É
curioso constatar que boa parte dos observadores políticos que
defendem corretamente a abertura de nossos arquivos históricos não
costuma demonstrar um zelo equivalente para preservar a memória do
presente.
É claro que sou a favor
da abertura dos arquivos desde sempre, como sabem os leitores deste
blogue. Desde o primeiro dia dos debates no senado eu me perguntava,
aqui, por que razão Fernando Collor e José Sarney queriam manter
segredos de Estado para toda eternidade.
Mas
está na cara que a discussão é mais complicada do que parece, até
porque nem Collor nem Sarney criaram a lei do sigilo eterno, que é
recentíssima.
O criador chama-se
Fernando Henrique Cardoso. Ele fez isso nos últimos dias de seu mandato,
como admitiu em entrevistas. FHC disse que assinou o documento sem
perceber do que se tratava, por sugestão de assessores palacianos.
Não
custa lembrar que aquela conjuntura política de 2003 tinha um
componente delicado, que poderia justificar cuidados nada distraídos de
quem deixava o governo. O candidato do PSDB fora derrotado nas eleições
presidenciais e ninguém sabia qual atitude o governo Lula poderia tomar
ao chegar ao Planalto.
A esquerda
petista sempre foi — e era muito mais, em 2003 — ocupada em recuperar o
passado, que envolve todas as feridas que nós conhecemos. O partido de
Lula não só pretendia apurar crimes da ditadura, mas chegou ao Planalto
com um discurso onde a privataria era uma das palavras preferidas de
seus dirigentes. Havia uma guerra nos bastidores de empresas estatais
recém-privatizadas.
O fantasma de
um esquerdismo petista foi um dos espectros favoritos dos adversários
de Lula nos últimos meses da campanha de 2002. Era natural que alguma
desconfiança estivesse presente, nos momentos anteriores à posse.
Hoje,
fora do governo, quando também está engajado na campanha pela
legalização da maconha, FHC já deixou claro que é adversário do sigilo
eterno.
Mas o episódio ajuda a
lembrar que não basta falar mal de Collor e Sarney para trabalhar pela
reconstrução da memória de nosso país. Sempre que possível, o nome de
FHC não aparece nessa história. Sua assinatura some dos debates e das
acusações — como por encanto, como se tivesse evaporado, a exemplo de
tantos atos de nossos governantes, condenáveis ou não, cujos
responsáveis foram deixados na penumbra.
É
raro encontrar referencias. Bate-se com dureza e até crueldade em
Collor e Sarney que, neste caso, são apenas continuadores da obra que
Fernando Henrique agora rejeita.
Por
que isso acontece? Não há explicação razoável. Uma possibilidade é pura
ironia. Embora interessados na memória mais antiga, determinados
estudiosos já resolveram passar uma borracha em atos ocorridos nos oito
anos tucanos. (Brincadeirinha….)
Outra
possibilidade é o alvo. Nada mais fácil, em 2011, do que bater em
senadores como Fernando Collor e José Sarney. Ambos são políticos
decadentes e, do ponto de vista do mundo real, inofensivos fora de seus
espaços regionais. O máximo que podem almejar é uma nova reeleição em
estados onde a democracia ainda é uma planta frágil demais. Prestam
serviços relevantes ao governo Dilma, o que estimula quem quer desgatar a
presidente.
Em qualquer caso,
Collor e Sarney são os adversários convenientes. Servem de escudo para
outros interesses e porta-vozes que não precisam dar a cara para bater.
Será que alguém acredita que os dois tem musculatura para impedir o
acesso do Brasil a sua história? Não ocorreram pressões de comandantes
militares e outras? Quantos interesses podem ficar constrangidos com a
abertura do sigilo? Apenas o Maranhão e Alagoas? Façam-me o favor…
Quando
comparo FHC, Collor e Sarney, tenho motivos de sobra para dizer que
Fernando Henrique foi um presidente muito melhor. Sua obra tem outra
qualidade quando colocada ao lado da herança dos outros dois. Deixou uma
herança com muitos aspectos positivos, que explicam boa parte do que o
correu nos anos seguintes.
Mas eu
acho que, neste caso, não sei se há opção razoável entre a franqueza
rude de Collor e Sarney diante da versão conveniente de FHC. Não gosto
da autotolerancia de quem diz que não sabe o que faz. Collor e Sarney
dizem que querem o sigilo eterno e pronto. Estão errados e jogam contra a
democracia Mas não dizem que não sabiam o que estava fazendo.
O que você acha?
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