Iriny Lopes
Ministra rebate a máxima de Nelson Rodrigues, considera o
País machista, diz que não é certo mulher falar com homem só se estiver
de calcinha e sutiã e avisa: reagirá a outros comerciais como o de
Gisele Bündchen
Istoé - Por que a sra. decidiu censurar o comercial de lingerie, estrelado por Gisele Bündchen?
IRINY ENSINA Ministra diz que publicidade tem que ser do produto, não da mulher |
Militante dos
direitos civis e fundadora do PT no Espírito Santo, a ministra da
Secretaria de Políticas para as Mulheres, Iriny Lopes, enfrentou
momentos difíceis em seus 58 anos de vida. Ao combater a corrupção e o
crime organizado em seu Estado, foi ameaçada de morte e passou cinco
anos sob proteção da Polícia Federal. Agora, no cargo de ministra de um
governo encabeçado por uma mulher, Iriny está envolvida numa nova frente
de batalha. Ela tornou-se alvo de uma saraivada de críticas e virou
tema para humoristas ao mexer num vespeiro. A ministra pediu ao Conselho
Nacional de Autorregulamentação Publicitária que tire do ar o comercial
“Hope ensina”, no qual a supermodelo Gisele Bündchen aparece como a
esposa que se despe e fica apenas de calcinha e sutiã para diminuir a
reação do marido diante de uma má notícia. Iriny considera a campanha
“sexista” e preconceituosa: “Induz à compreensão equivocada de que as
mulheres precisam do corpo como instrumento, em primeiro, segundo e
terceiro lugar, para se impor.” Foi acusada, porém, de excesso moralista
e falta de humor. A atitude da ministra foi entendida como um ato de
censura, nos moldes da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que,
em nome do politicamente correto, tentou censurar Monteiro Lobato por
considerá-lo racista. Seguindo essa linha, a obra de Nelson Rodrigues,
considerado um machista radical, também poderia ser censurada? “Nelson
Rodrigues já morreu”, respondeu a ministra. Convicta de que “o Brasil
ainda é bastante machista”, Iriny diz em entrevista exclusiva à ISTOÉ
que não tem o menor constrangimento em evitar a veiculação de peças que
explorem a imagem da mulher. “Sempre vamos reagir ao exagero”, afirma.
"Na novela "Fina Estampa", a personagem de Dira Paes apanhava muito no começo. Agora, a Globo deu um tempo" |
"E se a mulher for baixinha? Gordinha? A propaganda estrelada pela Gisele é preconceituosa. Estimula a ideia de que precisa estar erotizada" |
Iriny Lopes -
Não cabe a palavra censura nesse caso. Cabe responsabilidade social.
Não temos uma visão moralista nem somos contrárias à publicidade de
calcinha e sutiã. Todas nós usamos calcinha e sutiã e gostamos de peças
bonitas e benfeitas. O problema é a indução de subalternidade. O
comercial dá a entender que a mulher, para se proteger de alguma reação
mais agressiva por parte do companheiro, precisa de uma imagem
erotizada. Ela poderia conversar sobre aquele assunto vestida.
Istoé - Não é uma reação exagerada? A secretaria não está vendo problemas que não existem?
Iriny Lopes -
Na minha opinião, não. Dentro do Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres, nós temos um eixo muito importante que é a questão do uso da
imagem. Temos também uma ouvidoria, para tomar procedimentos que
considerem cabíveis. E há o Conar (Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária), que não pertence ao governo. A
publicidade tem regras e parâmetros. Na nossa opinião e na das pessoas
que enviaram suas mensagens solicitando que a secretaria tomasse
providências, há um conteúdo sexista na publicidade e cabe ao conselho
analisar e tomar uma decisão. É legítimo, o Conar serve para isso.
Istoé
- A sra. reclama da exposição da mulher de forma subalterna, mas a
própria Gisele já protagonizou outra propaganda em que aparece limpando o
chão, enquanto o marido a troca pela tevê por assinatura. Naquele caso,
a secretaria não se manifestou. Por quê?
Iriny Lopes -
Também não consideramos aquela uma propaganda adequada à valorização da
imagem da mulher. Mas a nossa ouvidoria não foi provocada.
Istoé
- Sobram exemplos em que a mulher é usada como símbolo sexual. As
propagandas de cerveja estão cheias dessas citações. A secretaria
pretende tomar alguma medida?
Iriny Lopes -
Sempre vamos reagir ao exagero. Nós suspendemos o comercial de milhões
da Devassa no Carnaval do ano passado. O caso da Hope não foi a primeira
vez. Não foi nem será o último caso.
Istoé - Quais os cuidados que as agências de publicidade devem tomar a partir de agora para não entrar na mira da secretaria?
Iriny Lopes -
A publicidade é do produto, não da mulher. A Hope poderia ter feito
outro tipo de exibição durante o comercial da Gisele. Mostrado as peças
que queria comercializar, por exemplo. O problema é o conteúdo de certo e
errado, que induz à compreensão equivocada de que as mulheres precisam
do corpo como instrumento, em primeiro, segundo e terceiro lugar, para
se impor. E que a erotização pode reduzir uma reação mais violenta.
Istoé - Nesse ritmo, as novelas vão acabar fora do ar...
Iriny Lopes -
Acredito no diálogo. Nós entramos em contato com as redes de televisão
para expressar tanto o nosso agrado quanto o desagrado. Nós tivemos
novelas que trataram da violência praticada contra a mulher. Mostraram o
problema e como enfrentá-lo. É uma contribuição. Na semana passada,
liguei para a Ana Maria Braga para parabenizá-la por uma matéria sobre
agressão, com base na novela. Também já fizemos contatos mais de uma vez
solicitando alteração, dialogando no sentido de mudar o perfil de
personagens que tinham características sexistas, sem contraponto na
novela. Com o contraponto é o mundo real: há pessoas pacíficas e outras
violentas.
Istoé - E a sra. teve sucesso?
Iriny Lopes -
Recentemente, me reuni com a Globo. Na novela “Fina Estampa”, que está
no ar, a personagem de Dira Paes apanhava muito no começo. Agora, eles
deram um tempo. Não queremos ocultar o fato, mas é preciso mostrar que a
mulher pode reagir, que há políticas públicas, organismos públicos e
grupos de ajuda que ela pode procurar. No aniversário de cinco anos da
Lei Maria da Penha, nós recuperamos a personagem Raquel, vivida pela
atriz Helena Ranaldi em “Mulheres Apaixonadas”, que passou em 2003. Ela
apanhava do marido com uma raquete de tênis. Agora, numa publicidade
toda voltada para a Lei Maria da Penha, Helena Ranaldi estimulou
mulheres a buscar seus direitos. Nós temos um histórico de diálogo.
Istoé
- Mas há que se ter sensibilidade para separar a violência de peças
publicitárias bem-humoradas, brincalhonas. Vinícius de Moraes, por
exemplo, dizia: “As muito feias que me perdoem. Mas beleza é
fundamental.” O que a sra. considera aceitável?
Iriny Lopes -
Veja bem, o que pesa para nós não é se a modelo é bonita ou feia. O que
não está certo é falar com um homem só se estiver de calcinha e sutiã. E
se a mulher for baixinha? Gordinha? A propaganda estrelada pela Gisele é
preconceituosa, pretende ser bem-humorada, mas estimula nas próprias
mulheres a ideia de que precisa estar erotizada para superar, ganhar ou
neutraliar uma reação negativa. Ali manifesta uma opinião de conteúdo a
respeito de como as mulheres devem se portar. Essa é a essência do
debate que gostaríamos de ter travado, mas não houve oportunidade.
Istoé
- Alguns críticos mais exaltados disseram que a sra. teria agido por
uma reação feminina de inveja à beleza da Gisele Bündchen.
Iriny Lopes -
Eu acho isso uma baixaria. Ter opinião diferente faz parte do processo
democrático. Censura é pensar que ninguém pode pensar ou agir diferente
do que a gente pensa. O ataque à minha pessoa vem de pessoas
despreparadas para o debate democrático.
Istoé - A sra. sempre foi uma militante feminista?
Iriny Lopes -
Na verdade, sempre militei na área de direitos humanos. Sou uma mulher
que passou por muitos desafios, porque a vida política e a vida pública
impõem esses desafios. Sinto bem na pele o que tive de enfrentar para
vencer, para dirigir um partido, para conquistar três mandatos de
deputada federal. Como militante e dirigente de organizações de direitos
humanos, quantas vezes tive que sair de casa para atender casos de
mulheres que iriam ser esfaqueadas, mortas. E eu, de madrugada, tinha
que bater na porta de juiz, pedir medida protetiva com urgência. Eu
conheço de perto esses dramas.
Istoé
- No ano passado, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
considerou Monteiro Lobato racista, a ponto de tentar barrá-lo nas
escolas públicas. O que será de Nelson Rodrigues, se depender da
Secretaria de Políticas para as Mulheres?
Iriny Lopes -
O debate sobre Nelson Rodrigues já está posto na sociedade. Se Nelson
Rodrigues estava certo, se estava errado. Mas ao fim e ao cabo acabamos
na mesmíssima situação: qualquer decisão sobre a publicidade com viés
machista compete ao Conar.
Istoé - Então a obra de Nelson Rodrigues será submetida ao Conar?
Iriny Lopes -
Nelson Rodrigues já morreu. A obra dele está aí, feita e refeita. Com
releitura, sem releitura. Mas nenhuma “mulher gosta de apanhar”
(referência à célebre frase do escritor: “Toda mulher gosta de apanhar.
Todas não, só as normais”). Nem hoje nem naquela época. Mas, naquela
época, as mulheres não tinham voz suficiente para dizer: “Eu não gosto
de apanhar.” Ninguém gosta de apanhar, e por que a mulher gostaria?
Istoé - Essa polêmica toda em relação à propaganda é positiva?
Iriny Lopes -
As mulheres se organizaram e conquistaram mais direitos. Já são maioria
na população, embora ainda não estejamos no ponto de igualdade que
achamos que as mulheres precisam estar. Não existiam tempos atrás
organizações de mulheres ou feministas.
Istoé
- Mas causa estranheza que a secretaria não tenha se manifestado com
tanta veemência no caso das adolescentes trancafiadas nos presídios
masculinos no Pará.
Iriny Lopes -
Claro que nos manifestamos. Deslocamos pessoas para o Pará, conversamos
e tratamos com o sistema de segurança e com a Justiça local nos dois
casos. Essas ações não viraram notícia. As pessoas deveriam prestar um
pouco mais de atenção em tudo o que a gente faz.
Istoé
- Os dois assassinatos em Brasília foram executados por homens que não
aceitaram o rompimento da relação. Nos últimos 20 anos, houve um avanço
surpreendente das mulheres. O que acontece? O homem brasileiro não
conseguiu acompanhar essa evolução?
Iriny Lopes -
O Brasil é muito conservador e tem o hábito de colocar muita coisa
embaixo do tapete. Não é um problema só do homem. É universal. Questões
como essa deveriam ser discutidas nas escolas e pela imprensa, mas longe
do calor do homicídio. Todos com ódio do homem e pena da mulher ou
pensando: “Alguma coisa ela fez.” Como ocorre no caso de mulheres ao
depor nas delegacias: “Minha filha, você não apanhou à toa, alguma coisa
você fez.” E se fez? A mulher merece apanhar? Claro que não. Pelo
momento bom de crescimento que o País está vivendo, pelo acesso ao
conhecimento e à informação, a agilidade na mudança cultural poderia ser
muito maior. Mas o Brasil ainda é bastante machista.
Istoé - Em quanto tempo a sra. calcula que a Secretaria de Políticas para as Mulheres deixará de existir?
Iriny Lopes - Quando a delegacia da mulher virar peça de museu.
Adriana Nicacio e Octávio Costa
Do IstoÉ
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