A renúncia do papa evidencia a exaustão histórica de uma burocracia
planetária, incapaz de administrar democraticamente suas divergências,
cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre as várias facções
direitistas.
por Márcia Denser
por Márcia Denser
Inspirada em várias fontes, eis algumas reflexões (e revelações para
quem não sabe) sobre a renúncia de Beto XVI: um mix de dinheiro, poder e
sabotagens, corrupção, espionagem, escândalos sexuais – a presença
ostensiva desses ingredientes de filme de terror no noticiário
constituía o dia-a-dia do Vaticano.
Tal frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao
mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos
bastidores da Santa Sé. Desta vez, mais do que nunca, a fumaça que
anunciará o “habemus papam” refletirá o desfecho de uma fritura política
de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia
católica.
Mais que de saúde, razões de Estado teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado.
A verdade é que a direita formada pelos grupos da Opus Dei foi o muro de
arrimo deste Bento – no Brasil, sobretudo gente do PSDB como o jurista
Ives Gandra, o jornalista Carlos Alberto di Franco, este, aliás, mentor
do governador Geraldo Alckmin na organização. O falecido bispo de
Guarulhos, D. Luiz Bergonzini, que serviu como cabeça-de-turco de Serra
na campanha de 2010, acusando Dilma de “aborteira” em panfletos com
assinatura falsa da CNBB, era igualmente vinculado à extrema direita
católica. O ex-chefe da Casa Civil do governo de São Paulo Sidney
Beraldo, agora no TCE, apontado então como um tucano com fortes vínculos
junto a D. Bergonzini; ambos conterrâneos de São João da Boa Vista,
onde Beraldo foi prefeito e Bergonzini nasceu e atuou.
A revista Época, pertencente às Organizações Globo, documentou na
reportagem “O governador e a Obra” a iniciação do tucano Geraldo
Alckmin na Opus Dei. Aliás, a revista IstoÉ também fez um
ilustrativo mapeamento dos vínculos entre tucanos e os responsáveis pelo
panfleto anti-aborto da extrema direita religiosa, em 2010.
Na União Européia, os “Legionários” e a “Comunhão e Libertação” (este
último ligado ao berlusconismo) já haviam precipitado o fim do seu
papado nos bastidores do Vaticano. Sua desistência oficializa a entrega
de um comando de que já não dispunha. Devorado pelos grupos dos quais
inicialmente tentou ser o porta-voz e controlar, Bento XVI jogou a
toalha.
O gesto evidencia a exaustão histórica de uma burocracia planetária,
incapaz de administrar democraticamente suas divergências, cada vez mais
afunilada pela disputa de poder entre as várias facções direitistas,
cuja real distinção resume-se ao calibre e volume das armas disponíveis
na guerra de posições: ironicamente, Ratzinger foi a expressão brilhante
e implacável dessa engrenagem comprometida.
Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng (vide seu perfil
feito por José Luís Fiori na Carta Maior), Joseph Ratzinger escolheu o
apoio da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.
Em meados dos anos 70/80, ele consolidaria essa comunhão emprestando seu
vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarthy
do fundamentalismo católico. Foi assim que exerceu o comando da temível
Congregação para a Doutrina da Fé. À frente desse arremedo da Santa
Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da
Teologia da Libertação.
O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais
prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, foi um dos seus
alvos: advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados
e proscritos. Por ordem direta do futuro papa. Antes de assumir o cargo
supremo da hierarquia, Ratzinger “entregou o serviço” cobrado pelo
conservadorismo.
Tornou-se mais uma peça da alavanca movida por gigantescas massas de
forças que decretariam a supremacia dos livres mercados nos anos 80; a
derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim do comunismo e a ascensão
dos governos neoliberais em todo o planeta. Não bastava conquistar
Estados, capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados
financeiros, era necessário colonizar corações e mentes para a nova era.
E dá-lhe pedofilia por debaixo dos paramentos sacrossantos!
Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor, João Paulo II, liquidou a
rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo. As pastorais
católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em
sua agenda “profana”. A capilaridade das comunidades eclesiais de base
da igreja ficou restrita ao catecismo convencional e, naturalmente, à
Nova Carismática e o nunca por demais esquecido Padre Marcelo Rossi
(cruzes!).
Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo
histórico que ajudou a implantar. Durou pouco. Três anos depois, em
setembro de 2008, as finanças do conservadorismo sofreriam um abalo do
qual não mais se recuperaram.
Resta desde então a imensa máquina de desumanidade que o Vaticano ajudou
a lubrificar neste ciclo – como já havia feito em outros, é só invocar a
História, a começar do que resta na memória popular de Papas como
Rodrigo Borgia, ou Alexandre VI, com reputação de cruel e devasso, que
nomeou o próprio filho Cesare Borgia, além de muitos outros parentes,
como cardeais; de Júlio III, a nomeação como cardeal-sobrinho do amante
de 17 anos, Innocenzo, sem esquecer Pio XII, contemporâneo do nazismo e
aliado de Hitler, graças a quem subiu ao poder, ficando indelevelmente
marcado por essa aliança e total “cegueira” e silêncio ultrajantes
quanto ao Holocausto.
Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo
distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma UE
destroçada para a qual a Igreja Católica não tem mais nada a dizer há
séculos. Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador
perdeu qualquer sentido perante a crise social devastadora.
Será lembrado (ou esquecido) como o Papa dos ricos e pedófilos.
Vade retro, Satanás!
Ou melhor: já vai tarde.
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