Já está em curso acelerado articulação para inverter papéis e responsabilidades no propinoduto tucano e na máfia dos fiscais
Determinados episódios tem o poder de revelar toda estrutura da
sociedade em que vivemos, mostrando quem tem o poder de verdade – e quem
tem acesso, somente, a brechas e migalhas.
Estou falando da denúncia sobre o propinoduto do PSDB. O caso ficou
adormecido quinze anos nas gavetas do Ministério Público e da Justiça de
São Paulo. Pedidos das autoridades do paraíso fiscal suíço foram
arquivados. Inquéritos eram abertos e fechados logo em seguida. Ninguém
era incomodado pelas autoridades brasileiras, nem mesmo Robson Marinho,
homem de confiança do ex-governador tucano Mário Covas, titular de uma
fortuna em contas secretas. Mesmo a iniciativa internacional de uma das
maiores empresas do mundo, a Siemens, parecia não dar em nada. Até que,
uma década e meia depois da primeira denúncia, as investigações começam a
andar. Surgem nomes de governadores de Estado, parlamentares,
tesoureiros, operadores financeiros e dezenas de envolvidos.
Aparece, então, o vilão da história: José Eduardo Cardozo, o ministro da
Justiça que entregou à Polícia Federal papeis que circulavam nos
bastidores de políticos e empresários do país. Se tivesse engavetado o
documento, Cardozo poderia ser acusado de prevaricação. Hoje, é acusado
por participar de uma “trama sórdida” ao lado de um deputado estadual do
PT e do presidente do Conselho Administrativo de Direito Econômico.
Na verdade, Cardozo deve ser elogiado. Mandou investigar uma denúncia de
crime. Se há uma crítica a ser feita é outra: por que demorou tanto?
O episódio parece estranho mas não é. Faz parte de uma desigualdade
política típica de uma sociedade dividida em 99% e 1%, na qual o acesso
ao topo sempre foi muito estreito e difícil do que sugere a lenda de que
vivemos numa terra de oportunidades. Para resumir, nosso
subdesenvolvimento não foi improvisado. É obra de séculos, ensinava
Nelson Rodrigues. Classe dominante numa sociedade subdesenvolvida é
assim: domina mesmo quando não governa. As condições mudam, as
facilidades se tornam menos óbvias. Mas através de mentes e fios
invisíveis, mantém a capacidade de refazer os fatos, mudar a narrativa,
inverter os papéis e alterar o fim da história enquanto ela está
acontecendo.
O atraso econômico, a desigualdade social e a concentração de poder
político se superpõem, conversam e se alimentam, atravessam gerações, se
acasalam e se reproduzem. Dominam todas as instâncias políticas que não
dependem do voto popular, a única forma de poder na qual, vez por
outra, é possível expressar uma vontade resistência – frequentemente
derrotada pelas baionetas, pela porrada e pelas regras eleitorais que
autorizam o aluguel do Estado pelo poder econômico privado, que faz o
possível para seduzir todos que queiram render-se a seus interesses.
Esse universo inclui as instituições que não dependem da vontade do
povo, como as grandes universidades, a Justiça, o setor privado no
sentido econômico, sejam sócios e parceiros internacionais, e também no
sentido político, a começar pelos grandes grupos de comunicação. A
verdade é que o 1% nem precisa conspirar para fazer valer seus
interesses e vontades. Funciona no piloto automático, por um sistema de
senhas, eufemismos e códigos ideológicos. Aquilo que se diz aqui se
repete mais adiante, através de vozes que falam na mesma melodia e
compasso. É onipresente a ponto de confundir-se com a natureza, num
encantamento que só é possível quando se possui o monopólio da palavra –
exercido como orquestra pelos meios de comunicação.
Neste ambiente, o escândalo do propinoduto é uma sombra inesperada no
esforço de criminalização do condomínio Lula-Dilma em 2014. Manda calar a
boca. Mostra que, além de dedicar-se a práticas lamentáveis, numa
escala contínua e gigantesca sem paralelo conhecido na história
brasileira, o PSDB paulista construiu uma blindagem sólida, que torna
ainda mais difícil apurar e investigar qualquer denuncia – o que só
agrava qualquer ilegalidade que já foi cometida. São varias raposas para
tomar conta do galinheiro das verbas do metrô e dos trens urbanos.
E é por isso que até imagino que Cardozo pode ser chamado a explicar-se,
no Congresso, ou lá onde for, antes mesmo que qualquer tucano
emplumado, com o futuro político a beira do precipício, seja obrigado a
dar explicações verdadeiramente necessárias e urgentes.
O esforço é elevar o clima de indignação, falar em aparelhismo sem
constrangimento mesmo depois que se soube que o ministério público de
São Paulo engavetou oito pedidos de informações internacionais do
ministério publico da Suíça – elevando para um padrão internacional um
comportamento patenteado pelo inesquecível Geraldo Brindeiro, aquele que
engavetou até confissões de venda de votos na emenda que permitiu a
FHC
disputar a reeleição.
É ridículo mas veja bem o que ocorreu na máfia dos fiscais da prefeitura.
Nenhum alto responsável por oito anos de descalabro e cobrança de
propina, em São Paulo, foi localizado, investigado nem punido. O cerco
se fechou em torno de Antônio Donato, o secretário da prefeitura de
Fernando Haddad. Donato era um adversário notório e combativo das
gestões anteriores, inimigo de qualquer aproximação com o então prefeito
Gilberto Kassab. Só aceitou uma trégua por disciplina partidária, após
uma luta interna renhida e pública. Só assumiu funções executivas depois
que a turma já havia sido desalojada de seus postos, como resultado de
uma campanha eleitoral na qual teve um papel fundamental. São
credenciais que dão o direito de duvidar de qualquer uma das insinuações
feitas contra ele por cidadãos em busca desesperada de uma boia de
salvação, a quem a lei confere até o direito de mentir em legítima
defesa. Já vimos este filme em 2005.
Depois que um protegido seu foi gravado em vídeo quando recebia propinas
no Correio, Roberto Jefferson foi aos jornais, a Câmara e a TV falar do
“mensalão.” A turma de 1% abençoou aquele delator benvindo e mudou a
história. Quando Jefferson se desdisse, dizendo que era "criação
mental," a história já fora modificada e reescrita. Sabe o que aconteceu
com a turma dos Correios? Nada. O caso está parado até hoje.
O espetáculo do poder nessa escala é conhecido. Só não é preciso bater palmas. Basta abrir os olhos.
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