Maior especialista contemporâneo em
movimentos sociais nascidos na internet, o sociólogo espanhol diz que a
condução da crise no Brasil mostra que há esperanças de se reconectar
instituições e cidadãos
PROTESTOS NA AMÉRICA LATINA
“Há um movimento estudantil forte no Chile, embriões
surgindo na Colômbia, no México e no Uruguai”, diz Castells
O sociólogo espanhol Manuel Castells, 68 anos, estava no Brasil
participando de uma série de conferências quando os protestos pela
redução das tarifas de ônibus começaram, ainda tímidos, em São Paulo.
Um dos maiores especialistas da atualidade em movimentos sociais na era
da internet, nem ele podia imaginar que o País todo seria tomado por
uma onda de passeatas que se transformaria na mais importante
manifestação política da sociedade brasileira em 20 anos. “Se querem
mudanças, não bastam somente as críticas na internet. É preciso
tornar-se visível, desafiar a ordem estabelecida e forçar um diálogo”,
afirma o sociólogo. Castells analisou outros movimentos semelhantes,
como a Primavera Árabe, o Occupy, nos Estados Unidos, os Indignados, na
Espanha, e agora também acompanha a defesa da Praça Taksim, na
Turquia. Com extenso e respeitado trabalho sobre o papel das novas
tecnologias de informação e comunicação, o sociólogo diz que a grande
força desses movimentos é a ausência de líderes e enxerga um
esgotamento do modelo atual de representatividade. Autor de 23 livros,
ele lança em breve “Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais
na Era da Internet” (Zahar Editora). Castells foi professor da
Universiade de Berkeley, na Califórnia, por 24 anos. Atualmente, vive em
Barcelona, na Espanha, de onde falou à ISTOÉ por e-mail, e é professor
da Universidade Aberta da Catalunha e da Universidade do Sul da
Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos.
“As críticas de José Serra (às iniciativas de Dilma) são típicas da
incompreensão dos políticos sobre o direito das pessoas de decidir”
incompreensão dos políticos sobre o direito das pessoas de decidir”
“A grande força desses movimentos é que eles
são espontâneos, livres, uma celebração da liberdade.
O Occupy deixou novos valores para os americanos”
Fotos: Marcelo Justo/Folhapress; EPITáCIO PESSOA/AE; Stan HONDA/afp
Istoé -
O sr. estava no Brasil quando
ocorreram os primeiros protestos em São Paulo. Podia imaginar que eles
tomariam essa proporção?
Manuel Castells -
Ninguém podia. Mas o que eu imaginava, e pesquisei durante vários
anos, é que a crise de legitimidade política e a capacidade de se
comunicar através da internet e de dispositivos móveis levam à
possibilidade de que surjam movimentos sociais espontâneos a qualquer
momento e em qualquer lugar. Porque razões para indignação existem em
todos os lugares.
Istoé -
O Brasil reduziu muito a
desigualdade social nos últimos anos e tem pleno emprego. Como explicar
tamanho descontentamento?
Manuel Castells -
A juventude em São Paulo foi explícita: “Não é só sobre centavos, é
sobre os nossos direitos.” É um grito de “basta!” contra a corrupção,
arrogância, e às vezes a brutalidade dos políticos e sua polícia.
Istoé -
Faz sentido continuar nas ruas se
os problemas da saúde e da educação não podem ser resolvidos
rapidamente, como o das passagens de ônibus?
Manuel Castells -
Em primeiro lugar, o movimento quer transporte gratuito, pois afirma
que o direito à mobilidade é um direito universal. Os problemas de
transporte que tornam a vida nas cidades uma desgraça são consequência
da especulação imobiliária, que constrói o município irracionalmente, e
de planejamento local ruim, por causa da subserviência dos prefeitos e
suas equipes aos interesses do mercado imobiliário, não dos cidadãos.
Além disso, por causa da mobilização, a presidenta Dilma Rousseff
também está propondo novos investimentos em saúde e educação. Como leva
muito tempo para obter resultados, é hora de começar rapidamente.
Istoé -
A presidenta Dilma agiu
corretamente ao falar na tevê à nação, convocar reuniões com
governadores, prefeitos e manifestantes para propor um pacto?
Manuel Castells -
Com certeza, ela é a primeira líder mundial que presta atenção, que
ouve as demandas de pessoas nas ruas. Ela mostrou que é uma verdadeira
democrata, mas ela está sendo esfaqueada pelas costas por políticos
tradicionais. As declarações de José Serra (o ex-governador tucano
criticou as iniciativas anunciadas pela presidenta) são típicas de falta
de prestação de contas dos políticos e da incompreensão deles sobre o
direito das pessoas de decidir. Os cargos políticos não são de
propriedade de políticos. Eles são pagos pelos cidadãos que os elegem. E
os cidadãos vão se lembrar de quem disse o quê nesta crise quando a
eleição chegar.
Istoé - Como comparar o movimento brasileiro com os que ocorreram no resto do mundo?
Manuel Castells -
Houve milhões de pessoas protestando dessa forma durante semanas e
meses em países de todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais
de mil cidades foram ocupadas entre setembro de 2011 e março de 2012. A
diferença no Brasil é que uma presidenta democrática como Dilma
Rousseff e um punhado de políticos verdadeiramente democráticos, como
Marina Silva, estão aceitando o direito dos cidadãos de se expressar
fora dos canais burocráticos controlados. Esse é o verdadeiro
significado do movimento brasileiro: ele mostra que ainda há esperança
de se reconectar instituições e cidadãos, se houver boa vontade de
ambos os lados.
Istoé - O que é determinante para o sucesso desses movimentos convocados pela internet?
Manuel Castells -
Que as demandas ressoem para um grande número de pessoas, que não haja
políticos envolvidos e que não haja líderes manipulando. Pessoas que
se sentem fortes apoiam umas às outras como redes de indivíduos, não
como massas que seguem qualquer bandeira. Cada um é seu próprio
movimento. A brutalidade policial também ajuda a espalhar o movimento
através de imagens na internet difundidas por telefones celulares.
Istoé -
Por que tantos protestos acabam em
saques e depredações? Como evitar que marginais se aproveitem do
movimento?
Manuel Castells -
Há violência e vandalismo na sociedade. É impossível preveni-los,
embora os movimentos em toda parte tentem controlá-los porque eles
sabem que a violência é a força mais destrutiva de um movimento social.
Às vezes, em alguns países, provocadores apoiados pela polícia criam a
violência para deslegitimar o movimento.
Istoé - Como a polícia deve agir?
Manuel Castells -
Intervir de forma seletiva, com cuidado, profissionalmente, apenas
contra os provocadores e os grupos violentos. Nunca, nunca disparar
armas letais, e se conter para não bater indiscriminadamente em
manifestantes pacíficos. A polícia é uma das razões pelas quais as
pessoas protestam.
Istoé - A ausência de líderes enfraquece o movimento?
Manuel Castells - Pelo contrário, este é o vigor do movimento. Todo mundo é o seu próprio líder.
Istoé - Mas isso não inviabiliza a negociação com a elite política?
Manuel Castells - Não, a prova disso é que a presidenta Dilma Rousseff se reuniu com alguns representantes do movimento.
Istoé - Qual é a grande força e a grande fraqueza desses movimentos?
Manuel Castells -
A grande força é que eles são espontâneos, livres, festivos, é uma
celebração da liberdade. A fraqueza não é deles, a fraqueza são a
estupidez e a arrogância da classe política que é insensível às
demandas autônomas de cidadãos.
Istoé -
No Brasil, partidos políticos
foram banidos das manifestações e há quem enxergue nisso o perigo de um
golpe. Faz sentido essa preocupação?
Manuel Castells - Não há perigo de um golpe de Estado. Os corruptos e antidemocráticos já estão no poder: eles são a classe política.
Istoé - Como resolver a crise de representatividade da classe política?
Manuel Castells -
Com reforma política, com uma Assembleia Constituinte e um referendo. A
presidenta Dilma Rousseff está absolutamente certa, mas, nesse
sentido, ela será destruída por sua própria base.
Istoé -
Essas manifestações articuladas
através das redes sociais demandam uma nova forma de participação dos
cidadãos nos processos de decisão do Estado? Qual?
Manuel Castells - Sim, esta é a nova forma de participação política emergente em toda parte. Analisei este mundo em meu livro mais recente.
Istoé - O que há em comum entre os movimentos sociais contemporâneos?
Manuel Castells -
Redes na internet, presença no espaço urbano, ausência de liderança,
autonomia, ausência de temor, além de abrangência de toda a sociedade e
não apenas um grupo. Em grande parte os movimentos são liderados pela
juventude e estão à procura de uma nova democracia.
Istoé - O movimento Occupy, nos EUA, foi derrotado pela chegada do inverno. Que legado deixou?
Manuel Castells - Deixou novos valores, uma nova consciência para a maioria dos americanos.
Istoé - Os Indignados espanhóis conseguiram alguma vitória?
Manuel Castells -
Muitas vitórias, especialmente em matéria de direito de hipoteca e
despejos de habitação e uma nova compreensão completa da democracia na
maioria da população.
Istoé - Que paralelos o sr. vê entre o movimento turco e o brasileiro?
Manuel Castells -
São muito similares. São igualmente poderosos, mas a Turquia tem um
primeiro-ministro fundamentalista islâmico semifascista e o Brasil, uma
presidenta verdadeiramente democrática. Isso faz toda a diferença.
Istoé - Acredita que essa onda de protestos se espalhará para outros países da América Latina?
Manuel Castells - Há um movimento estudantil forte no Chile, e embriões surgindo na Colômbia, no México e no Uruguai.
Istoé - Países que controlam a internet, como a China, estão livres dessas manifestações?
Manuel Castells -
Não, isso é um erro da imprensa ocidental. Há muitas manifestações na
China, também organizadas na internet, como a da cidade de Guangzhou
(no sul do país), em janeiro passado, pela liberdade de imprensa (o
editorial de um jornal foi censurado e isso motivou as primeiras
manifestações pela liberdade de expressão na China em décadas. Pelo
menos 12 pessoas foram detidas, acusadas de subversão).
Istoé - Como o sr. vê o futuro?
Manuel Castells -
Eu não gosto de falar sobre o futuro, mas acredito que ele será mais
brilhante agora porque as sociedades estão despertando através desses
movimentos sociais em rede.
No IstoÉ
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