O Brasil aos olhos de Dilma
Do blog Para leitura
Em uma entrevista de duas horas a VEJA em Brasília, a presidente Dilma Rousseff diz que o poder não é desfrutável, mas que também não perde o sono com os problemas com os quais se defronta
Aos olhos de muita gente, a presidente Dilma Rousseff deveria estar uma
pilha de nervos na semana passada. Ela vinha de uma viagem à Alemanha,
onde pareceu, inadequadamente, dar lições de governança à chanceler
Angela Merkel. Na reunião que teria com os maiores empresários
brasileiros, ela lhes daria “um puxão de orelha”, e, para completar o
quadro recente de tensão, a base aliada do seu governo no Congresso
estava em franca rebelião, contrariando seguidas iniciativas do Palácio
do Planalto nas votações. Como pano de fundo da semana caótica, havia o
fato de Dilma ainda não ter convencido a opinião pública de ser a grande
gestora que o eleitorado escolheu para governar o Brasil em 2010. Como
escreve nesta edição J.R. Guzzo, colunista de VEJA, capturando uma
sensação mais ampla, “a maior parte das atividades do governo brasileiro
hoje em dia poderia ser descrita como ficção”. Mas Dilma não estava nem
um pouco tensa quando recebeu a equipe de VEJA (Eurípedes Alcântara,
diretor de redação, e os redatores-chefes Lauro Jardim, Policarpo Junior
e Thaís Oyama) na tarde de quinta-feira passada para uma conversa de
duas horas em uma sala contígua a seu gabinete de trabalho no Palácio do
Planalto, em Brasília.
Dilma vinha de encerrar a reunião com os empresários, em que,
disciplinadamente, cada um dos 28 presentes teve cinco minutos para
falar, e não pareceu ter dado – ou levado – metafóricos puxões de
orelha. “Tivemos uma conversa séria. Coisa de país que sabe onde está no
mundo e aonde quer chegar”, disse ela. “Ficamos todos de acordo que os
impostos têm de cair, os investimentos privados e estatais têm de
aumentar e o que precisar ser feito para elevar a produtividade da
economia brasileira e sua competitividade externa será feito”. Para quem
vinha tendo os ouvidos atacados pelo buzinaço estéril da “guerra
cambial” contra o Brasil – expressão que, como se verá na entrevista a
seguir, ela não acha própria –, a frase de Dilma, mesmo sem a sonoridade
do português castiço, soa como música.
É saudável quando o governante não põe em inimigos externos toda a culpa
por coisas que não funcionam. Melhor ainda quando reconhece que seu
próprio campo, além de não ter soluções para tudo, é também parte do
problema. “Não dá para consertar a máquina administrativa federal de uma
vez, sem correr o risco de um colapso. Nem na iniciativa privada isso é
possível. No tempo que terei na Presidência vou fazer a minha parte,
que é dotar o estado de processos transparentes em que as melhores
práticas sejam identificadas, premiadas e adoradas mais amplamente. Esse
será meu legado. Nosso compromisso é com a eficiência, a meritocracia e
o profissionalismo”.
“Eu disse aos empresários que seremos aliados nas iniciativas para
aumentar a taxa de investimento da economia – e não mais apenas o
crédito para o consumo”, contou ela. Suas propostas lembram o gato do
chinês Deng Xiaoping. Não importa a cor. O que interessa é que ele cace
ratos. Dilma Rousseff, porém, continua sendo a Dilma da lenda da mulher
durona, de cotação nacionalista. Confrontada com as críticas de que a
Petrobras não pode ser um braço de política industrial do governo, ela
reagiu: “A Petrobras tem de saber que o petróleo é do Brasil e não
dela”. Felizmente, Dilma admite que a extração do petróleo do pré-sal
tem prioridade até sobre a sacrossanta exigência de 65% na taxa de
nacionalização dos equipamentos – o que inviabiliza ou encarece muitas
operações. Ela não verbaliza que a taxa pode ser reduzida, mas diz que,
entre a manutenção do patamar de nacionalização e a garantia de produção
dos campos do pré-sal, fica com a produção.
Pôr a culpa das reais distorções do Brasil em pressões produzidas no exterior não é uma maneira de fugir dos problemas?
Primeiro, não é verdade que estejamos agindo dessa maneira. É uma
simplificação grosseira supor que o governo brasileiro considere as
pressões externas a única causa de nossos problemas. Segundo, ignorar
que existem fortes externalidades agindo sobre a economia brasileira é
um erro que não podemos cometer, sob pena de arriscar a prosperidade
nacional, a saúde de nossa base industrial e os empregos de milhões de
brasileiros. Terceiro, os fatores exógenos são reais e não podem ser
subestimados.
A senhora se refere ao que chegou a ser chamado de “guerra cambial”?
Não acho adequado ver o fenômeno do tsunami de liquidez que foi criado
pelos países ricos em crise como uma agressão proposital às demais
nações. Mas a saída que eles encontraram para enfrentar seus problemas é
uma maneira clássica, conhecida, de exportar a crise. Quando o
companheiro Mario Draghi (economista italiano presidente do Banco
Central Europeu) diz “vamos botar a maquininha que faz dinheiro para
rodar”, ele está inundando os mercados com dinheiro. E o que fazem os
investidores? Ora, eles tomam empréstimos a juros baixíssimos, em alguns
casos até negativos, nos países europeus e correm para o Brasil para
aproveitar o que os especialistas chamam de arbitragem, que, grosso
modo, é a diferença entre as taxas de juros praticadas lá e aqui. Eles
ganham à nossa custa. Então, o Brasil não pode ficar paralisado diante
disso. Temos de agir. Temos de agir nos defendendo – o que é algo
bastante diferente de protecionismo.
Quais as diferenças entre se defender e recorrer ao protecionismo?
O protecionismo é uma maneira permanente de ver o mundo exterior como
hostil, o que leva ao fechamento da economia. Isso não faremos. Já foi
tentado no passado no Brasil com consequências desastrosas para o nosso
desenvolvimento. Cito aqui o caso da reserva de mercado para
computadores, que, nos anos 80, arrasou a modernização do parque
industrial brasileiro e nos privou de tecnologias essenciais. Não vamos
repetir esse erro. Não vamos fechar o país. Ao contrário, queremos
investimentos estrangeiros produtivos. Mas vamos, sim, defender as
nossas empresas, os nossos empregos. O que estamos fazendo, e vamos
continuar fazendo, é contrabalançar com medidas defensivas as pressões
desestabilizadoras externas que estão carreando para o Brasil
quantidades excessivas de capital especulativo. Quando o panorama
externo mudar para melhor, nós saberemos que chegou a hora de revogar as
barreiras momentâneas que foram criadas.
Mas atrair dinheiro de fora não é bom em qualquer circunstância?
Não. O Brasil está em uma situação agora em que podemos dizer aos países
ricos que não queremos o dinheiro deles. Não queremos pagar os juros de
13% por empréstimos que eles nos oferecem. Obrigada, mas não queremos
pagar as exorbitantes taxas de permanência desses empréstimos, quantia
que eles cobram mesmo quando não usamos o dinheiro, apenas para que os
recursos estejam disponíveis a qualquer momento. Eu disse isso com toda a
clareza à chanceler Angela Merkel durante minha visita à Alemanha. Aqui
se noticiou que eu estava querendo dar lições à Alemanha. Não foi nada
disso. Eu quis deixar claro que o Brasil não quer mais ser visto como
destinação de capital especulativo ou apenas como mercado consumidor dos
produtos que eles exportam. Também deixei bem claro que, quando o Banco
Central Europeu joga de repente 1 trilhão de euros no mercado, ele não
pode esperar que os países fiquem de braços cruzados enquanto parte
desses recursos vem somente passear no Brasil e voltar mais gorda para a
Europa sem ter deixado aqui nenhum benefício.
Como Angela Merkel reagiu?
Ela disse que entendia meu ponto de vista perfeitamente, mas que os
países emergentes não podiam esquecer que nós temos responsabilidades
globais como consumidores ávidos e, portanto, como parte da solução das
economias estagnadas da Europa. Eu, então, respondi que nós devemos ser
parceiros no ataque aos problemas globais, mas que nossa colaboração não
podia ser mais apenas como mercados consumidores e foco de atração de
capitais especulativos. Disse a ela que o Brasil quer muito atrair
empresas alemãs de tecnologia de ponta. Disse que essas empresas são
bem-vindas ao Brasil e, uma vez instaladas aqui, com transferência de
tecnologia e criação de empregos, serão tratadas como empresas
nacionais, com acesso ao crédito e outras facilidades concedidas às
empresas nacionais. As pessoas precisam entender que o Brasil não está
recorrendo ao protecionismo, nem arreganhando os dentes para quem quer
que seja. Não é disso que se trata.
Ainda assim, tem muita coisa errada no Brasil que precisa ser consertada e independe do que vem de fora...
Sem dúvida. Hoje mesmo (quinta-feira passada, 22) eu me reuni com alguns
dos maiores empresários brasileiros e tivemos uma troca franca de
ideias sobre como atacar nossas distorções mais paralisantes. Eu disse a
eles que nossa maior defesa é aumentar a taxa de investimento privado.
Eles reclamaram que os impostos cobrados no Brasil inviabilizam as
melhores iniciativas e impedem que eles possam competir em igualdade de
condições no mundo. Eu concordo. Temos de baixar nossa carga de
impostos. E vamos baixá-la. Vamos nos defender atacando – ou seja,
exportando e ganhando mercados. Para isso, temos de aumentar nossa taxa
de investimento real para pelo menos 24%. O governo vai investir e gerar
o ambiente de negócios para que isso ocorra. Os empresários terão de
fazer a parte deles, aproveitar as oportunidades, assumir riscos e
deixar aflorar aquilo que o Keynes chama de “instinto animal” da
livre-iniciativa.
Como diria o Garrincha, é preciso combinar com os russos – e os
indianos, e os chineses. Eles já estão atacando os mercados bem antes do
que o Brasil, a senhora concorda?
Sim. Mas a China está dando sinais evidentes de fadiga do modelo-focado
fortemente na exportação. Tenho acompanhado os debates sobre a China, e
seus lideres não escondem que não podem mais negligenciar o mercado
consumidor interno. Eles estão mudando seu foco aceleradamente para
atender às demandas do mercado interno chinês. Isso significa que a
China em breve vai importar mais do que commodities. Os chineses vão
importar bens de consumo – geladeiras, fogões, forno de micro-ondas –, e
a parte da indústria brasileira que via a China como ameaça poderá
passar a vê-la como oportunidade de mercado também para nossas
exportações de manufaturados.
A senhora consumiu boa parte do primeiro ano de seu governo
resolvendo crises provocadas por denúncias de corrupção. Agiu com
presteza e demitiu quem estava comprometido. É difícil encontrar
auxiliares honestos?
A questão não deve ser colocada dessa forma. Os processos no governo é
que precisam ser de tal forma claros e os resultados de avaliação tão
lógicos que não sobre espaço para as fraquezas dos indivíduos.
Montesquieu ensinou que as instituições é que devem ser virtuosas.
Nenhuma pessoa que é chamada para o governo pode achar que haverá algum
tipo de complacência. Nós temos de ser o mais avesso possível aos
malfeitos. Não vou transigir. É bom ficar claro que isso não quer dizer
que todos os ministros que deixaram o governo estivessem envolvidos com
alguma irregularidade. Alguns pediram para sair para evitar a
superexposição ou para se defender das acusações que sofreram.
Por que a senhora não gostou da expressão “faxina ética”?
Parece preconceituoso. Se o presidente fosse um homem, vocês falariam em
faxina? Isso é bobagem. A questão não é essa palavra, a questão é que o
governo tem uma obrigação de oferecer serviço público de qualidade à
população. E para isso é necessário que os processos no governo sejam
eficientes, meritocráticos e transparentes. Eu sempre mudei para tentar
melhorar.
Essas mudanças, porém, agora estão gerando uma crise no Congresso...
Não há crise nenhuma. Perder ou ganhar votações faz parte do processo
democrático e deve ser respeitado. Crise existe quando se perde a
legitimidade. Você não tem de ganhar todas. O Parlamento não pode ser
visto assim. Em alguma circunstância sempre vai emergir uma posição de
consenso do Congresso que não necessariamente será a do Executivo. Isso
faz parte do processo. A tensão é inerente ao presidencialismo de
coalizão com base partidária. No governo passado perdemos a votação da
CPMF, e o céu não caiu sobre a nossa cabeça.
O que a senhora achou do discurso do ex-presidente Fernando Collor
alertando-a de que ele perdeu o cargo por falta de sustentação no
Congresso?
Não li o discurso. Mas vocês souberam do discurso do Miro? (Miro
Teixeira, no dia seguinte ao discurso de Collor, recolocou a questão nos
eixos lembrando que não existe comparação possível entre os governos
Collor e Dilma.) O que é preciso ter em mente é que as grandes crises
institucionais no Brasil ocorreram não por questiúnculas, pequenas
discordâncias entre o Executivo e o Legislativo. As grandes crises
institucionais se originaram da perda de legitimidade do governante.
Mas essas derrotas, coincidentemente, começam quando o governo decide
trocar suas lideranças no Congresso e rever sua relação com alguns
aliados.
Não gosto desse negócio de toma lá dá cá. Não gosto e não vou deixar que
isso aconteça no meu governo. Mas isso nada tem a ver com a troca dos
líderes. Eles não saíram por essa razão. Devemos considerar que os
parlamentares vivem um momento tenso, natural em um ano de eleições
municipais. Mas repito: não há crise nenhuma.
É difícil suceder na Presidência a um político popular e amado como Lula?
Não. É facílimo. Para começo de conversa, eu fui ministra da Casa Civil
do governo Lula durante cinco anos e despachava com ele dezenas de vezes
por dia. Aprendi muito. Alguns setores menosprezam o Lula por causa de
suas origens, mas eu sou testemunha de que ele tem momentos de gênio na
política e um carisma que nunca vi em outra pessoa. Esse metalúrgico que
muita gente menospreza mudou o Brasil e ajudou a criar uma nova ordem
mundial com o G20, por exemplo, do qual ele foi o grande incentivador.
A senhora tem dificuldade em discordar do ex-presidente Lula?
Nem um pouco. Nós já divergimos muito no passado e continuamos não
concordando em algumas coisas. Eu tenho uma profunda admiração por ele,
uma profunda amizade nos une, ele é uma pessoa divertidíssima com uma
capacidade de afeto descomunal. Mas discordamos, sim. Isso é normal.
Mas, no que é essencial, nós sempre concordamos.
Em que momentos a senhora percebe que faz diferença ser uma mulher na Presidência?
Quando eu acordo de manhã e me vejo no espelho. Estou brincando. Eu acho
que a diferença mesmo eu vejo quando as mulheres simples desse Brasil
param para conversar comigo, acenam para mim, em quem enxergam um
símbolo de emergência e de ascensão. A cada dia eu me convenço de que o
século XXI é o século das mulheres.
A senhora se dá o direito de ter uma opinião como mulher sobre
determinado assunto, o aborto, por exemplo, e outra como presidente?
De maneira alguma. Ser presidente não me dá o direito de expressar
opinião pessoal, particular ou subjetiva sobre qualquer tema. Aos 64
anos, tenho de ter a sabedoria de guardar essas opiniões para mim mesma.
O que a senhora descobriu como presidente que não sabia como ministra?
O povo se identifica com você, vê em você uma igual na Presidência. E,
por isso, o brasileiro se entrega, mostra como é caloroso. Ele te
identifica na rua, grita seu nome, te abraça, te pega. Você sente que
está fazendo aquilo de que ele precisa. Isso é maravilhoso!
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