Paulo Moreira Leite - IstoÉ
Curioso, não?
Um número grande de leitores do blogue tem escrito para reclamar de meus textos sobre o novo Papa.
A queixa mais recente envolve uma citação. Em nota recente, defini o
jornalista Horácio Verbitsky como uma das grandes autoridades sobre
direitos humanos na Argentina. Os leitores escrevem para lembrar que
Verbitsky participou do grupo armado Montoneros, que cometeu sequestros e
até execuções de inimigos durante o regime militar.
Lembro a nossos amigos que a vida de todo mundo é feita de contradições.
Mesmo aqueles homens que os católicos descrevem como Santos não tiveram
uma existência em linha reta, certo?
Verbitsky participou de uma organização armada e não acho que, nas
circunstâncias daquele tempo, isso seja necessariamente vergonhoso. Pode
ser honroso, conforme o ponto de vista de tantos argentinos. O debate
não é este, porém.
Mais tarde, dedicou-se a pesquisar e investigar o que se passou naquele
período. E foi nessa atividade que demonstrou um rigor fora do comum.
Seus livros sobre o período militar são obras únicas pela disposição de
investigar e analisar rigor uma situação bastante complexa. É
impossível entender a Argentina dos anos 80 sem ler o que escreveu sobre
a guerra suja, os conflitos internos do peronismo e o regime dos
generais.
Isso aconteceu em outros países. No Brasil, antigos militantes da luta
armada participaram das pesquisas e da redação do livro Brasil Nunca
Mais. Isso não impediu que o livro fosse referência mundial em pesquisas
sobre violações de direitos humanos.
A reação diante de meus elogios ao trabalho de Verbitsky, ajuda a
lembrar que todos temos um passado e é preciso lidar com ele. E é aí que
o debate sobre a atuação de José Mario Bergoglio faz sentido.
Depois da denuncia de Verbitsky, o Premio Nobel Adolfo Perez Esquivel
tentou encontrar um conceito para definir a atuação do então bispo
Bergoglio naquele período. Disse que ele não fora cúmplice dos militares
e que apenas não havia demonstrado “coragem” na luta por direitos
humanos, naquele momento.
Foi o que bastou para que as denúncias de Verbitsky, que citou o caso de
dois jesuítas que Bergoblio teria se recusado a proteger em hora de
perigoso, fossem tratadas como “difamação” por seus aliados. Vamos com
calma.
Ainda que o conceito de Esquivel seja o mais adequado, a constatação de
que um bispo não demonstrou “coragem” diante de um governo capaz de
produzir 30.000 mortos, sequestrar mulheres grávidas e crianças me
parece grave o suficiente para discutir sua de liderança para defender
os fracos e indefesos em horas difíceis.
Este ponto é importante. A atuação da Igreja argentina no período
militar foi tão vergonhosa que mais tarde ela chegou a pedir desculpas a
população pelo apoio ao regime, o que dá uma ideia do sentimento de
repulsa de boa parte dos argentinos pelo comportamento de tantos padres e
bispos naquela época.
Falta de coragem pode ser eufemismo para muitas atitudes, nós sabemos.
Mas não é um conceito que cabe a Igreja brasileira no mesmo período.
Embora o regime de 64 tenha sido abençoado pela cúpula da Igreja, nos
anos seguintes ela se tornou abrigo de boa parte das ações de oposição e
resistência. Procure nas oposições sindicais e nas lideranças populares
daquela época. Vai ser muito comum encontrar pessoas que, de uma forma
ou de outra, tinham ligações com a luta social da Igreja.
Entre várias lideranças, poucas se destacaram como o Arcebispo de São
Paulo, Paulo Evaristo Arns. Quinze anos mais velho do que Bergoglio, dom
Paulo viveu um mesmo período mas atuou de forma oposta.
Seu comportamento foi exemplar em momentos decisivos.
Realizou uma missa pela morte do estudante Alexandre Vannuchi Leme, em
1973 e, dois anos depois, fez o culto ecumênico em função do assassinato
do jornalista Vladimir Herzog. Criou uma comissão para investigar
crimes contra direitos humanos e desafiou a ditadura ao denunciar a
situação brasileira durante visita de Jimmy Carter ao país. Dom Paulo
também estimulou a defesa de direitos humanos em países vizinhos,
denunciando a cooperação entre as ditaduras para perseguir adversários.
No fim da ditadura argentina, o mal-estar em torno de Bergoglio era tão
grande que um dos jesuítas mencionados por Verbitsky, a quem não teria
prestado ajuda na hora devida, reconciliou-se com ele.
Ou seja, deu-lhe perdão.
Embora não lhe tivesse faltado coragem, Dom Paulo não foi perdoado pela valentia.
Na mudança política promovida a partir da posse de João Paulo II, sua
diocese foi dividida, seus poderes foram diminuídos e os aliados foram
encostados. Sob aplauso das fatias mais conservadores, vozes ligadas a
resistência foram silenciadas, num processo dirigido pessoalmente por
Joseph Ratzinger.
Se alguém quisesse contar a história como ela foi, e não como
gostaríamos que tivesse ocorrido, é possível dizer que, com sua “falta
de coragem” o bispo Bergoglio adivinhou o rumo que o Vaticano iria
seguir nos anos seguintes.
Já a valentia de dom Paulo trouxe a admiração de tantos brasileiros,
católicos ou não. Não lhe trouxe, contudo, as honrarias do sistema que
transformou Bergoglio em Papa.
Curioso, não?
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