Paulo Moreira Leite
Quem reside em regiões pobres e carentes é a favor da contratação de médicos estrangeiros.
Pesquisa do DataFolha mostra aquilo que todos poderiam adivinhar. A aprovação e rejeição ao projeto de trazer médicos estrangeiros obedece a um critério básico.
Quem reside em regiões pobres e carentes é a favor da contratação de médicos estrangeiros.
Quem se encontra do outro lado da pirâmide é contra.
No fundo, se há alguma revelação espantosa no levantamento, ela diz
respeito ao egoísmo das classes que se situam nos patamares superiores
da pirâmide. Segundo o DataFolha, a turma que é contra a importação de
médicos leva uma vantagem de 2 pontos sobre aqueles que são a favor.
Os dados objetivos mostram que o país tem a metade dos médicos que
uma nação civilizada necessita. Não há o que discutir, não é preciso
investigar nem apurar mais. O ponto básico é: faltam médicos. Mesmo que
todos eles resolvessem, de uma hora para outra, ocupar os postos
existentes, na periferia violenta de São Paulo e no interior da
Amazônia, no Piauí e no sertão da Bahia, ainda assim a população não
estaria bem atendida.
A experiência mostra que outros países conseguiram resolver o
problema abrindo o mercado para profissionais estrangeiros. Na Europa e
nos Estados Unidos, a parcela de médicos estrangeiros passa dos 20% e
muitas vezes supera 30%.
Voltando à pesquisa de opinião.
No levantamento, aprendemos o seguinte. Uma maioria de pessoas que
tem um doutor ao alcance do plano de saúde ou, quando o serviço
particular fica travado, da conta bancária, não consegue reconhecer a
necessidade urgente de quem não tem uma coisa nem outra. Não estamos
falando de aeroportos lotados, de transito insuportável, da PEC das
Domésticas. O assunto é de vida ou morte -- literalmente.
Eles defendem o direito à própria vida e de suas famílias, muitas
vezes com muito sacrifício, sem dúvida, mas não conseguem compreender as
necessidades de quem não dispõe do mesmo conforto.
Também enxergo, nessa postura, um elemento de xenofobia, aquela
reação irracional e preconceituosa contra estrangeiros – que muitos
brasileiros já enfrentaram em suas imigrações pela Europa e Estados
Unidos, e podem estar manifestando agora, quando se encontram do outro
lado do balcão.
Compreendo que essa lógica é causa e efeito de um mundo de valores privados e responsabilidades que foram individualizadas.
O sujeito que compra por um serviço que um outro pode obter de
graça sente-se tratado injustamente, e até prejudicado. Compreende-se a
razão material desse sentimento: o Estado brasileiro cobra, em impostos,
muito mais do que retribui.
É uma situação lamentável, que só pode ser enfrentada com uma
ampliação do Estado de Bem Estar Social, capaz de oferecer serviços bons
para todos – inclusive para a classe média.
Neste momento, eu imaginava, honestamente, que num terreno tão
delicado, onde a presença de um médico pode representar a fronteira
entre a vida e a morte, da própria pessoa, ou de seus parentes, muitas
vezes de seus filhos, seria possível encontrar espaço para uma
solidariedade um pouquinho maior.
Obrigar as pessoas carentes a pagar pela própria carência é como
responsabilizar doentes pela própria doença, pobres pela pobreza, os
órfãos pelo abandono dos pais e assim por diante.
Claro que tem gente que pensa assim. Margareth Thatcher, por
exemplo, formulou essa ideologia de forma crua quando disse que não
existe essa “coisa que chamam de sociedade.” Existe o quê? Os
indivíduos, as famílias. Um de seus autores preferidos, Adam Smith,
dizia que o progresso da humanidade é produto da soma dos egoísmos
individuais.
Mas essa é a Turma dos Outros que se danem Futebol Clube, como se dizia em teatros de vanguarda dos anos 1960.
Deixando de lado patologias desse tipo, que dificultam o simples
convívio social entre pessoas e classes sociais diferentes, com
necessidades diferentes, acredito que o cidadão que nasceu no lado mais
confortável da pirâmide não precisa achar ruim quando o Estado reserva
uma parcela de recursos para auxiliar os mais fracos e mais
prejudicados. A diminuição da desigualdade é benéfica para todos, ainda
que muitas pessoas fiquem incomodadas quando sentem que sua posição na
hierarquia social tornou-se menos valorizada.
Quem frequenta as excelentes casas de chouriço argentino de São
Paulo não deveria ficar revoltado porque, de vez em quando, as crianças
da merenda escolar da rede pública consomem caldo de carne em suas
refeições, certo?
Quem tem um carro para cada membro da família não precisa reclamar dos com subsídios para o transporte público, certo?
Não faltam notícias periódicas sobre as mazelas da saúde pública,
que concluem com uma revelação monótona: o médico responsável não
apareceu no plantão – ou que estava tão atarefado que deixou pacientes
graves em macas pelo corredor.
É claro que quase sempre se individualiza o problema e o
comportamento de cada um, como se fossem, invariavelmente, casos
isolados de delinquência, preguiça ou, como está na moda, de deficiência
“na gestão.”
É sempre conveniente transformar os dramas sociais numa narrativa de mocinhos e bandidos, certo?
(Nos diagnósticos de “gestão”, abre-se o caminho para grandes consultorias privadas. Você entende, né?)
Qualquer cidadão que se der ao trabalho – por exercício cívico – de
visitar o posto de saúde de seu bairro, experiência que recomendo
vivamente, irá entender que os fatores decisivos estão além da
responsabilidade de cada indivíduo. Não faltam apenas médicos. Faltam
remédios, equipamentos de exame e também outros profissionais. Surpresa:
muito provavelmente, vamos encontrar pessoas que fazem o que podem – e
até o que não podem – para assegurar um atendimento decente. Nem sempre
dá, é claro. Mas eles tentam.
Claro que a saúde pública só atingirá um patamar decente, capaz de
atender cidadãos necessitados e também aqueles que já pagam pelo
atendimento com seus impostos, a partir de muitos investimentos e
melhorias.
Mas o debate sobre os médicos estrangeiros envolve o protagonista, o
artista do filme. Fingir que a presença de um médico não é o fator
principal na melhora imediata da saúde numa rua, num bairro, ou mesmo
numa cidade, e, no fim das contas, do país, é como imaginar uma partida
de futebol com estádio, um bom gramados, juízes excelentes, gandulas
treinadíssimos – mas sem os jogadores.
Quem viu a espetacular vitória brasileira, ontem, no Maracanã, sabe do que estamos falando.
O debate sobre médicos estrangeiros envolve o direito de pobres e ricos de usufruir da própria vida.
Paulo Moreira Leite. Desde janeiro de 2013, é diretor da
ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA,
correspondente em Paris e em Washington. É autor dos livros A Mulher que
era o General da Casa e O Outro Lado do Mensalão.
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