforço para construir uma
história crível.
Apontar para um publicitário que recebe R$ 400 mil numa espécie de
empresa laranja ajuda a fazer o desenho de uma quadrilha formada por
pessoas sem escrúpulos.
Tudo o que se ouvir depois sobre este cidadão se torna verossímil, certo?
A facilidade exibida por juízes tão experientes para aceitar a versão de Joaquim sem questionar faz parte desse ambiente.
Embora o advogado Estevam tenha entregue um texto esclarecedor a cada um
deles, nenhum lhe deu a devida atenção, o que sugere que em muitos
casos havia uma convicção anterior, que permitia enxergar coisas que não
podiam existir – como realidades jurídicas – sem um exame mais
profundo.
Este é o problema.
Formou-se, ao longo dos anos, uma convicção prévia sobre o mensalão que
impede pessoas bem informadas e de boa fé de examinar cada denúncia de
forma isenta, num esforço para conhecer a verdade e debater os fatos – e
não as teses nem convicções ideológicas.
Claro que parte dessa dificuldade tem origem na cobertura da maioria dos
meios de comunicação, que não fez uma apuração isenta nem cuidadosa,
transformando o trabalho de jornalistas numa competição por escândalos
– agravada pela postura dos próprios acusados, que não foram capazes de
fazer a defesa devida, na hora certa, com argumentos que hoje mostram
muito mais consistência do que ontem e anteontem.
Quem se der ao trabalho de ler os jornais de dezembro de 2005, seis
meses depois que Roberto Jefferson fez sua denúncia, irá encontrar
declarações de advogados, empresários e políticos de oposição debatendo,
abertamente, a perspectiva de provocar um impeachment no governo Lula.
Na mesma época, 24 auditores encerravam uma investigação de 6 meses no
Banco do Brasil, destinada a apurar a denúncia de que havia ocorrido
desvio de dinheiro público através do contrato do Visanet com a agência
DNA. Num documento de 31 páginas, que resume um esforço muito maior, os
auditores concluem que os recursos do Visanet envolviam fundos privados,
que sequer transitaram pelo banco. Está lá, num documento oficial, com
clareza cristalina.
É um documento que, lido e examinado com cuidado, poderia ter mudado uma
história inteira. Joga luzes num ponto ao mesmo tempo central e obscuro
do debate. Confira abaixo:
Três anos depois, ouvido na Justiça, o auditor chefe da instituição
confirmou as conclusões e foi além. Disse que a auditoria havia
encontrado problemas de controle e prestação de contas, mas nada que
pudesse ser chamado de desvio.É fácil imaginar o que aconteceu com este documento. Foi pouco lido e pouco divulgado.
Oito anos depois, suas verdades são tão espantosas que nem todos conseguem acreditar no que leem – uma situação oposta à da denúncia contra Ramon Hollerbach, quando se acreditou naquilo que não existia.
Curioso, não?
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