Joaquim Ernesto Palhares (*)
(*) Diretor de Redação de Carta Maior
A ninguém mais é dado o direito de supor que o colapso da ordem
neoliberal conduzirá, mecanicamente, à redenção da esfera pública na
vida da sociedade. O que se verifica em muitos países, sobretudo na
Europa, é que o pior pode acontecer. A imensa reconstrução a ser
enfrentada ainda espera por seus protagonistas históricos. Em muitos
casos, sequer existe o que recuperar. A crise realçou carências antigas;
respostas nunca antes contempladas de fato, aguardam uma equação
inovadora.
Esse é o caso, por exemplo da democratização da mídia. Em São Paulo,
nesse momento, o esfarelamento da TV Cultura, uma emissora pública que
nunca assumiu integralmente a sua vocação, é uma referência dos desafios
a superar.
A exceção de um pequeno hiato nos anos 80, quando, inclusive, alcançou
índices de audiência de até 14 pontos, a televisão pública paulista teve
seus objetivos desvirtuados pela asfixia, ora financeira, ora política.
Ou, como acontece agora, espremidos pelo duplo torniquete de
constrangimentos institucionais e econômicos.
Dela pode-se dizer que até hoje não superou uma crise de identidade que
conduz a permanente oscilação entre ser um canal estatal, um veículo
público ou um arremedo amesquinhado de emissora comercial.
A longa agonia da TV Cultura de São Paulo está longe de ser um problema
apenas financeiro, como se alardeia, e menos ainda de natureza técnica.
Nichos de qualidade indiscutível comprovaram a capacidade dos
profissionais que ali passaram de gerar uma programação diferenciada,
irretocável competência. Suas raízes são políticas, agravadas pelo peso
de uma agenda histórica que hoje definha. Aqueles que decretaram a
irrelevância da esfera pública na construção da sociedade brasileira e
de seu desenvolvimento não poderiam jamais ter um projeto coerente de
emissora de televisão, voltada para os interesses gerais da cidadania.
Esse é o cerne da montanha-russa vivida pela TV pública paulista nas
últimas décadas. Ele explica por que, no Estado mais rico da federação,
uma emissora criada há 45 anos, ainda não sabe a que veio; não tem laços
orgânicos com a cidadania; não dispõe de estrutura estável de
financiamento e, sobretudo, continua a mercê do arbítrio de governantes
de plantão que nomeiam e cortam cabeças ao sabor de suas conveniências
fiscais e, pior que isso, eleitorais.
A crise da TV Cultura, é forçoso repetir, alinha-se a um processo
corrosivo que, por quase três décadas, hostilizou, desdenhou, induziu ao
sucateamento e estigmatizou aos olhos da opinião pública tudo o que não
fosse mercado; tudo o que não fosse interesse privado, que não
refletisse uma eficiência medida em cifras e valores negociados em
bolsa, foi desqualificado e loteado.
Nesse funeral da coisa pública, seria um milagre se a emissora de TV do
Estado que se notabilizou como a trincheira ideológica desse credo,
tivesse outro destino que não o recorrente arrastar de demissões, o
liquidacionismo de acervos, programações e talentos. Tudo a desembocar
num eterno e desairoso recomeço rumo a lugar nenhum.
A essa montanha desordenada de impulsos irrefletidos agrega-se agora um
novo golpe: o loteamento da grade de programação pública aos veículos de
mídia privada, alinhados à doutrina e aos interesses dos ocupantes do
Palácio dos Bandeirantes.
Reconheça-se a pertinência de um espaço ecumênico de debate jornalístico
numa televisão pública, como contraponto à insuficiência - para dizer o
mínimo - do noticioso oferecido pela maioria das emissoras comerciais.
Não é disso, porém, que se trata. Quando se concede, unilateralmente, a
uma corporação midiática, caso da Folha de São Paulo, 30 minutos
semanais, em horário nobre, o que se sugere é uma apropriação do sinal
público pela endogamia de interesses que não são os da sociedade.
A construção de uma verdadeira emissora pública de televisão em São
Paulo -e no Brasil - não é um capricho ideológico, mas uma necessidade
da democracia brasileira. Trata-se de um serviço que a lógica privada do
lucro não se dispõe, nem tem condições de atender.
Não é fazendo da TV Cultura um anexo do 'jornalismo amigo' produzido na Barão de Limeira que esse objetivo será alcançado.
O desmonte da TV Cultura tem que ser interrompido. Mais que isso, hoje
ele tem condições de ser contrastado. O colapso da hegemonia neoliberal
reforçou o discernimento da sociedade para a urgente necessidade de se
construir exatamente o inverso do que se arquiteta sob as asas da
Fundação Padre Anchieta. Ou seja, substituir a dominância dos interesses
privados pela regulação democrática das demandas e aspirações da
sociedade.
Em São Paulo, o primeiro passo nessa direção tem que ser dado agora. É
preciso impedir que uma privatização anômala do sinal público seja
consumada na TV Cultura.
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