Portugal
ruma para o subdesenvolvimento. Como é possível que as forças políticas
não se perguntem por que é que o FMI, apesar de ter sido criado para
regular as contas dos países subdesenvolvidos, tenha sido expulso de
quase todos eles e os seus créditos se confinem hoje à Europa.
Está
em curso o processo de subdesenvolvimento do país. As medidas que
anunciam, longe de serem transitórias, são estruturantes e os seus
efeitos vão sentir-se por décadas. As crises criam oportunidades para
redistribuir riqueza. Consoante as forças políticas que as controlam, a
redistribuição irá num sentido ou noutro. Imaginemos que a redução de
15% do rendimento aplicada aos funcionários públicos, por via do corte
dos subsídios de Natal e de férias, era aplicada às grandes fortunas, a
Américo Amorim, Alexandre Soares dos Santos, Belmiro de Azevedo,
Famílias Mello, etc. Recolher-se-ia muito mais dinheiro e afetar-se-ia
imensamente menos o bem-estar dos portugueses. À partida, a invocação de
uma emergência nacional aponta para sacrifícios extraordinários que
devem ser impostos aos que estão em melhores condições de os suportar.
Por
isso se convocam os jovens para a guerra, e não os velhos. Não estariam
os super-ricos em melhores condições de responder à emergência
nacional?
Esta é uma das
perplexidades que leva os indignados a manifestarem-se nas ruas. Mas há
muito mais. Perguntam-se muitos cidadãos: as medidas de austeridade vão
dar resultado e permitir ver luz ao fundo do túnel daqui a dois anos?
Suspeitam que não porque, para além de irem conhecendo a tragédia grega,
vão sabendo que as receitas do FMI, agora adotadas pela UE, não deram
resultado em nenhum país em que foram aplicadas – do México à Tanzânia,
da Indonésia à Argentina, do Brasil ao Equador – e terminaram sempre em
desobediência e desastre social e econômico. Quanto mais cedo a
desobediência, menor o desastre.
Em
todos estes países foi sempre usado o argumento do desvio das contas
superior ao previsto para justificar cortes mais drásticos. Como é
possível que as forças políticas não saibam isto e não se perguntem por
que é que o FMI, apesar de ter sido criado para regular as contas dos
países subdesenvolvidos, tenha sido expulso de quase todos eles e os
seus créditos se confinem hoje à Europa. Por que a cegueira do FMI e por
que é que a UE a segue cegamente? O FMI é um clube de credores dominado
por meia dúzia de instituições financeiras, à frente das quais a
Goldman Sachs, que pretendem manter os países endividados a fim de
poderem extorquir deles as suas riquezas e de fazê-lo nas melhores
condições, sob a forma de pagamento de juros extorsionários e das
privatizações das empresas públicas vendidas sob pressão a preços de
saldo, empresas que acabam por cair nas mãos das multinacionais que
atuam na sombra do FMI. Assim, a privatização da água pode cair nas mãos
de uma subsidiária da Bechtel (tal como aconteceu em Cochabamba após a
intervenção do FMI na Bolívia), e destinos semelhantes terão a
privatização da TAP, dos Correios ou da RTP.
O
back-office do FMI são os representantes de multinacionais que, quais
abutres, esperam que as presas lhes caiam nas mãos. Como há que tirar
lições mesmo do mais lúgubre evento, os europeus do sul suspeitam hoje,
por dura experiência, quanta pilhagem não terão sofrido os países ditos
do Terceiro Mundo sob a cruel fachada da ajuda ao desenvolvimento.
Mas
a maior perplexidade dos cidadãos indignados reside na pergunta: que
democracia é esta que transforma um ato de rendição numa afirmação
dramática de coragem em nome do bem comum? É uma democracia
pós-institucional, quer porque quem controla as instituições as subverte
(instituições criadas para obedecer aos cidadãos passam a obedecer a
banqueiros e mercados), quer porque os cidadãos vão reconhecendo, à
medida que passam da resignação e do choque à indignação e à revolta,
que esta forma de democracia partidocrática está esgotada e deve ser
substituída por uma outra mais deliberativa e participativa, com
partidos mas pós-partidária, que blinde o Estado contra os mercados, e
os cidadãos, contra o autoritarismo estatal e não estatal. Está aberto
um novo processo constituinte. A reivindicação de uma nova Assembléia
Constituinte, com forte participação popular, não deverá tardar.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
No Carta Maior
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