Joaquim Barbosa tinha um sorriso de ironia nos lábios quando fez um
comentário à parte no julgamento do mensalão, nesta segunda-feira.
Referindo-se às alianças do governo Lula para conseguir votos no
Congresso, lembrou a observação de um parlamentar do Partido Popular, o
PP, segundo o qual suas diferenças entre a legenda e o PT eram grande
demais para haver uma aproximação. A ideia é que não poderia haver um
acordo com bases políticas – o que parecia sob encomenda para explicar o
suposto esquema de compra de votos.
Joaquim não resistiu ao argumento do deputado e sacou a conhecida tese
de que os partidos políticos “no Brasil” são iguais, não se registrando
diferenças ideológicas relevantes entre eles. Outro ministro, Marco
Aurélio Melo fez uma observação semelhante.
Lembrou, também numa referência ao PT, que no passado muitos
brasileiros chegaram a acreditar que havia um partido com diferenças
ideológicas. Já que nunca fizeram observações semelhantes em julgamentos
que envolviam tucanos, pefelistas e outros, restou a conclusão de que,
ao menos para estes dois ministros, o PT pode ser considerado um partido
até pior do que os outros. Pelo menos, decepcionou quem imaginava que
era um partido diferente e depois do mensalão convenceu-se de que havia
se enganado.
A doutrina de que os políticos “só pensam em roubar” é antiga e já
alimentou diversas experiências contra a democracia mas as pesquisas
indicam que não é assim que pensa a maioria dos brasileiros. Mesmo no
auge das denuncias do mensalão, no segundo semestre de 2005, o PT seguia
segundo o partido mais popular entre os eleitores. E não era popular
como um ídolo de programa de auditório.
Era aquele que mais se preocupava com os mais pobres e injustiçados. De
lá para cá, quando você pergunta ao eleitor, desde então, qual seu
partido predileto, 25% dizem que é o PT. O segundo colocado fica em 5%.
Isso não quer dizer que o PT é um partido melhor ou pior. Mas demonstra
que tem uma identidade política própria e, pelos números, única.
Muitos brasileiros não concordam com isso. Outros estão de pleno acordo.
Outro tanto fica no meio. Democracia é assim. Garante a todo mundo e a
cada um o direito de pensar diferente.
Não é isso o que importa, agora. Eu acho sintomático que o relator do
mensalão tenha aproveitado uma conversa paralela para deixar escapar,
em tom irônico, uma observação tão negativa sobre o partido que está no
centro do julgamento. E acho mais curioso que outro juiz, imediatamente,
tenha se manifestado de acordo. Os dois muito a vontade, falando de
microfones abertos.
Isso diz respeito a isenção que se espera de um tribunal? Não sei.
Justiça cega? Também não sei. O antecedente do mensalão do PSDB, com
direito a desmembramento e um longo passeio pelos tribunais inferiores,
não é um bom sinal.
Há tantos sábios por aí que garanto aos mais eruditos o direito de
falar primeiro. Mas confesso que nunca tive a oportunidade de ouvir
ministro do STF fazer referências tão explícitas a uma das partes
envolvidas. Muito menos a outros partidos.
Discordo de visões conspiratórias sobre o julgamento. Os juízes estão lá, no exercício de sua soberania.
Mas eu acho que essa manifestação do relator e de Marco Aurélio expressam um ponto de vista político sobre o governo Lula.
É a visão do governo como um universo sem ideologias, sem interesses
políticos reais, sem base social a dar respostas, onde tudo é um grande
arranjo, às costas do povo e dos verdadeiros interesses do país. E eu
acho que essa visão ajuda a entender a linha política que está
presidindo o julgamento até aqui.
Essa visão do “eles só querem roubar” é coerente com um esforço para
criminalizar a política de alianças do governo Lula. Ignora as condições
reais em que são feitas as campanhas eleitorais no país, que misturam
dinheiro de caixa 2, dinheiro limpo e também dinheiro corrupto. Sem
mudanças nessas regras, nada vai acontecer. E, sem querer ser chato, até
agora não se demonstrou que o DNA financeiro do PT tenha uma formação
diferente daquele de seus adversários.
Na melhor das hipóteses, a democracia brasileira será amputada ao sabor
das decisões da Justiça, que ora pode andar de um jeito, ora de outro. O
mensalão tucano sequer chegou aos tribunais e, além do mestre Jânio de
Freitas e deste modesto aprendiz de jornalismo, ninguém mais diz que
isso é um disparate. Sem falar, claro, de Wanderley Guilherme dos
Santos, que publicou uma aula sobre o tema no site O Cafezinho.
A linguagem da acusação tem-se mostrado preocupante. Seria irônico se
não tivesse um aspecto trágico. No esforço para provar compra de votos, a
acusação selecionou alguns projetos do início do governo Lula, como a
reforma da Previdência, a reforma tributária. Em seu tempo, estes
projetos chegaram a ser elogiadas, como demonstração de que o PT
rompera com dogmas considerados pré-históricos. Custaram uma divisão e
até mesmo um racha na bancada do PT. Mas receberam elogios gerais.
O próprio Fernando Henrique Cardoso, em artigo recente onde alinhou um
pacote de críticas ao governo Lula, lembrou essas duas reformas como
aspectos positivos, lamentando apenas que não tivessem ido adiante.
Na visão da acusação, contudo, essas reformas foram o símbolo da compra
de votos. São descritas como de interesse “dos corruptores.” Quer
dizer: não havia interesse nacional, sequer um esforço de aproximação
com a oposição. Não era política, essa atividade que pressupõe acordos,
aproximações, afastamentos e ruptura. Era o “esquema.”
Na mesma linha, quando o governo consegue o voto de um partido que fora
adversário para votar numa proposta que é mais oposicionista do que
petista, a acusação define isso como “ato de ofício,” expressão
equivalente a “recibo”de corrupção. Quando Delúbio Soares dá um
depoimento, ele “confessa.” Nessa lógica, não são petistas que são
acusados de votar em seu partido, o que não faz sentido. É o PP que
cobra para votar no que defendeu.
Ao explicar por que votara na reforma da Previdência, Roberto Jefferson
lembrou, na Polícia Federal, que o caráter trabalhista de seu partido
não impedia que fosse favorável a medidas como a reforma da previdência,
que já apoiava quando estava na base do govedrno FHC.
Por trás de todos esses atos “criminosos” abriga-se aquilo que é visto
como um plano maquiavélico, “perpetuar-se no poder”, que faz parte da
cartilha de qualquer partido político que, por mais democrático que
seja, nunca imagina que a oposição fará um governo melhor do que seu.
(Salvo casos patológicos, de psicanalistas e crises existenciais, mas
não vou falar disso agora).
Instrumento de determinada visão política, essa linguagem ajuda a montar
um quadro sob medida para se chegar ao resultado que parece cada vez
mais provável: a condenação, a penas pesadas, da maioria dos acusados,
salvo alguns mequetrefes.
E aí vamos combinar: tudo vai estar perfeito se os condenados forem
apanhados com provas verdadeiras e consistentes. Neste caso, as
condenações serão justíssimas. Mas será diferente, no entanto, se uma
visão política, que pressupõe a culpa, acabar prevalecendo. Não é isso o
que está por trás da noção de “eles só querem roubar”? Do partido “sem
ideologias?”
Paulo Moreira LeiteNo Vamos combinar
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