A iniciativa de tentar recuperar fundos supostamente desviados no
mensalão pode ter uma função de esclarecimento, desde que se tenha a
humildade de procurar fatos
A notícia de que o Banco do Brasil resolveu ir atrás dos recursos que
teriam sido desviados para o esquema de Marcos Valério pode ser uma
grande oportunidade para se passar a limpo um dos grandes mistérios da
ação penal 470.
A condição é que se tenha serenidade para se esclarecer o que foi feito
com o dinheiro, uma bolada de R$ 73,8 milhões, que, conforme o relator
Joaquim Barbosa, foi desviada para subornar parlamentares e garantir a
base de apoio do governo Lula no Congresso. Essa iniciativa pode ter uma
função de esclarecimento, desde que se tenha a humildade de procurar
fatos, sem receio de descobrir que as provas que irão surgir podem
sustentar aquilo que se diz – mas também podem desmentir tudo o que se
falou até aqui e produzir uma visão inteiramente nova sobre o
julgamento.
Pelos dados disponíveis até aqui, ocorre o seguinte. Ao contrário do que
se disse no Tribunal, duas auditorias do Banco do Brasil não apontaram
para os desvios de recursos, muito menos da ordem de R$ 74 milhões. No
julgamento, essa constatação foi ignorada pelo Ministério Público, por
Joaquim Barbosa e pela maioria dos juízes. Eles mantiveram a acusação
até o final e ela foi um dos pontos altos de todo o julgamento. O
problema é que o desvio foi denunciado, mas não foi demonstrado nem
explicado. Se este novo exame não apontar para um desvio, será possível
sustentar que não houve crime. E se não houve crime, é preciso revisar o
processo.
Quando se fala em ir atrás dos recursos, as pessoas podem pensar numa
tarefa simples, uma cena de filme, em que os bravos homens da lei chegam
ao esconderijo dos criminosos e pegam o dinheiro que teria sido
desviado. Não é assim.
O total de R$ 73,8 milhões é apenas o resultado de uma somatória
simples. Envolve a soma de recursos do Visanet que altos executivos do
Banco do Brasil – Henrique Pizzolato foi apenas um deles – destinaram
para campanhas da DNA entre 2003 e 2004. O pressuposto é que cada
centavo enviado para a DNA pela Visanet serviu única e exclusivamente
para fins escusos.
Essa tese se apoiou no depoimento de uma ex-gerente do núcleo de mídia
do Banco do Brasil. Foi ela quem afirmou que as campanhas da DNA eram
simples cobertura para os desvios e acusou Pizzolato, com quem não tinha
relações diretas, de ser responsável pelos desmandos.
Embora tenha sido até mencionado no julgamento, este depoimento teve a
credibilidade afetada quando a Polícia Federal encontrou, em sua conta,
recursos de origem difícil de explicar. A ex-gerente teve seus 15
segundos de celebridade e depois sumiu dos jornais e revistas.
O problema real, no entanto, é outro. Uma má testemunha não basta para desmentir uma história – desde que seja verdadeira.
Os dados disponíveis, hoje, colocam em questão a simples ideia de que o
esquema financeiro clandestino do PT tenha sido alimentado pelos cofres
da Visanet, a multinacional que distribuía recursos para as instituições
que usam a bandeira Visa – entre elas o Bradesco, além do Banco do
Brasil – para promover seus cartões de crédito.
Existem dois levantamento conhecidos sobre o destino desse dinheiro.
Nenhum deles aponta desvios que chegariam perto de 100% dos recursos
entregues, como sustentou-se no tribunal. Longe disso. O que estes
levantamentos mostram é que a maioria, se não a totalidade, dos recursos
destinados a eventos de publicidade foram consumidos nesta atividade.
Um levantamento do escritório Simonaggio Perícias, de São Paulo, chegou
ao destino final de 85% dos gastos, e aponta que todo esse dinheiro foi
gasto em campanhas de propaganda e eventos de propaganda para promover o
cartão Ourocard. Conforme o advogado Silvio Simonaggio, contratado
pelos antigos proprietários da DNA, Ramon Hollerbach e Cristiano Paz,
que já cumprem altas penas em função da ação penal 470, não foi possível
chegar aos 15% restantes porque não se teve acesso à documentação que
se encontra nos arquivos da empresa Visanet, hoje Cielo, no Banco do
Brasil e no Instituto de Criminalística da Polícia Federal. Claro que
sempre se poderá desconfiar da opinião de um perito contratado por uma
das partes, mas, além de impressões negativas, será necessário contrapor
fatos consistentes para contestar o que estes peritos, de um escritório
privado, afirmam.
Outro levantamento, feito pelo jornalista Raimundo Pereira, da revista
Retrato do Brasil, aponta na mesma direção. A partir da declaração da
Visanet para a Receita Federal, o trabalho mostra uma contabilidade
coerente entre pagamentos e gastos. Também dá nomes a boa parte dos
beneficiários dos recursos da DNA. Explica campanhas realizadas, eventos
patrocinados. Como é natural em campanhas de publicidade, muitos
recursos foram entregues aos meios de comunicação, o que torna muito
fácil verificar se eles foram desviados ou não – desde que as empresas
indicadas tenham disposição de colaborar. Apenas a TV Globo recebeu uma
soma aproximada de R$ 5 milhões, quantia que, a ser verdadeira, já
implica numa redução equivalente do total. Outras empresas de porte
também receberam quantias de vulto, ainda que menores.
Há outro ponto a ser debatido. O STF, em sua determinação, deixa claro
que considera o Banco do Brasil como verdadeiro proprietário dos
recursos desviados. O problema é que uma auditoria do próprio banco, em
11 de janeiro de 2006, demonstrou o contrário. Afirma-se, ali, que o
regulamento que criou o Fundo de Incentivo Visanet, que pertence à
multinacional Visa, estabelece com todas as letras que a empresa “sempre
se manterá como legítima proprietária do Fundo, devendo os recursos
serem destinados exclusivamente para ações de incentivo, não pertencendo
os mesmos ao BB Banco de Investimento nem ao Banco do Brasil.” Diz
ainda a auditoria que “as despesas com as ações seriam pagas diretamente
pelo Visanet” às agências de publicidade ou reembolsadas pelo
incentivador. Analisando ainda a operação de entrada e saída de
recursos, onde seria possível imaginar a ocorrência de desvios, a
auditoria afirma que “o Banco optou pela forma de pagamento direto, por
intermédio da empresa fornecedora, sem trânsito dos recursos pelo BB.”
(“Sintese do Trabalho de Auditoria,” ofício número 100/p).
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