Além do julgamento
Tanto nos ataques mútuos e entremeados de inconfiáveis elogios, como nas
entrelinhas das formulações teóricas dos magistrados, as sessões do
Supremo Tribunal Federal têm oferecido, ainda que sem tal propósito,
temas de interesse mais geral do que o destrói ou não destrói José
Dirceu.
Foi pródiga, nesse sentido, a sessão em que o Supremo se inviabilizou no
empate de cinco a cinco, que vale o mesmo que o empate de zero a zero,
duas partes que se anulam. O que reduziu todo o poder de decisão, no
Olimpo do Judiciário, à voz de um só.
A discussão entre os ministros Marco Aurélio Mello e Luís Roberto
Barroso, por exemplo, tem a ver com mais do que a influência da opinião
externa, ou "do país", sobre o tribunal. Em resposta a Barroso, que se
disse subordinado à sua consciência de juiz e não à multidão, e muito
menos ao que dirão os jornais do dia seguinte, Marco Aurélio
proclamou-se subordinado, sim, "aos contribuintes" a que "deve contas".
É um assunto que deveria figurar entre as preocupações permanentes das
redações e dos seus jornalistas, dos críticos culturais, dos colunistas
de costumes, de procuradores e promotores públicos, e de muitos outros.
Deveria. A regra predominante, considerado o conjunto das atividades
sensíveis ao tema, é procurar se "dar bem" fazendo "média" com a
tendência mais favorecedora.
No caso suscitado pelos dois ministros, a prevalência da opinião mais
exposta poderia até dispensar os juízes e os julgamentos, bastando
aplicar a presumida vontade dos "contribuintes". E ainda chamar isso de
"democracia direta", para alegria de certos esquerdoides.
Mas o risco não é de desemprego. A "vontade do povo" foi um argumento
utilizado por juízes na Alemanha nazista e depois repetido nos
julgamentos em que foram eles os réus, no pós-guerra. E, mesmo sem
chegar a extremos políticos, sabe-se que a opinião do povo, da multidão,
do contribuinte, ou lá que categoria se use, é manipulável e pode ser
distorcida pelos meios que aparentemente a refletem quando, de fato, a
induzem. Opinião pública: o que é isso, afinal?
Não foi Marco Aurélio nem foi Barroso quem suscitou o tema. Foi Gilmar Mendes.
A sessão seria cansativa, com votos muito extensos, não fosse Gilmar
Mendes oferecer uma representação criativa, e a TV estava ali também
para isso, como sempre. Dramático, espacial nos gestos teatrais, a voz
ondulante como nos mares bravios, o ministro tonitruou um discurso à
maneira dos tribunos das oposições de outrora, bem outrora. Estava
preocupado porque "o país está a nos assistir" (o infinitivo dos
portugueses, em vez do gerúndio dos brasileiros, é permanente, digamos,
no seu estilo). E o STF não pode decepcionar esses espectadores, povo,
contribuintes, as ruas. Preocupação muito reiterada, em especial, com
referência ao número absurdo de sessões consumidas pela Ação 470: já 53!
Um absurdo! E tome exclamações.
Foi bom o ministro recorrer à velha oratória, mas não à velha
aritmética. Iria lembrar-se de que a Ação 470 levou 38 réus ao STF.
Logo, implicou 38 julgamentos. Em média, portanto, cada um não ocupou
nem uma sessão e meia. Incluídas no total e na média as sessões que não
foram exatamente de julgamento, mas ocupadas com os recursos chamados
embargos declaratórios e já com os combates pelos embargos infringentes.
Se a aritmética é lembrada, lá se ia um pedaço fundamental da
representação.
Tanta preocupação com o esperado do STF pelos espectadores e
contribuintes (não são necessariamente a mesma coisa, sabendo-se que a
classe alta acompanha o julgamento com o mesmo interesse que aplica na
sonegação --e há quem diga que pelos mesmos motivos) leva a alguma
dúvida. Porque, até onde se soube com certeza em nossos dias, o que todo
cidadão brasileiro pleiteia do Judiciário é a segurança de que cada um
conte com a busca da verdade e da justiça possíveis, para que ninguém
seja injustiçado por pressa de juiz nem por interesses políticos ou
econômicos.
Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da
Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com
perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas. Escreve na
versão impressa do caderno "Poder" aos domingos, terças e
quintas-feiras.
Um comentário:
Nada me deixa mais feliz do, antes mesmo de ler a coluna do Jânio de Freitas, ler lá no final a frase: "O comentário não representa a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem..."
Como sempre o Jânio vai ao ponto, preciso e arrasador, melhor que os escalafobéticos ataques cirúrgicos dos americanos.
Parabéns
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