A reserva de mercado beneficiou uma geração e agora castiga a outra.
No DCM
Os filhos de Roberto Marinho |
Um ditado que afirmavam ser muito citado por Tancredo Neves estabelece o seguinte: “A esperteza, quando é demais, come o dono”.
A frase se aplica às famílias que controlam as grandes empresas de
jornalismo do Brasil num momento especialmente dramático para elas.
Há uma troca de gerações, como se observou pela morte, com poucos dias de distância, de Ruy Mesquita e Roberto Civita.
O crescimento avassalador da internet tornará complicado gerir as
companhias que se tornaram gigantes sob circunstâncias completamente
diferentes.
Todo dia — melhor, todo segundo – diminui o número de leitores e o volume de anúncios.
Não há volta. No seriado The Office, passado numa empresa que vende
papel, uma das melhores piadas aparece quando um vendedor diz a outro,
diante das quedas constantes nas vendas: “A gente recupera quando a moda
da internet passar.”
Haverá uma transferência cada vez mais rápida de leitores, anunciantes,
verbas publicitárias e bons jornalistas rumo ao mundo digital.
Diante do cenário desanimador, é provável que muita gente, nas novas
gerações que controlam as grandes empresas jornalísticas, desejasse
simplesmente vender o negócio.
Você faz dinheiro e se livra, no ócio milionário, dos capítulos duros da agonia inevitável.
Seria uma alternativa excelente – não fosse a reserva de mercado que os
barões da mídia trataram de garantir para si próprios, num passado em
que nada fazia prever o surgimento da concorrência destruidora da
internet.
A reserva é assim. Os estrangeiros podem ter apenas 30% do capital das empresas brasileiras.
Não vou discutir aqui quanto isso agride as leis básicas de
concorrência capitalista pelas quais as empresas jornalísticas se batem
tanto exceto para elas mesmas.
Vou falar apenas da ironia que essa situação esdrúxula trouxe agora.
Se você não pode vender a compradores internacionais, e eles sim têm
recursos, está condenado a negociar com um universo bem menos opulento –
o dos compradores brasileiros.
Existe uma justiça poética, nisso, inegavelmente. Décadas depois, a
esperteza parece estar comendo as famílias que a usaram para promover a
reserva de mercado na mídia.
Porque ela, a reserva, só é, ou foi, boa para os acionistas, protegidos
de uma concorrência que haveria de resultar em produtos melhores para
os leitores e um mercado de trabalho mais pujante para os jornalistas.
Quanto ela é indefensável, você avalia por um artigo do novo ministro
do STF, Luís Barroso, escrito nos tempos em que ele era advogado da
associação que defende os interesses da Globo, a Abert.
No artigo, Barroso disse que a reserva tinha a virtude de preservar as
novelas, “patrimônio cultural brasileiro”, e evitar que Mao Tsetung
irrompesse nos lares brasileiros com sua pregação subversiva.
O ajuste de contas com a esperteza chegou primeiro para a mídia impressa, a vítima inicial da internet.
Mas logo chegará também ao reino da tevê: cada vez menos pessoas vêem
televisão, como se constata na generalizada queda de audiência da
Globo.
Tudo converge para a internet, e já se formou um consenso entre os estudiosos de que a televisão será a próxima vítima.
Marcas como a Netflix, o YouTube e a Amazon (que já anunciou que vai
produzir conteúdo de entretenimento) tomarão inexoravelmente o lugar de
marcas de outra era, como a Globo no Brasil.
A famosa grade da Globo morrerá com os consumidores que verão os programas quando quiserem, onde quiserem — e se quiserem.
E então o serviço da esperteza ficará completo. Quando os herdeiros dos
três filhos de Roberto Marinho eventualmente pensarem em vender um
negócio que vai valer cada vez menos e doer cada vez mais, vão topar com
o mesmo quadro que massacra hoje as esperanças vendedoras das novas
gerações das famílias da mídia impressa.
Paulo NogueiraNo DCM
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