Programa comandado pelo jornalista Marcelo Tas na TV Bandeirantes tenta
caçar pedófilos na Internet, mas acaba revelando total desconhecimento
sobre o assunto. Utilizando-se do abominado recurso do flagrante
preparado, o CQC acusou falsamente um cidadão de ser pedófilo. E nesta
tentativa de expor um criminoso, acabou cometendo um crime.
Na noite da última segunda, dia 20 de agosto, o programa CQC da Rede
Bandeirantes exibiu uma reportagem onde imita o infame "To Catch a
Predator" da NBC americana, controverso programa criticado por preparar
flagrantes no intuito de expor pedófilos, responsável por um suicídio e
processado em 105 milhões de dólares. A matéria do humorístico
pseudo-jornalístico comandado por Marcelo Tas pode ser conferida no site
da Rede Bandeirantes, ou no vídeo abaixo:
O termo "pedofilia" foi amplamente utilizado na reportagem do CQC, e o
cidadão atraído pela armadilha preparada pela repórter Mônica Iozzi foi
diversas vezes chamados de "pedófilo", não só na reportagem como também
nas chamadas promocionais e contas dos membros do CQC nas redes
sociais. Porém, um pequeno detalhe chama a atenção: a conduta retratada
não é a da pedofilia. Pode soar estranho, mas pedofilia não é crime,
crime é abuso sexual infantil. Pedofilia é uma doença, uma parafilia
bem definida pela Organização Mundial da Saúde, que consiste na atração
sexual por crianças, indivíduos pré-púberes. E a personagem criada
pelo CQC não era uma criança, e sim uma garota de 14 anos completos. A
ONG Safernet esclarece:
"Pedofilia é um transtorno da personalidade, mais precisamente uma parafilia. No DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), a classificação dos transtornos mentais feitas pela Associação Americana de Psiquiatria, a Pedofilia é caracterizada quando os indivíduos apresentam os seguintes aspectos:
Critérios Diagnósticos para F65.4 302.2 - Pedofilia - DSM IV
A. Ao longo de um período mínimo de 6 meses, fantasias sexualmente excitantes recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou comportamentos envolvendo atividade sexual com uma (ou mais de uma) criança pré-púbere (geralmente com 13 anos ou menos)
B. As fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
C. O indivíduo tem no mínimo 16 anos e é pelo menos 5 anos mais velho que a criança ou crianças no Critério A.
Tampouco o ato de assediar pela internet um indivíduo de 14 anos é crime, conforme o mesmo esclarecimento da ONG Safernet enviado ao Roteiro de Cinema:
"Note-se que só haverá crime se a vítima for criança, ou seja: qualquer ser humano entre zero e 12 anos incompletos. No caso da reportagem do CQC, a atriz que fez o papel da suposta vítima dizia ter 14 anos, o que, de acordo com a lei brasileira, não haverá crime desde que o contato através da Internet não envolva a produção, troca, filmagem, fotografia de cenas pornográficas ou de sexo explícito."
Chamada da matéria no site da Bandeirantes. Uso equivocado do tema pedofilia para alavancar audiência. |
Este é primeiro grande equívoco da reportagem. A atração sexual por uma
garota de 14 anos não é pedofilia. Este fenômeno é conhecido como
Efebofilia e não é classificada como parafilia pelos organismos médicos.
Mas o segundo equívoco é ainda mais grave. A reportagem afirma que o
fato do cidadão ter marcado um encontro com um garota de 14 anos é
crime. Todo o flagrante da reportagem é baseado na falsa premissa de que
um adulto fazer sexo consensual com um garota de 14 anos seria um
crime. Não é. De acordo com o Núcleo de Proteção à Criança e ao
Adolescente do Paraná, a presunção de violência é aplicada apenas para
menores de 14 anos. Ou seja: sexo consensual com indivíduos com 14
anos completos - a idade da personagem criada pelo programa - não é
crime tipificado pelo Código Penal:
"Estupro de Vulnerável: Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos."
Pedobear como novo integrante do CQC. Montagem por Thiago Fernandes (@xthiii) |
A realidade então é que o "pedófilo" flagrado pela reportagem não é um
pedófilo e nem estava cometendo crime algum. E ao acusar um cidadão
publicamente e em rede nacional de estar cometendo um crime inexistente,
os responsáveis pela reportagem do CQC é que cometem crime de Calúnia,
além de crimes de Injúria e de Difamação ao tratá-lo como "pedófilo",
chegando ao absurdo de incitarem violência contra ele. Ao tentar
flagrar um criminoso, desinformados e apenas interessados na audiência
que o sensacionalismo proporciona, quem cometeu um crime foram os
responsáveis pela produção e exibição da matéria. E numa análise mais
abrangente, todos que publicamente endossaram as acusações da emissora.
O desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão pela emissora podem
incorrer também no descumprimento da Constituição Federal em seu
artigo 221, o que - somado aos outros diversos exemplos documentados de
desvios éticos da emissora - poderia acarretar no cancelamento ou na
não-renovação da concessão do serviço público de radiodifusão da TV
Bandeirantes.
A TV Bandeirantes tem um dos piores currículos em matéria de conduta antiética entre as emissoras brasileiras. Na Bahia o Ministério Público propôs ação
requerendo que "a emissora deixe de exibir, em seus programas
jornalísticos, entrevistas e imagens que atentam contra a dignidade
humana". Foi da Band Bahia que saiu o infame caso da repórter Mirella
Cunha, que debochou de um preso em rede nacional.
Band diz que Mirella feriu o código de ética do jornalismo da emissora. Mas existe mesmo esse tal código? A Band silencia sobre o assunto. |
A indignação nas redes sociais contra o comportamento da repórter
Mirella Cunha gerou uma inédita reação do departamento de Jornalismo da
Band comandado por Fernando Mitre. Em nota, a Bandeirantes afirmou que
iria "tomar todas as medidas disciplinares necessárias" e que a
"postura da repórter fere o código de ética do jornalismo da emissora”.
Porém, a própria nota demonstra a falta de ética da emissora. Ao
contrário do que afirma a nota, a Band não possui um Código de Ética
próprio para ser ferido. Diversos profissionais que trabalham ou
trabalharam na Band afirmaram desconhecer tal documento, incluindo o
repórter do CQC Mau Meirelles. Desde o dia 23 de Maio, ou seja há três
meses, cobro da Assessoria da Band um esclarecimento sobre o tal
"Código de Ética do jornalismo da emissora" mencionado na nota, porém,
nunca responderam uma simples pergunta: existe mesmo um código de ética
da Band? Também nunca esclareceram se o CQC, que afirma praticar
jornalismo em uma campanha para justificar a autorização de gravar
dentro do Senado Federal, está obrigado a cumprir este ou qualquer
outro Código de Ética jornalística.
Independente dos erros factuais e do caráter calunioso e difamador da
matéria do CQC sobre a suposta pedofilia, outra questão alarmante é a do
uso do Flagrante Preparado na reportagem, recurso abominado pelo
processo penal brasileiro e pela ética jornalística em geral, sobre o
qual já discuti em um artigo relatando esta prática pelo Jornal Hoje.
Prepara-se um cenário irreal para induzir alguém a cometer um crime
somente para pegar a pessoa em flagrante, na tentativa de criar um crime
onde não haveria. Um crime impossível. Nem a polícia pode usar este
tipo de artifício, quanto mais a imprensa.
Apresentador do CQC chama cidadão de "FDP PEDÓFILO" e diz que para matéria ter ficado perfeita só faltou ele levar uma surra. |
Algumas pessoas comentaram que apesar do sensacionalismo, dos erros
factuais e da desonestidade jornalística, o saldo da matéria seria
positivo, pois alertaria os pais para o riscos a que seus filhos estão
expostos na internet, e que inibiria pedófilos por medo de serem
flagrados. Acredito que a conclusão não poderia estar mais longe da
verdade. A reportagem apenas desinforma e promove paranoia com internet.
Os dados sobre abuso sexual mostram que abusadores são normalmente
pessoas conhecidas da família, muito frequentemente parentes das
vítimas, então o risco maior não está na internet. Poderia dizer que é
mais arriscado mandar sua filha comprar alguma coisa em uma mercearia
do que deixar a solta numa sala de bate papo. Os riscos na internet
existem, obviamente, mas não são os retratados na reportagem. Crianças e
adolescentes não convidam gordinhos da internet para tirarem sua
virgindade. Se quiserem se iniciar sexualmente por vontade própria, o
farão com um vizinho, um conhecido, não com um estranho. O maior risco,
pela natureza da web, não é o aliciamento para sexo, e sim o de ser
vitima de pornografia infantil. Porém, existem sim círculos que aliciam
menores na internet, em grande parte jovens homossexuais reprimidos pela família,
que vêem na rede a única maneira de encontrar um parceiro, uma voz que
lhe entenda, e com a confiança conquistada, viram presas para
exploradores sexuais. E esses exploradores, sinto informar, não se
intimidam com reportagens do CQC. São aliciadores profissionais a
serviço do crime organizado que suprem o mercado de prostituição e
pornografia infantil no Brasil e no exterior.
Há ainda uma tese muito popular nas redes sociais de que essa matéria do
CQC não passaria de uma grande encenação, e que o cidadão acusado
falsamente de ser pedófilo seria um ator contratado. O fato do programa
não ter reportado o caso para a polícia (praxe em reportagens que
supostamente envolvem prática de crime) é um indício forte de que isso
pode ser verdade. Mas não há como confirmar este fato. A esta altura
não sei o que seria pior: o CQC ter armado uma farsa para ludibriar o
seu público em busca de audiência, ou, na mesma busca pela audiência,
ter cometido crimes contra um cidadão inocente.
Procurada pelo Roteiro de Cinema a TV Bandeirantes, como de costume, não comentou o caso.
UPDATE 24/08/14h00: Alguns leitores contestam a tese de que tenha havido
crime de Calúnia, por não ter sido citada nenhuma conduta tipificada
como crime, mas confirmam a tese de que claramente ocorreram os crimes
de Difamação e Injúria por parte dos responsáveis pela reportagem.
Porém, eu sustento ainda a tese que além dos crimes claros de Injúria e
Difamação, incorreram também no crime de Calúnia, pois Marcelo Tas diz
claramente que atraíram "um desses caras" que "ficam procurando" e
"atraindo crianças e pré-adolescentes", o que é crime de acordo com o
241-D da Lei 11.829/08. Em todo caso, esse debate é somente para definir
se foram cometidos um, dois ou três crimes durante a reportagem. O de
Injúria é praticamente irrefutável. Mais detalhes nos comentários.
UPDATE 24/08/16h30: Ao invés de corrigir os erros e se retratar, a Band resolveu justificar a reportagem equivocada em uma matéria em seu site.
O lead da matéria de Gabriella Marini é: "Promotor afirma que a
reportagem do CQC sobre pedófilos ajuda a aumentar as discussões sobre
órgãos de controle na internet", citando o promotor Luiz Alberto Segalla
Bevilacqua. Liguei para o promotor ele nega ter feito qualquer juízo
de valor sobre a matéria ou ter dito que ela "ajuda em algo". Diz que
só esclareceu dúvidas técnicas para a repórter.
UPDATE 26/08/16h30: Na reprise do CQC, exibida na madrugada de hoje, a
Band cortou (de maneira brusca e tosca) os três segmentos da reportagem e
as referências a ela feitas pelos apresentadores da bancada. É um bom
sinal, mas não o suficiente para corrigir o erro.
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PS: Ao confrontar a repórter Mônica Iozzi com as informações que
transcrevo aqui, ela, ao invés de me responder, me bloqueou no Twitter.
Então ficaria muito feliz se vocês enviassem este artigo para ela: @Srta_Iozzi
Mandem o artigo e cobrem resposta do Marcelo Tas também: @marcelotas
Mandem o artigo e cobrem respostas também de quem patrocina o programa:
@PepsiBr @ClaroRonaldo @Trident_Brasil @KaiserBrasil
@PepsiBr @ClaroRonaldo @Trident_Brasil @KaiserBrasil
A íntegra da mensagem da ONG Safernet sobre o programa pode ser lida aqui:
Uma crítica do jornalista Mauricio Stycer sobre o uso do recurso do Flagrante Preparado na reportagem pode ser lida aqui.
Texto antigo da amiga advogada Aline que mostra que o CQC é reincidente em retratar equivocadamente a pedofilia pode ser lido aqui.
Denunciem casos de abuso, violência ou exploração infantil pelo disque 100.
Fernando Marés de SouzaNo Roteiro de Cinema
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