O direito e o sistema de justiça no Brasil sofrem intensas predações
internas e externas. Das externas a que mais preocupa é o da mídia, em
especial nos casos penais. Para que uma sociedade democrática e de
direito contemporânea sobreviva como tal é relevantíssimo que os
subsistemas comunicativos convivam entre si com base em relações de
racionalidade transversal, ou seja, em essência a lógica de um não pode
superar a do outro dentro da esfera de operação desse outro.
Assim, em um julgamento de um tribunal deve imperar a lógica do
lícito/ilícito própria do direito e não a lógica do notícia/não notícia
do subsistema de comunicação social ou do poder/não poder da política.
É esta manutenção da autonomia sintática dos subsistemas comunicativos
dentro do grande sistema comunicativo que é a sociedade democrática que
garante a pluralidade, tolerância e racionalidade conformadoras do
Estado Democrático de Direito numa sociedade hiper-complexa como a
nossa.
A ação midiática promove emoções, nem sempre boas conselheiras do juízo
criminal que deve sempre se pautar por parâmetros racionais e certos
valores que estabelecem o distanciamento afetivo e ideológico do
julgador ao julgar a causa. O processo não é apenas garantia formal, mas
direito material, exigindo a obtenção de um modo racional e equilibrado
de formação da decisão. Onde há julgamento não deve haver linchamento,
são conceitos totalmente contraditórios entre si.
Ao ser noticiada do cometimento de um crime a sociedade se solidariza
com a vítima ou mesmo se sente vítima daquela conduta. Natural e
razoável que seja assim.
O que não é adequado é que este sentimento de ser vítima invada o
espírito de quem julga um processo. O julgador não pode ser vítima da
conduta, dele se exige distância das emoções que cercam o ocorrido como
requisito essencial para que sua decisão seja racional e justa.
Este papel do julgador distante e racional foi uma imensa conquista
humana. A superação dos linchamentos e dos juízos populares no âmbito
criminal por formas racionais e legais de julgamento foi uma imensa
conquista civilizatória que marca nossa história moderna.
Com os julgamentos do caso do “mensalão” e do homicídio de Mércia
Nakashima sendo televisionados inauguramos um período de sério risco de
retrocesso nesta conquista hoje mínima da sociedade civilizada.
Televisionar ao vivo um julgamento penal é trazê-lo ao patamar de um
linchamento contemporâneo. É constranger juízes e jurados a que sigam os
impulsos primitivos da turba sob pena de sofrerem constrangimentos
inaceitáveis à proteção que faz jus o julgador no exercício de sua
função. O que se protege aí não é a pessoa do julgador mas um sistema
civilizado de valores.
Vide o que sofreu o ministro Lewandowski por ter ousado divergir em
alguns aspectos do voto do ministro relator do caso do “mensalão”. Foi
achincalhado por nossa mídia marrom sem qualquer respeito a seu papel de
julgador.
Uma sociedade democrática que exige de seus juízes que sejam heróis para
julgarem segundo o que lhes parece ser os ditames de nossa ordem
jurídica não é, de fato, uma sociedade democrática. Agora transmite-se
por filmagens ao vivo as cenas do julgamento do homicídio de Mércia
Nakashima, o que levará certamente à condenação do réu.
Talvez a referida condenação seja justa. O problema é que não se dará
como resultado do que consta do processo, como resultado racional do
processo e da investigação que o antecedeu. Será um ato de manifestação
do ódio e de afetos próprios do linchamento.
E se o julgador ousar divergir deste sentimento público se transformará
em réu da opinião publica ou publicada. O juiz e os jurados terão sua
vida perturbada por xingamentos em restaurantes, neles seu bife será
cuspido pelo garçom e coisas do gênero.
Tornar-se-á, ao menos por um tempo, um pária. É o que se cobra do
julgador que ousar divergir do senso comum em razão de provas ou
evidências que constem eventualmente do processo.
O direito fundamental do réu a contar com um juízo isento vai para o
ralo. O processo passa a se assemelhar aos processos stanilistas, onde
se entrava na sessão de julgamento sabendo-se de antemão o resultado.
Se esta gama de problemas já ocorria como consequência do normal
acompanhamento pela mídia dos julgamentos, problema dificílimo de
resolver em nossas democracias contemporâneas, televisionar ao vivo os
julgamentos penais só agrava sobremaneira o problema ao invés de
resolvê-lo.
Transformar os ambientes racionalmente controlados dos julgamentos
criminais em espetáculo é um imenso equívoco. A título de uma
transparência de fato inexistente, pois os documentos do processo nunca
são televisionados, pois seria “muito chato” e de pouca audiência
fazê-lo, joga-se no ralo conquistas civilizatórias de séculos de
reflexões, revoluções e disputas.
Pedro Estevam SerranoNo CartaCapital
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